quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

A Itália em vias de criar um eixo anti-UE

Em visita à Polónia em 9 de Janeiro, o ministro do Interior da Itália Matteo Salvini, salientou
que os populistas de Itália e da Polónia deveriam dar início a uma «Primavera europeia»
e forjar um «novo equilíbrio» para substituir a influência da Alemanha e da França
no Parlamento Europeu. Foto: aperto de mãos entre Salvini e o ministro do Interior da Polónia
Joachim Brudziński em Varsóvia em 9 de Janeiro. (Imagem: página de Matteo Salvini no Facebook)

Soeren Kern, Gatestone, 23 de Janeiro de 2019

«Hoje começa uma jornada que continuará nos próximos meses em prol de uma Europa diferente, em prol de uma mudança na Comissão Europeia, das políticas europeias, que coloca no centro o direito à vida, trabalho, saúde, segurança, tudo o que as elites europeias, financiadas pelo bilionário filantropo húngaro George Soros, representado por Macron, negam...» — Matteo Salvini, vice-primeiro-ministro e ministro do Interior de Itália.
  • «Tanto o presidente Macron quanto a chanceler Merkel mostraram-se frustrados com a ascensão do populismo e do nacionalismo e com o facto da Europa estar reticente diante de problemas como as mudanças climáticas e a migração em massa...» — The Times.
  • «A única certeza que tenho no tocante às eleições europeias é que os socialistas e os comunistas sempre serão minoria em Bruxelas, eles já causaram estragos além da conta...» — Matteo Salvini.
O ministro do Interior de Itália, Matteo Salvini protagoniza criar uma aliança populista pan-europeia em oposição ao establishment pró-europeu com respeito ao futuro da União Europeia. A meta é resgatar a soberania ora com os burocratas biónicos de Bruxelas e transferir os poderes mais importantes da UE de volta às capitais dos seus respectivos países.

A Alemanha e a França, autoproclamados guardiões da integração europeia, estão a reagir ao desafio com um ambicioso contra-ataque para tornar a União Europeia «uma potência mais determinada no cenário mundial».

O cabo de guerra, que ameaça dividir a União Europeia ao meio, de um lado os nacionalistas eurocépticos e do outro os globalistas «eurófilos», promete aquecer nas próximas semanas e meses que antecedem as eleições para o Parlamento Europeu no final de Maio de 2019.

Numa visita a Varsóvia em 9 de Janeiro, Salvini, no momento o político mais influente de Itália, salientou que os populistas da Itália e da Polónia deveriam dar início a uma «Primavera europeia» e forjar um «novo equilíbrio» para substituir a influência da Alemanha e da França no Parlamento Europeu:

«A Europa que será criada em Junho será diferente da de hoje, administrada por burocratas. Na Europa sempre se falou de um eixo franco-alemão. Estamos-nos a preparar para um novo equilíbrio e uma nova energia na Europa. Haverá um plano de acção conjunta que injectará sangue novo na Europa, força nova e energia nova. A Polónia e a Itália serão os protagonistas dessa nova Primavera europeia, desse renascimento dos verdadeiros valores europeus, com menos burocracia, mais trabalho, mais família, e acima de tudo mais segurança».

Salvini está a tentar criar um novo bloco político, apelidado de «aliança dos soberanistas» (alleanza di sovranisti), que reúne nacionalistas e populistas de toda a Europa para contestar as próximas eleições para o Parlamento Europeu. O objectivo é resgatar a soberania nacional por meio da alteração da composição política do Parlamento Europeu e, por tabela, o executivo da UE, a Comissão Europeia e, a seguir, o Conselho Europeu, onde os líderes de cada país tomam as decisões mais importantes da UE.

Os membros do Parlamento Europeu supranacional organizam-se em grupos ideológicos como nas legislaturas dos seus respectivos países. Actualmente há oito blocos políticos no Parlamento Europeu. O maior deles é o Partido Popular Europeu, de centro-direita (sendo a União Democrata Cristã da chanceler alemã Merkel o seu pilar fundamental), seguido pela Aliança Progressista dos Socialistas e Democratas, pelo Grupo dos Reformistas e Conservadores Europeus e a Aliança dos Democratas e Liberais pela Europa. (ALDE) A recente decisão do partido político do presidente francês Emmanuel Macron, En Marche, de se juntar à ALDE poderia, dado que reúne as condições necessárias, torná-lo o segundo maior bloco no Parlamento Europeu, um salto da actual quarta posição, após as eleições de Maio.

Na Polónia, Salvini encontrou-se com o primeiro-ministro Mateusz Morawiecki, ministro do Interior Joachim Brudziński e Jarosław Kaczyński, o todo-poderoso líder do partido do governo Lei e Justiça (PiS), que actualmente faz parte do grupo Conservadores e Reformistas Europeus (ECR). Pelo andar da carruagem, o ECR deparar-se-á com o colapso quando o partido conservador britânico com 18 membros no Parlamento Europeu (MPE) partirem após o Brexit, o que deixaria o PiS sem uma bancada no Parlamento Europeu. É improvável que o PiS se junte ao Partido Popular Europeu visto que o maior partido da oposição na Polónia, a Plataforma Cívica, faz parte dessa bancada. Como resultado, o novo grupo liderado por Salvini poderia ser uma opção promissora para o PiS.

Salvini já convenceu os partidos populistas franceses e holandeses, União Nacional de Marine Le Pen (antiga Frente Nacional) e o Partido da Liberdade de Geert Wilders, a juntarem-se. Se o PiS e o Partido da Liberdade da Áustria, da situação, se juntassem, a aliança eurocéptica de Salvini poderia chegar a 150 representantes no Parlamento Europeu. Isto tornar-o-ia o terceiro maior bloco no Parlamento Europeu e lhe conferiria a força suficiente para influenciar a legislação da UE.

O partido Fidesz (União Cívica Húngara) do primeiro-ministro da Hungria Viktor Orbán continua a fazer parte do Partido Popular Europeu, que vem resistindo a apelos para expulsar Orbán devido às suas posições eurocépticas e anti-imigração. O porta-voz de Orbán, Zoltan Kovacs aplaudiu a intenção de Salvini de criar uma aliança populista:

«O eixo Varsóvia-Roma é um importante desdobramento com enormes expectativas. Faço votos que a Europa tenha uma força política à direita do PPE, no caso um eixo Roma-Varsóvia, capaz de governar, de assumir responsabilidades e de se opor à imigração.»

No entanto, Orbán não está disposto a deixar o Partido Popular Europeu. Observadores postulam que está inclinado a permanecer no PPE porque, sendo o grupo mais poderoso do Parlamento Europeu, irá protegê-lo de represálias dos seus opositores pró-UE.

De qualquer maneira, Salvini e Orbán prometeram criar um «eixo anti-imigração» destinado a combater as políticas pró-migração da União Europeia. Ao encontrarem-se em Milão em 28 de Agosto, Orbán e Salvini prometeram trabalhar juntamente com a Áustria e o Grupo de Visegrad, República Tcheca, Hungria, Polónia e Eslováquia, para se contraporem a um grupo de países pró-migração da UE liderado pelo presidente francês Emmanuel Macron.

Em entrevista colectiva à imprensa, Salvini salientou:

«Hoje começa uma jornada que continuará nos próximos meses em prol de uma Europa diferente, em prol de uma mudança na Comissão Europeia, das políticas europeias, que coloca no centro o direito à vida, trabalho, saúde e segurança, tudo o que as elites europeias, financiadas pelo bilionário filantropo húngaro George Soros, representado por Macron, negam».

«Estamos perto de uma guinada histórica a nível continental. Estou perplexo com a falta de sensibilidade de uma esquerda política que agora existe somente para desafiar os outros e acha que Milão não deveria receber o presidente de um país europeu, como se a esquerda tivesse a autoridade de decidir quem tem e quem não tem o direito de falar. E depois a esquerda ainda se espanta que ninguém mais vota nela».

«Esta é a primeira de uma longa série de encontros para mudar o destino, não só da Itália e da Hungria, como também de todo continente europeu».

Orbán salientou:

«As eleições europeias estão no horizonte e muitas coisas têm que mudar. No momento há dois lados na Europa: um liderado por Macron, que apoia a migração em massa. O outro liderado por países que querem proteger as suas fronteiras. A Hungria e a Itália pertencem ao segundo».

«A Hungria mostrou que tem condições de impedir que os migrantes desembarquem. Salvini mostrou que há como barrar os migrantes no mar. Estamos gratos por ele proteger as fronteiras da Europa».

«Os migrantes devem ser enviados de volta aos seus países de origem. Bruxelas diz que não podemos mandá-los de volta. Eles também disseram que era impossível impedir que os migrantes desembarcassem, mas nós impedimo-os de desembarcar».

«Ao que tudo indica Salvini e eu compartilhamos o mesmo destino. Ele é o meu herói.»

A Alemanha e a França reagiram ao desafio apostando alto na integração europeia. Em 10 de Janeiro o jornal The Times of London publicou uma matéria segundo a qual Merkel e Macron estão prestes a assinar o assim chamado «Tratado de Aachen» que «anunciará uma nova era para a integração» que «forjará políticas compartilhadas para a defesa, tanto externa quanto económica, consolidadas num pacto de 'cidades-irmãs' jamais visto, considerado um protótipo para o futuro da União Europeia».

De acordo com o The Times:«Os dois países farão lobby para que a Alemanha ganhe um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU ao lado da França, EUA, China, Rússia e Grã-Bretanha, aliados vitoriosos da Segunda Guerra Mundial».

«A França e a Alemanha também pretendem falar de forma uníssona em Bruxelas, desenhando posições comuns diante das principais reuniões de cúpula da União Europeia, com o propósito de tornar o bloco uma potência mais resoluta no cenário internacional». O tratado tem como meta sinalizar que a França e a Alemanha defenderão os valores do multilateralismo quando a ordem liberal global estiver ameaçada. Tanto o presidente Macron quanto a chanceler Merkel mostraram-se frustrados com a ascensão do populismo e do nacionalismo e com o facto da Europa estar reticente diante de problemas como as mudanças climáticas e a migração em massa...

«O breve documento será assinado em 22 de Janeiro em Aachen, a antiga cidade termal alemã perto das fronteiras com a Bélgica e a Holanda. Está previsto para ser ratificado pelos dois parlamentos nacionais no mesmo dia».

«O lugar é cheio de simbolismo. Aachen, conhecida como Aix-la-Chapelle em francês, era a capital imperial dos francos durante o reinado de Carlos Magno, passando da Alemanha para a França e vice-versa diversas vezes».

«Excertos retirados do novo tratado de Aachen retratam a 'harmonização' da regulamentação dos negócios e a coordenação da política económica dos países, orientadas por um conselho misto de especialistas».

«O texto leva a chancela do desejo de Macron em usar o consenso franco-alemão para aglutinar a UE se tornar-se mais articulada como potência global».

«Ambos os governos concordarão em realizar 'consultas regularmente em todos os níveis hierárquicos antes das principais reuniões europeias e tomarão providências para estabelecer posições comuns e emitir declarações conjuntas.' O texto ainda adianta: os dois governos se empenharão em formar uma política externa e de defesa comum forte e eficaz, além de estreitar e aprofundar a união económica e monetária».

«O texto cria a base para o conselho de defesa e segurança franco-alemão que actuará como 'grupo gestor de política', em que cada lado influenciará as decisões do outro...» Na frente militar, o tratado consagra a ambição de formar uma «cultura comum e presença comum no exterior.»

Não resta dúvida que o Tratado de Aachen enfrentará considerável oposição interna em ambos os países. Na França, sacudida pelos manifestantes do movimento «coletes amarelos», Marine Le Pen rejeitou o novo tratado como um ditame «louco de pedra» da Alemanha. Alexander Gauland, líder do partido antimigração em massa Alternativa para a Alemanha, pintou o tratado como uma «erosão da nossa soberania nacional».

A AfD (Alternativa para a Alemanha) está dividida quanto à abordagem a Salvini. Enquanto os líderes da AfD, aqueles com mais traquejo, elogiam Salvini no tocante ao seu apoio à soberania nacional e à oposição à migração em massa, Alice Weidel, líder da AfD no Bundestag (parlamento da República Federal da Alemanha), tece pesadas criticas à gestão financeira do governo italiano:

«Roma já acumula um rombo de quase 2,3 trilhões de euros. Há muito tempo que os italianos abastados transferiram o seu dinheiro para o exterior...»

«Quando a UE rejeita a proposta de orçamento da Itália, o ministro do Interior, Salvini, esperneia: 'ninguém vai tirar um euro sequer desse orçamento dos bolsos dos italianos'. Pelos vistos Salvini não se dá conta que a Itália há muito teria falido se não fosse a ajuda da UE. Como é possível vender a ideia aos europeus que no futuro próximo de 400 mil a 500 mil italianos irão para a reforma antecipada e além disso haverá uma renda mínima e um imposto fixo? Estes são benefícios de um estado de bem estar social que outros Estados Membros da UE não se atrevem nem sonhar em oferecer».

«Em média as dívidas das famílias italianas estão avaliadas em 240 mil euros, enquanto as da Alemanha em apenas 66 mil. A Itália concede amnistia aos sonegadores, mal recolhe os impostos sobre a propriedade e tem um ridículo imposto sobre herança. Ela prefere depender da solidariedade europeia ou do Banco Central Europeu para cancelar a dívida. A Alemanha será mais uma vez a fonte pagadora. Esses romanos são loucos!»

O chanceler austríaco Sebastian Kurz concorda. Ele tuitou:

«Eu não entendo a proposta orçamental que a #Italy (Itália) enviou à #Brussels (Bruxelas). É óbvio que nós não pagaremos pelas #debts (dívidas) e pelas promessas eleitorais populistas dos outros.

«Pelo menos desde a crise da #Greece (Grécia), ficou claro que o superendividamento é perigoso. Além disso, os mais fracos e mais humildes é que pagam o preço mais alto por essa política. Por esta razão, achamos por bem acabar com a política #debt (deficitária) na Áustria e enviamos um superávit orçamentário para Bruxelas».

«Esperamos, portanto, que o governo italiano cumpra com a regulamentação existente. Os critérios de Maastricht aplicam-se a todos».

Primeiro Salvini promoveu a ideia de uma rede pan-europeia de partidos nacionalistas em Julho de 2018, após o seu partido Liga formar um governo de coligação com o antigo arqui-rival, anti-establishment, Movimento 5 Estrelas (M5S).

«Para vencer tivemos que unir a Itália, agora é a vez de unirmos a Europa. Estou pensando numa 'Liga das Ligas da Europa', reunindo todos os movimentos livres e soberanos que querem defender o seu povo e as suas fronteiras.»

Salvini está debruçado sobre um programa compartilhado de dez pontos que ainda precisa ser integralmente definido. Em entrevista colectiva à imprensa em Varsóvia, Salvini salientou:

«Eu propus um pacto ao líder do PiS Jarosław Kaczyński, e pretendo propô-lo a outros, um pacto para a Europa, um contracto com compromissos específicos, uma plataforma de dez pontos baseada no modelo do contracto que assinamos em Itália. Esse acordo permitir-nos-á a superar as diferenças entre os partidos e também entre as tradições geográficas e culturais. Quero uma aliança comum entre aqueles que querem salvar a Europa. Este objectivo deve ser alcançado, antes de mais nada e acima de tudo, no próximo Parlamento Europeu».

«Propomos um programa comum a ser oferecido a outros partidos e povos da Europa, fundamentado em certos temas como crescimento económico, segurança, família, as raízes cristãs da Europa, temas que alguns em Bruxelas repudiam...»

«Iniciamos uma jornada de ideias num Parlamento Europeu que será diferente do duopólio socialista de centro-direita que sempre governou a Europa... A única certeza que tenho no tocante às eleições europeias é que os socialistas e os comunistas sempre serão minoria em Bruxelas, eles já causaram estragos além da conta´».

«Se quisermos mudar a UE, temos que ser ambiciosos, pensar grande. O nosso objectivo é estar presente em todos os países europeus e trabalhar com outras forças soberanistas.... Eu sei que há interesse pela mudança em muitos países. Este é um momento histórico: é hora de substituir o eixo franco-alemão por uma aliança ítalo-polonesa.»





domingo, 27 de janeiro de 2019

Quando a «Pasionaria» virou católica…


José Luís Andrade, Observador, 14 de Janeiro de 2019

Depois de ter sido uma das figuras maiores da máquina de propaganda de Moscovo, a «Pasionaria» acabou os seus dias reconciliada com a sua fé de infância e juventude, tendo regressado à Igreja Católica

Dolores Ibárruri Gómez, mais conhecida por la Pasionaria, foi uma encarniçada militante comunista espanhola, membro do Bureau Político do Partido Comunista de Espanha desde 1932, e sua presidente desde 1960 até à sua morte em 1989. Nascida em 1895, crescera numa família basca de simpatias carlistas, entranhadamente católica. Os parcos recursos do pai, mineiro, e a sua larga prole (11 filhos), levaram-na a ter de sair da escola aos 16 anos para ganhar a vida e ajudar a família. Pouco depois, conheceu o seu primeiro companheiro, Julián Ruiz, um militante socialista filo-bolchevista, com quem casaria em 1916. Ruiz foi determinante na sua conversão ao comunismo e, com ela, e com outros defensores da inscrição do PSOE na Internacional Comunista, fundaria o PCE, em Novembro de 1921.

Ao escrever o seu primeiro artigo em El Minero Vizcaíno, adoptou o pseudónimo de Pasionaria, ou porque o tivesse redigido durante a Semana Santa, como sugere a maioria dos seus biógrafos, ou porque o usasse nos seus anteriores textos de colaboração no boletim paroquial, como defendem alguns. Mercê do seu papel na revolução das Astúrias de 1934, iniciada pelo PSOE mas a que o PCE se anexara oportunisticamente, foi «eleita» para o Comité Executivo da Komintern, no 7.º (e último) Congresso da Internacional Comunista, em Agosto de 1935. Foi nesta reunião magna dos comunistas estalinistas que foi aprovada a estratégia das Frentes Populares que, poucos meses depois, daria frutos em Espanha. A Pasionaria seria uma das principais intérpretes dessa orientação política e uma das figuras de proa da eficaz máquina de propaganda de Moscovo.

A Dolores são atribuídas afirmações que lhe não pertencem originalmente; apenas a força da máquina propagandística lhas colou. «¡No pasarán!» tornou-se tão emblemática que os próprios adversários, quando entraram em Madrid cantavam jocosamente «¡Ya hemos passa[d]o!»; na realidade a frase foi proferida num contexto de exaltação por um ex-subordinado do marechal Pétain (o general Robert Nivelle), em Verdun, durante a Grande Guerra. E «Para vivir de rodillas, es mejor morir de pié» parece não passar de uma paráfrase do que o seu adversário José Calvo Sotelo, a quem ameaçara de morte em pleno Parlamento, lhe respondera: «Es preferible morir con gloria a vivir con vilipendio». Consta, contudo, que a afirmação «Más vale matar a cien inocentes que dejar escapar a un solo culpable» é mesmo dela.

Ora, no passado dia 8 de Janeiro, pela pena de Jesús Ruiz Mantilla, o El País noticiou que la Pasionaria acabou os seus dias reconciliada com a sua fé de infância e juventude, tendo regressado à Igreja Católica. Vários foram os relatos que testemunham que, depois de se confessar, comungava com o padre operário José María de Llanos, assistindo à missa e participando nos cânticos. Segundo uma ex-carmelita, a «madre» Teresa, Dolores «era uma mulher educadíssima, muito crente e devota da Virgem». Numa Europa cada vez mais marcada pela teofobia, tais narrativas causam certamente estupefacção. Mas não são inéditas. O próprio responsável pelo maquiavelismo da «hegemonia cultural marxista», Antonio Gramsci, o cominterniano fundador do Partido Comunista Italiano, acabou por se deixar tocar pela graça divina. Segundo relatos fidedignos da época, tendencialmente silenciados pelos curadores da memória histórica de Gramsci, este pensador comunista morreu depois de receber os sacramentos, rodeado por imagens religiosas que solicitara. Na prisão hospitalar, no Natal anterior, pedira mesmo para beijar a imagem do Menino Jesus.

Este tipo de salto para os antípodas das convicções, pouco publicitados pela natureza discreta e intimista do processo de conversão, preferida não só pela Igreja Católica mas também pelos ex-correligionários dos convertidos, não é contudo, um fenómeno novo. No último quartel do século XIX causou escândalo a conversão ao catolicismo, nos derradeiros instantes da sua vida, de Émile Littré. Discípulo de Saint-Simon e de Comte, Littré recusara aquilo que chamava os desvios místicos deste seu último mestre, sendo um profundo crente no materialismo tout-court. Poliglota e lexicólogo, foi autor de um grande dicionário da língua francesa, complementar ao movimento enciclopedista, pelo que bem cedo lhe fora assegurado um lugar de destaque na hagiografia anticlerical. As suas traduções de obras de filosofia, fossem da Antiguidade Clássica, fossem de ensaios contemporâneos, iam sempre acompanhadas de Notas ou Prefácios de negação da ordem sobrenatural e de afirmação do materialismo. A sua posterior conversão ao catolicismo, negando as convicções que defendera, levou a que fosse praticamente eliminado das referências axiais da militância anticristã, a partir de 1881.

Mas também entre nós se verificaram (e verificam) casos de surpreendentes conversões. Um deles foi a conversão, no Outono de 1909, de António Duarte Gomes Leal. Perante as comemorações do sétimo centenário do nascimento de Santo António em 1895, dos centros socialistas de Lisboa partira a ideia de organizar um conjunto de festividades alternativas, nomeadamente um Congresso Anticatólico, em 18 de Junho desse mesmo ano. Azedo Gneco, na abertura dos trabalhos, salientou que «é ao partido socialista que compete dar batalha a essa seita nefasta; se o capital esmaga, o clero embrutece». Reunindo pouco mais de meia centena de congressistas, nele se destacaram Francisco Gomes da Silva, da «loja» Cavaleiros da Paz e Concórdia, Ernesto da Silva, que criticou a Rerum Novarum e, sobretudo, o poeta Gomes Leal, que traçou as linhas gerais do que se poderia chamar o guião da missionação laica dos livres-pensadores, um autêntico catecismo anticatólico.

Sobre Gomes Leal, Raul Brandão diz «quem não viu n’outro tempo este homem extraordinário não conheceu um verdadeiro, um autêntico poeta satânico. […] Escreveu as páginas das Claridades do Sul, da Traição e d’O Anti-Christo. […] Agora vai todas as manhãs ouvir missa à Pena ou ao Resgate». Muitos jornais parodiaram-no, sobretudo após a publicação, em Janeiro de 1910, de A Senhora da Melancolia. Em A Capital, na edição de 3 de Abril de 1910, o caricaturista António de Sousa, com grande desumanidade, desconsidera-o, afirmando que «duas vezes somos crianças» e pondo-o, qual mendigo, «a pedir… para o Santo António». N’A LanternaPaulo Emílio (pseudónimo do jornalista Avelino de Almeida que anos depois experimentaria grande comoção perante o Milagre do Sol, em Fátima) dedica-lhe extensa prosa achincalhante, espalhada por vários números do periódico. Depois da sua espantosa conversão ao catolicismo, aquele que havia sido o mais radical, o mais extremista dos anticlericais republicanos, viu-se ostracizado por todos os seus anteriores correligionários até acabar por morrer na miséria.

Também o caso de Manuel Ribeiro, o presidente da Federação Maximalista Portuguesa, órgão fundado em 1919 e percursor do Partido Comunista Português, do qual Ribeiro seria dirigente com o pelouro da Educação, causou viva estupefação. Escritor de mérito, Manuel Ribeiro foi um activo divulgador das teses pró-soviéticas, tendo traduzido várias obras comunistas para português. Esteve detido alguns meses no Limoeiro como resultado da sua liderança na greve ferroviária de Junho de 1919 e sê-lo-ia, de novo, em 15 de Outubro de 1920, na sequência da ilegalização do Bandeira Vermelha de que era director. Foi no cárcere que o activo dirigente sindicalista ferroviário, e romancista anticlerical, se deixou «tocar» pelo padre Cruz, vindo a converter-se mais tarde ao catolicismo. Posteriormente, foi director da revista católica Renascença e fundou, com o padre Joaquim Alves Correia, uma outra denominada Era Nova.

Embora haja convertidos nos dois sentidos, é muito mais significativo o número dos que renegam as suas convicções teofóbicas e escolhem morrer no seio da Igreja, onde, em muitos casos, iniciaram os primeiros passos. Sobretudo quando a hora derradeira se aproxima, a fome de eternidade conduz à comunhão que liberta. Tenho um amigo nessas circunstâncias – o Luís Fernandes; provavelmente, até nem nunca recusou a Graça. Mas percebe-se que a sua esperança de eternidade o aproxima mais de Deus. A verdade é que no cair do crepúsculo da vida quando a conspícua e poluída espuma dos dias se abate, todas as glórias, orgulhos, ignomínias, desilusões, tristezas, dores, frustrações e paixões se esbatem perante a ansiedade de ser acolhido no regaço eterno de Deus. Que Ele, o Senhor da Boa Morte, te acolha, Luís, na Sua tertúlia; e, quem sabe, até talvez possas encontrar lá a Pasionaria. Seguramente, terão muito que conversar…