sábado, 18 de outubro de 2014


A propósito da iniciativa legislativa da FPV

Entusiasmo, perplexidade, recusa


Nuno Serras Pereira, 7 de Outubro de 2014

1. Pouco tempo depois de ter enviado o texto em que dizia dos meus motivos para este ano não participar na Caminhada pela Vida, recebi da parte de um membro da direcção da fpv [Federação Portuguesa pela Vida] uma mensagem, que agradeço, na qual me enviava, sob condição de embargo, o/s texto/s que eu reclamara por não ser/em do conhecimento público.

2. Tive então a oportunidade de ler a «iniciativa legislativa de cidadãos – lei de apoio à maternidade e paternidade – do direito a nascer». Em tudo o que adiante escreverei tenham sempre em conta que parto do princípio que quem elaborou e assinou esta iniciativa o fez com recta intenção e de boa-fé, julgando que seguiam o n.º 73 da Encíclica O Evangelho da vida.

Confesso que me entusiasmaram muitas das medidas propostas, mas esse regozijo foi, pouco a pouco, esmorecendo à medida que cresciam em mim interrogações e dificuldades que me deixaram perplexo.

Por exemplo, querer fazer aprovar uma lei do direito a nascer no quadro de uma «lei» que liberaliza o aborto não será algo de parecido com empenhar-se numa iniciativa legislativa que queira fazer aprovar o direito à indissolubidade no casamento no quadro da actual «lei» que liberaliza o divórcio-expresso-sem culpa? Não sou jurista mas pergunto-me se nos levarão a sério, caso subscrevamos esta iniciativa – trata-se de uma dúvida que pessoas competentes nesta matéria certamente esclarecerão.

Também na exposição dos motivos, n.º 8, se afirma que o aborto foi despenalizado por referendo. Ora é sabido de todos que o referendo não foi juridicamente válido. Mais, poderá a fpv admitir e afirmar que qualquer tipo de referendo, mesmo que válido juridicamente segundo a «lei» positivista em vigor, o seja realmente? Alguma vez seria admissível admiti-lo e afirmá-lo em relação a um referendo que despenalizasse o gaseamento de judeus?

3. Passemos adiante que me falta o tempo para tudo esmiuçar. O Art. 6.º (Acompanhamento e apoio psicológico e social) indica-se o acompanhamento da mulher que pediu o aborto para consulta e acompanhamento interdisciplinar com pelo menos um psicólogo e um assistente social, no 16.º f) impera-se a consulta de acompanhamento psicológico e por técnico de serviço social durante o período de reflexão. Eu creio que tudo isto que aqui é dito tem como finalidade dissuadir a mãe grávida a não abortar o seu filho. Creio que com a esperança de que alguns defensores e promotores do direito a nascer consigam desse modo salvar algumas vidas de crianças nascituras e salvaguardar as suas mães de graves consequências psicológicas e espirituais, resultantes do homicídio de seus filhos. No entanto, se assim é, isso suscita-me pelo menos duas objecções:

a)  «Apostar» nos psicólogos e assistentes sociais será (é isso que concluo dos estudos que tenho feito e conhecimentos que tenho adquirido) uma roleta russa invertida, isto é, em vez de haver uma só bala no tambor cilíndrico do revólver, apenas lhe falta um projéctil. Poderia trazer aqui bastantes exemplos mas não me sobra o tempo.

b) O facto de a consulta e o acompanhamento serem um requisito não vejo como se poderá deixar de exigir um certificado como garantia do seu cumprimento. A ser assim, como cuido que terá de ser, isso equivalerá a um passaporte para o homicídio na forma de abortamento.

Na Alemanha formaram-se organizações católicas no intuito de propor, com ajudas muito concretas e consistentes, todas as alternativas às mães grávidas que queriam matar seus filhos nascituros. Apesar de terem conseguido salvar um número significativo de vidas, não o conseguiram de muitas outras. Estas organizações eram reconhecidas pelo estado e estavam integradas no sistema. Por isso, tinham que passar certificados a todas as mulheres que queriam destruir os seus bebés, antes de nascerem. Esse atestado servia de passaporte para exterminarem esses nossos irmãos, totalmente inocentes e eminentemente vulneráveis. Esta situação gerou um escândalo enorme, no sentido verdadeiro da palavra, corrompendo as mentalidades e as consciências. Entretanto havia filósofos e teólogos que esgrimiam controvérsia argumentando uns que se tratava de uma cooperação formal com o genocídio e outros, pelo contrário, sustentavam que era material. S. João Paulo II não quis ou não achava necessário dirimir a questão teológica, mas insistiu quer pessoalmente quer através da Congregação para a Doutrina da Fé, para que se pusesse imediatamente cobro a essa prática, uma vez que era de uma gravidade extrema. Não pode existir a mínima dúvida de qual é a posição da Igreja e, portanto, dos Católicos sobre a defesa da vida. Não se pode admitir qualquer tipo de ambiguidade. Quase todo o episcopado germânico opôs-se obstinadamente às directivas e mandatos de Roma. Os seus representantes foram de novo chamados a Roma e foi-lhes dito, claramente, que ou obedeciam ou seriam considerados cismáticos. Ao que parece S. João Paulo II considerou a matéria tão grave que, para terminar de vez com aquela situação, não recuou nem hesitou perante a eminência ou ameaça de um cisma na Igreja.

Meus bons e pacientes amigos e leitores, se há coisa que muito me custa e cansa é escrever, mas apesar de esbodegado vou tentar chegar ao fim, ainda esta madrugada – desculpem lá o desabafo...

4. O Art. 2.º (Consulta, informação e acompanhamento) e o Art. 16.º (consulta préviag), exigem a obrigatoriedade  e requisito de verificação necessária para que seja praticada a eliminação violenta e letal dos petizes. O Art. 19.º (Interrupção da gravidez) 4 – b), reza que os estabelecimentos oficiais ou oficialmente reconhecidos devem garantir às mães grávidas que suprimem, escangalhando-os, seus filhos a marcação de uma consulta de saúde reprodutiva/planeamento familiar a realizar no prazo máximo de 20 dias após a matança dos seus pequeninos.

a) Embora a expressão planeamento familiar seja usada por alguns católicos para se referirem aos métodos naturais de regulação de fertilidade todos sabemos que na sua esmagadora maioria é usada pelos agentes de saúde, pelo legislador, pelos políticos como sinónimo de contracepção, temporária ou definitiva. Demais não há centro de saúde nem hospital que a ela não recorra, que não pressione os pacientes a fazerem dela uso ou mesmo a impô-la abusiva e subrepticiamente.

b) Apesar de, como ensina o Evangelho da vida n.º 13, a contracepção e o aborto serem males diversos – pois enquanto a primeira priva o acto sexual da sua integridade, opondo-se à virtude da castidade, o segundo destrói a vida de um ser humano; a verdade é que, como afirma no mesmo número, o recurso à contracepção cria uma mentalidade que conduz ao aborto. Não é preciso ser católico para dar razão ao Papa. Quem lê estes rabiscos que vou redigindo sabe muito bem que já apresentei informação abundantíssima, fornecida pelos mais eminentes propugnadores ao longo de décadas, que o uso da contracepção não diminui mas, pelo contrário, aumenta o número de abortos. Também não se pode escamotear que há uma vasta gama de produtos que são apresentados como contraceptivos quando na realidade funcionam frequentemente como abortivos, sendo que isso é, propositadamente, ocultado às mulheres que vão a essas consultas.  Não vejo pois de que modo é que isso poderá contribuir para aquilo que se diz querer diminuir, isto é, o número de abortos. Alguém tem dúvidas na fpv que as pessoas minúsculas antes de se aconchegarem no útero materno têm o mesmo valor, a mesma dignidade, do que qualquer um de nós?

Estou em que o que disse acima no n.º 3 b) se aplica aqui ainda com maior vigor.

c) Para além disso temos que considerar atentamente outras consequências devastadoras: Há indicações, mesmo provas maciças, que o recurso à contracepção tem tido um papel decisivo e principal no aumento exponencial do divórcio, gerou a fecundação artificial extracorpórea, com a consequente destruição de centenas de milhares ou milhões, a experimentação letal nas pessoas no seu estado embrionário, a clonagem, a coisificação dos filhos e também das mulheres, a nova escravatura gerada pelas barrigas de aluguer, a ideologia lgbtqi e a do género, etc.

Sinceramente, não vejo como seja possível diminuir o número de abortos indo por aqui.

5. É certo que na proposta ou iniciativa legislativa há muitos pontos positivos, que poderiam ser aproveitados, não para esta petição, no meu entender, mas talvez para uma outra mais cuidada.

6. Ficou muita coisa por dizer e desenvolver, mas não aguento mais. Somente tenho forças para dizer que entendo que não posso subscrever nem apoiar esta iniciativa.


Nossa Senhora do Rosário intercedei por nós. Ámen.





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