Pedro Vaz Patto
A ideologia do género
Mas detenhamo-nos na análise da definição e fundamentos da ideologia
do género[5].
Parte esta teoria da distinção entre sexo e género,
a qual se insere na distinção mais ampla entre natureza e cultura.
O sexo representa a condição natural e biológica da diferença física
entre homem e mulher. O género representa a construção
histórico-cultural da identidade masculina e feminina. Retomando a célebre
frase de Simone Beauvoir, «uma mulher não nasce mulher, torna-se mulher»; as gender
theories consideram que «somos» homens e mulheres na base da dimensão biológica
em que nascemos, mas nos «tornamos» homens e mulheres, no sentido em que
adquirimos uma identidade masculina ou feminina, na base da nossa percepção
psíquica e da nossa vivência interior (do nosso modo pessoal de sentir e viver
a identidade pessoal no plano psicológico), por um lado, e na base da
socialização (da interiorização dos comportamentos, funções e papeis que a
sociedade e cultura a que pertencemos atribui aos homens e às mulheres), por
outro lado. O sexo é um facto empírico, real e objectivo, de ordem
biológica, genética, anatómica e morfológica, que se nos impõe desde o
nascimento. A identidade de género constrói-se através de escolhas
psicológicas individuais, expectativas sociais e hábitos culturais e
independentemente dos dados naturais. Para estas teorias, o género assim
concebido deve sobrepor-se ao sexo assim concebido; a cultura deve
sobrepor-se à natureza; a uma perspectiva essencialista deve
sobrepor-se uma perspectiva construtivista.
Como o género é uma construção social, este pode ser
desconstruído e reconstruído. A diferença sexual entre homem e
mulher em sentido natural e imutável está na base da opressão da mulher,
relegada para a sua condição de mãe. Para a superar, impõe-se superar o
dualismo sexual natural e reconduzir o género à escolha individual. O género
não tem de corresponder ao sexo, corresponde a uma escolha
subjectiva, ditada por instintos, impulsos, preferências e interesses, que vai
para além dos dados naturais e objectivos. Convergem, neste aspecto, as teses
do feminismo de género (que sustenta que o fim da opressão feminina
supõe a negação da relevância das diferenças naturais entre homem e mulher,
designadamente o relevo da maternidade como condição particular da mulher) e as
dos movimentos de defesa dos direitos dos homossexuais, e, mais
especificamente, em prol da legalização do casamento homossexual e da adopção
por pares homossexuais. As gender theories sustentam a irrelevância da
diferença sexual na construção da identidade de género, e, por
consequência, também a irrelevância dessa diferença na relações interpessoais,
nas uniões conjugais e na constituição da família. Como afirma Laura Palazzani,
da «diferença sexual passa-se à indiferença sexual».Se é indiferente a
escolha do género a nível individual (pode escolher-se ser homem ou
mulher, independentemente dos dados naturais), também é indiferente a escolha
de se ligar a pessoas de outro ou do mesmo sexo. Daqui surge a equiparação
entre uniões heterossexuais e uniões homossexuais. Ao modelo da família heterossexual,
numa perspectiva «essencialista», sucedem-se vários tipos de «família», tantos
quantas as preferências individuais e para além de qualquer «modelo» de
referência. Deixa de se falar em «família» e passa a falar-se em «famílias»
(também esta é uma inovação semântica que muitas pessoas passam a adoptar sem
se aperceberem da sua conotação ideológica). Privilegiar a união heterossexual
é uma forma de discriminação, um heterocentrismo opressor. Deixa de
falar-se em «paternidade» e «maternidade» e passa a falar-se em «parentalidade»
(mais uma evolução semântica que muitos adoptam sem se aperceberem da sua
conotação ideológica).
Das gender theories passa-se às teorias multi-gender,
post-gender e transgender Àgéneros, um continuum de identidades em
cujos extremos se colocam o masculino e o feminino, o homossexual e o
heterossexual, mas onde se inserem também posições intermédias, o bissexual e o
transexual, assim como posições oscilantes. O movimento queer representa
a ala extrema das gender theories. O seu objectivo é a desconstrução de
qualquer normatividade sexual e a construção de um novo paradigma antropológico
assente num «polimorfismo sexual» sem restrições. A identidade deve ser
construída para além do sexo e do género, como uma subjectividade
complexa e múltipla, móvel e indefinível, sem qualquer fixação estática.
dualidade sexual (homem e mulher), contrapõe-se uma multiplicidade de identidades.
Não irei aqui desenvolver muito a análise da ideologia do
género e a sua crítica. Mas a exposição que antecede é suficiente para que
se compreenda o alcance ideológico dos diplomas que venho comentando. Quando
neles se alude ao «sexo social desejado» e se opta pela prevalência deste sobre
o sexo biológico, a opção é ideológica e não puramente «humanitária”» como
poderá parecer à primeira vista. Como vimos, é a ideologia de género que
sustenta essa prevalência. E também se compreende a ligação entre esta questão
e as do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Não é por acaso que surgem, em
Portugal como em Espanha, uma na sequência da outra. São, uma e outra,
decorrência da ideologia de género. Fazem parte, uma e outra, da chamada
«agenda LGBT» (lesbian, gay, bissexual and transgender). É ilusório
pensar que se trata apenas do fim de uma discriminação, ou do respeito pelas
minorias. É um novo paradigma antropológico que está em jogo e que se quer
impor desde cima, desde as instâncias políticas e jurídicas. E também é fácil
compreender, a partir desta breve exposição, como esse paradigma choca com o
senso comum das nossas sociedades e representa uma verdadeira revolução de
mentalidades.
Para além da desconformidade entre o registo oficial do sexo de
uma pessoa transexual e o seu sexo biológico, a ideologia de género
poderá levar ao registo de uma terceira categoria, de um sexo «não determinado».
Foi o que tentou fazer Norrie May-Welby no Estado australiano de Nova Gales do
Sul, quando se considerou incluído (ou incluída) nessa categoria de «sexo não
determinado» depois de ter cessado tratamentos hormonais tendentes à «mudança»
do seu sexo de nascença[6]. Essa pretensão acabou por ser recusada pelas autoridades
governamentais, não sem que essa recusa tenha motivado uma queixa junto da Human
Rights Comission por violação do Australian Sex Discrimination Act de
1984.
Laura Palazzani caracteriza deste modo a filosofia gender:
«um pensamento antimetafisico, que reduz a natureza a mero facto
contingente em sentido materialista e mecanicista (a natureza como matéria
orgânica extensa em movimento); um pensamento antropológico empirista
que reduz o indivíduo a meros impulsos e instintos (não mediados pela razão,
mas directamente ligados à vontade); um pensamento não-cognitivista, que
nega a cognoscibilidade através da razão de uma verdade objectiva na natureza
(com base na «lei de Hume», não se pode passar dos factos aos valores e aos
direitos); um pensamento subjectivista, que nega uma relevância
metafactual da natureza para o ser humano em sentido ético e jurídico, nega,
portanto, a relevância normativa da natureza como ordem, radicando os valores e
os direitos directamente na vontade individual (determinada pelos instintos e
pelos impulsos); um pensamento relativista, que a partir da negação da
existência e da cognoscibilidade de uma verdade objectiva na natureza,
considera que normas e valores são equivalentes (todos temos a mesma
dignidade), são variáveis (de sociedade para sociedade, de época para época, de
sujeito para sujeito), não são passíveis de juízos (uma vez que não existe um
critério objectivo para poder exprimir um juízo) e, portanto, são e devem ser
todos toleráveis (ou seja, pragmaticamente aceitáveis e suportáveis). É esta a
moldura teórica pós-moderna que conduz ao afastamento da natureza,
ao «desnaturar» ou «desnaturalizar» o homem e as relações intersubjectivas na
sociedade»[7].
[5] Ver uma exposição destas teorias, numa
perspectiva crítica, em Laura Palazzani,Identità di genere. Dalla differenza alla
in-diferenza sessuale nel diritto, Edizioni San Paolo, Cinisella Bálsamo
(Milão), 2008, e Giulia Galeotti, Gender Genere, Chi vuole negar ela
differenza maschio-femina? L´alleanza tra femminisno e Chiesa cattolica, Edizioni
Viverein, Roma, 2009.
[6] Ver Friday Fax, edição on-line,
vol. 13, nº 161, Abril de 2010.
[7] Op. cit., p. 44 e 45 (tradução
minha).