sexta-feira, 4 de dezembro de 2015


Concerto de Natal








O estado de graça é isto


João Miguel Tavares, Público, 1 de Dezembro de 2015

Há quem diga que António Costa não vai ter direito a estado de graça. Discordo. Ele já está em estado de graça. Pelo país inteiro, celebra-se a libertação do jugo passista como os franceses festejaram a libertação de Paris. Um novo David, munido de poucos votos mas muita pontaria, conseguiu derrubar o malvado Golias, que oprimia os pobres e desvalidos através da terrível austeridade. Basta olhar para a felicidade estampada nos textos de tanta gente: foi melhor assim do que se o PS tivesse ganho as eleições. Mais inesperado. Mais cruel. E, por isso mesmo, mais justo.

Para encontrarmos bons exemplos desse estado de graça basta ler o PÚBLICO dos últimos dias. José Pacheco Pereira, que tanto aprecia anunciar ao mundo a sua frígida lucidez, desta vez escreveu uma crónica onde todos os parágrafos padecem de acne juvenil, só pelo prazer de poder gritar: «Acabou!!!!». E reparem que não é um «acabou!!!!» qualquer. É um «acabou!!!!» nascido de dezenas de conversas com o povo oprimido da Marmeleira. Um «acabou!!!!» afinado com a luta antifascista. Escreve ele: «um alto e sonoro ‘acabou’ como antes do 25 de Abril se chegava ao ‘às armas’ da Portuguesa e de repente toda a gente gritava a plenos pulmões». O estado de graça é isto.

Rui Tavares, no seu texto de ontem, preferiu valorizar uma questão simbólica: «Não foram mencionados os títulos académicos dos novos ministros e secretários de Estado durante a tomada de posse do novo Governo. A ser verdade, é uma revolução.» Note-se que ele não faz a coisa por menos. «Uma revolução». Deixar de tratar Augusto Santos Silva por «professor doutor» é «uma revolução». Eu cá trocava alegremente a permanência de «professor doutor» pela impermanência de Augusto Santos Silva. Assim de repente, parecer-me-ia coisa muitíssimo mais revolucionária. Mas isso deve ser porque sou de direita. O imenso povo de esquerda, que nunca precisou de muito para se entusiasmar, acredita que a abolição dos títulos académicos é apenas o primeiro passo para a abolição de todas as desigualdades. O estado de graça é isto.

Também no dia de ontem, num texto intitulado «A estratégia de um governo que quer ir além da política de rendimentos», Paulo Pena explica as razões do «incomum afastamento do ministro das Finanças, Mário Centeno, do ‘pódio’ da hierarquia governamental». A tese, acompanhando os discursos de António Costa, é a de que as questões financeiras são agora assumidas como «instrumentais», e não «estratégicas», e de que esta nova «visão» é aquela que irá ser vendida na Europa, certamente para grande espanto dos burocratas de Bruxelas, que nunca ouviram falar em tal coisa. De facto, só um génio se lembraria de que o grande problema português não está na dívida mas na falta de competitividade da economia. Estou certo que mal acabe de explicar isto a Wolfgang Schäuble, António Costa, expelindo sonoros ulos de «eureka!!!!», irá provar ao mundo que é mais fácil empurrar um cilindro do que um paralelepípedo.

Mas Paulo Pena tem fé: se Costa for capaz de levar a sua avante, «talvez a expressão ‘um tempo novo’, que prometeu no discurso de tomada de posse, faça sentido». E conclui: «Mesmo que o não consiga, mais fácil parece ser a promessa que deixou aos seus ministros e secretários de Estado, na sala dos Embaixadores, no Palácio da Ajuda: ‘Foi para um projecto entusiasmante que vos convidei.’» Entusiasmante, de facto. O mal foi vencido. A esperança vive. O estado de graça é isto.





quarta-feira, 2 de dezembro de 2015


Terrorismo ético


Pe. Vasco Pinto de Magalhães, 22 de Novembro de 2015

Deputados da Assembleia da República atacam vidas, vidas inocentes, o bom-senso e a justiça em nome de direitos que não existem.

Na sexta-feira passada, de rajada, foram aprovadas três leis contra a vida: a facilitação do aborto sem taxas moderadoras,a adopção de crianças por homossexuais e as barrigas de aluguer. Com a promessa de continuar o ataque.

O facto é grave por si mesmo, e é oportunista pelo aproveitamento do momento de indefinição política existente.

É grave. Mas toda gente sabe que, muitas vezes, «legal» não quer dizer «bom», nem «verdadeiro», nem «justo», mas apenas que há força para levar por diante determinada imposição. Legal não é igual a legítimo. E também toda a gente sabe que uma maioria, só por ser maioria, não tem razão: tem força, e, por vezes, força bruta.

Será que os deputados estão ao serviço do povo e do seu maior bem? Ou ao serviço de uma ideologia qualquer a impor ao povo? Será que ignoram, a ILC (Iniciativa Legislativa de Cidadãos) pelo Direito de Nascer, que foi aprovada em Setembro passado, apoiada por 50 mil subscritores? Ou acham que podem passar por cima dela, arrasando-a?

Este ataque é à vida e à ética da vida. O que se legalizou, agora, é contra a vida e contra a justiça. O abortar, que não trata nenhuma doença (!) (alguém duvida que elimina uma vida autónoma e pessoal?), passa à frente do tratamento dos doentes porque ultrapassa os outros devido aos prazos e passa a ser estimulado: executa-se sem consentimento informado e aparece como um «serviço» gratuito, que os outros (nós!) hão-de pagar. Terrorismo contra a mãe (que não é ajudada a responsabilizar-se), contra a criança, contra a natalidade e contra a consciência e missão dos médicos (encorajando-os a um acto não médico).

A barriga de aluguer é também contra a vida e a dignidade da mulher, ao fazer dela, sob a capa de alguém que presta «um serviço», uma incubadora impessoal. É uma instrumentalização, uma «coisificação», da pessoa humana, que corta violentamente a relação íntima gerada ao longo dos meses de gestação. É, no fundo, prostituição (mesmo que se diga que não é paga). E bem sabemos que há países que até apresentam catálogos de escolha de certos traços pretendidos e os respectivos preços.

A adopção por pares de homossexuais é também uma violência desnecessária imposta à criança. Primeiro porque ninguém, seja homo ou heterossexual, tem direito a possuir um filho (e ainda menos um adoptado), as crianças é que precisam de um enquadramento familiar saudável. Além do mais, em Portugal, para cada criança em condições de ser adoptada há três casais normais disponíveis para o fazer. Não há, pois, razão nenhuma para forçar uma criança a uma realidade, à partida transtornada e antropologicamente incompleta.

Se estas leis não são violência destruidora de vida, sem razão mínima que não seja a cegueira, o desejo ressentido de poder, e a ideia adolescente de liberdade (pois delas não virá qualquer bem ao mundo e à sua humanização), não sei como as possam justificar. Na realidade, apresentam-se como actos de terrorismo, e são-no!

Só poderei dar a isto o benefício da dúvida vendo na sua origem a falta de pensamento crítico, o engano de uma consciência (pseudo-ética) formada nos «direitos» do subjectivismo consumista e a cultura de uma ideologia sem esperança e imediatista, cujo valor maior é «o que me dá jeito (poder e dinheiro), agora».

Há um critério ético, simples e directo para saber o que é imoral, onde está a imoralidade ou não: é imoral o que ataca a vida, ou seja o que não tem futuro; o que degrada ou destrói as relações humanas e a esperança.

O aborto destrói o futuro da mãe e do filho. Um mundo homossexual não tem futuro. A manipulação da pessoa ameaça o futuro e a liberdade, desvalorizando a dignidade do individuo e entregando-o nas mãos do dinheiro e do poder perverso. Inquietante e perigosa é uma cultura que já não consiga distinguir o bem do que «parece bem» e caia nas garras de uma ideologia de «igualdade» que mate a diferença e de uma «liberdade» que não consegue dar espaço ao outro. Cai na mentira que gera violência: é terrorista.





domingo, 29 de novembro de 2015


A nova ordem nacional


Alberto Gonçalves, Diário de Notícias, 29 de Novembro de 2015

Recapitulemos. A 4 de Outubro, a vitória da coligação de «direita» e da «austeridade» provou que o povo é masoquista e retardado. Horas depois, ou o tempo necessário para contar os deputados, apurou-se que afinal a maioria do povo derrotou a «austeridade» nas urnas e concluiu-se, com alívio, que o povo masoquista e retardado é minoritário. O exercício, então, consistiu em parodiar na internet e na nobre arte do comentário político a falta de competência aritmética da «direita», já que 122 lugares na AR são mais do que 107 – «Qual é a parte que não percebem?», repetia-se por aí. Dada a suprema importância dos parlamentares, exigia-se que o PR indigitasse a aliança de esquerda sem ouvir nenhum. Enquanto isso, insultava-se «o Cavaco», que por sua vez indigitou Passos Coelho. Derrubado Passos Coelho, reclamou-se a nomeação imediata do Dr. Costa, ameaçou-se com baderna pública e decidiu-se que «o Cavaco», entretanto ocupado a receber meio mundo, não respeita a Constituição e o eleitorado, embora o homem agisse de acordo com a primeira e tivesse sido eleito em duas ocasiões pelo segundo (a parcela masoquista e retardada). Tudo, da sagrada «lei fundamental» à plebe, existe apenas para ser torcido a benefício da vanguarda esclarecida.

Hoje, com a cedência do PR à piedosa mentira da «inevitabilidade» do governo PS, enterrou-se (entre insultos) «o Cavaco» e passou-se a biografar os membros da coisa como se os ditos fossem para levar a sério. Não são. Desde logo, são, sem excepção ou dúvida, cúmplices de uma golpadazita – inteiramente «conchcinal», dirá o Dr. Costa –, o que por si define o respectivo carácter. À lupa, são no máximo antigos serviçais da autarquia, zombies «socráticos», favores, flores, emissários de interesses, em suma ninguém. Dissecar o currículo formal de cada um, mesmo agrupando os diversos agregados familiares que por lá andam, tem utilidade reduzida e não será grande contributo para prever o futuro e a essência do novo tempo, do novo homem, enfim da nova ordem emergente. A nova ordem está nos pormenores, e nem se esgota no rancho que tomou posse há dias.

Está, por exemplo, num primeiro-ministro que troca o jargão político por um jargão pessoal vagamente aparentado ao português (se ler conforme fala, o «brilhante negociador» ainda irá a meio do clássico Anita Vai ao Circo). A nova ordem está num ministro das Finanças que parece saído dos flashbacks de Family Guy e entrado no circo a que a Anita foi. Está num candidato presidencial oficioso que promete «puxar por Portugal» e, juro pela minha saudinha, ser «um saca-rolhas». Está no ex-governante suspeito de múltiplos crimes que palmilha o território nacional em missão evangélica. Está numa ex-ministra da Cultura, e vibrante entusiasta da «situação», que avisa no Twitter: «Há [sic] direita prefere-se que não se emitam opiniões.» Apesar disso, é «há» esquerda que as opiniões incomodam mais.

A nova ordem está na fresquíssima secretária de Estado da Igualdade ou da Fraternidade, que em tempos explicou no Facebook: «Como sabem eu [sic] não tenho por hábito fazer sensura [sic], mas não tulero [sic] insultos (...)». E está no sensor, perdão, censor que saltitou da ERC para a tropa, com escala pedagógica a norte. E está na sugestão do Sr. Seixas da Costa, personalidade conhecida por zelar pela educação parisiense do Eng. Sócrates e por se indignar com a falta de «estrelas» Michelin em Portugal: «A ideia não será popular, mas não seria a ocasião para se introduzir uma transparência total nas redes sociais acabando com o anonimato?» E está no assombroso Dr. Ferro. E no nobilíssimo Dr. César dos Açores. E em sujeitos que passeiam títulos e pêlos nas orelhas em simultâneo. Quem é essa gente, Deus do céu?

Não vou ao ponto de dizer que a nova ordem é a consagração dos clientes da taberna: é a consagração dos indivíduos que, expulsos da taberna, desataram a frequentar caves maçónicas compatíveis com o seu nível. Privados de uma reles ideia, a não ser a da impunidade «natural», exibem petulância directamente proporcional à rudeza que os define. Por cá, a espécie é igualmente apelidada de «elite». E ninguém se ri, até porque dá vontade de chorar.

Ao que tudo indica, a «direita» ficou sinceramente escandalizada com a jovialidade com que o PS traiu os próprios «princípios», aliou-se às beatas de Lenine e, após 40 anos de ténue civilização, enxovalhou a data fundadora do regime. Ou a «direita» perde a virgindade ou não volta a levantar-se. O único «princípio» do PS é a convicção profunda e feroz de que nasceu para mandar nisto, custe o que custar. E, se custa muito resignarmo-nos à arrogância de rústicos, a eles custa pouco partilhar o poder com quem partilha a descrença na democracia e a crença na superioridade inata. Só espanta que o arranjinho demorasse tanto. A nova ordem, feita de brutalidade, retórica de 4.ª classe (sem exame), intolerância, comparsas, falências, delírios, respeitinho e a terminal anexação do país pelo Estado, é um projecto velho.