quinta-feira, 12 de maio de 2016


O mistério dos camiões do São Carlos


Devia ter sido feito em segredo e pela calada da noite, mas o desvio de centenas de quilos de documentos da PIDE/DGS, no auge do Verão Quente de 1975, foi testemunhado pelo próprio comandante da PSP de Lisboa



José Pedro CastanheiraExpresso, 16 de Abril de 2016

Foi numa noite do Verão Quente de 1975 em que havia Conselho da Revolução. O comandante da PSP de Lisboa estava a comer no restaurante Belcanto quando um dos donos o alertou. No Largo de São Carlos, ao pé da ópera, estavam estacionados dois camiões da Armada, para onde um grupo de marinheiros ia transportando caixotes trazidos, escadas abaixo, das ruas vizinhas. Seriamente intrigado, o tenente-coronel José Aparício mandou dois dos seus homens investigar. Os volumes vinham da antiga sede da PIDE/DGS, a polícia política da ditadura, na Rua António Maria Cardoso. Assim que os camiões se puseram em marcha, foram seguidos por dois subchefes da PSP numa viatura à paisana. Quando regressaram ao Comando da Rua Capelo, os graduados contaram que os camiões foram directamente para o aeródromo militar de Figo Maduro, contíguo ao aeroporto da Portela, tendo transferido a mercadoria para um aparelho da Aeroflot, a companhia de aviação da União Soviética.

Testemunha. O coronel José Alberto Aparício, de 79 anos,
junto à antiga sede da PIDE/DGS (hoje, um condomínio de luxo)
Foi o antigo general do KGB Oleg Kalugin quem, em 1994, confirmou nas suas memórias o que há muito se suspeitava: o desvio de inúmera documentação da PIDE/DGS para Moscovo. Mais tarde, esta operação foi documentada de forma insofismável por Vasili Mitrokhin, ex-arquivista-chefe de um dos principais departamentos dos serviços secretos soviéticos. O Expresso, através do seu correspondente em Londres, Paulo Anunciação, teve acesso ao famoso arquivo Mitrokhin, que se encontra depositado na Universidade de Cambridge, onde o antigo alto funcionário do KGB pormenoriza parte do conteúdo do acervo documental desviado para a então União Soviética, num total de 474 quilos.

Não sendo capaz de datar de forma rigorosa a operação que testemunhou, o comandante distrital da PSP de Lisboa da altura, tenente-coronel José Aparício, garante ao Expresso que «foi no Verão de 1975, muito provavelmente no tempo dos governos de Vasco Gonçalves. Fiz um relatório para o Comando-Geral da PSP. Durante muitos anos guardei uma cópia desse e de outros documentos, mas que decidi destruir. Hoje, tenho pena...»

Nomeado por Costa Gomes na Assembleia do 11 de Março

José Aparício fora nomeado comandante da PSP de Lisboa logo a seguir ao 11 de Março de 1975, na sequência do malogro do golpe de Estado liderado pelo ex-Presidente da República, general António de Spínola. O oficial já estivera em comissão de serviço na PSP antes do 25 de Abril. «A primeira vez que estive na PSP foi em 1969, era capitão, num intervalo entre duas comissões» em África. A última fora na Guiné, e seguir-se-ia mais uma, em Moçambique, de onde regressou, já major, em finais de 1973. Voltou para a PSP uma semana antes do golpe dos capitães. «Estava colocado no Regimento de Infantaria N.º 10, em Aveiro. Convidaram-me para ir de novo para a PSP de Lisboa e aceitei.»

O Comando da PSP na capital estava instalado na Rua Capelo, paredes meias com o Governo Civil de Lisboa — no espaço onde foi recentemente instalado o Museu da Polícia de Segurança Pública. No 25 de Abril de 1974, o comandante era o coronel Pedro Barcelos. «Era um homem do curso do Spínola, que também estivera na guerra civil de Espanha, mas que se portou muito bem.» O major Aparício era o oficial de operações. Consumado e vitorioso o golpe dos capitães, Spínola, o novo Presidente da República, colocou à frente da PSP de Lisboa um dos seus homens de confiança, o major Casanova Ferreira, que manteve Aparício no mesmo cargo. «O Casanova não deixou que houvesse um único saneamento político na PSP.»


Envolvido no golpe spinolista de 11 de Março de 1975, Casanova Ferreira foi de imediato destituído. «Nessa noite, eu estava como habitualmente no Comando, quando fui chamado pelo general Costa Gomes.» O então Presidente da República estava no Instituto de Sociologia Militar, na Calçada das Necessidades — actual Instituto da Defesa Nacional —, onde dirigia a Assembleia do MFA. Uma reunião que passaria para a história como a «assembleia selvagem», onde foi decretada a nacionalização da banca e dos seguros e recusada a pena de morte contra os golpistas.

Aparício não estranhou o pedido de Costa Gomes. «Conhecia-o bem. Durante o período revolucionário, dava-nos muitas vezes ordens directas, passando por cima do ministro da Administração Interna, que tinha a tutela da PSP, e do próprio primeiro-ministro.» Nessa mesma noite, num intervalo da Assembleia, Costa Gomes comunicou a Aparício que seria nomeado novo comandante da PSP de Lisboa. Dependia hierarquicamente do general Pinto Ferreira, o comandante-geral da GNR, que passara a acumular com a PSP. Além disso, «passei também a despachar com o COPCON para as questões de ordem pública». Espécie de braço armado da revolução, o Comando Operacional do Continente (COPCON) era chefiado pelo general Otelo Saraiva de Carvalho. «Ia regularmente aos briefings do COPCON, no forte do Alto do Duque, com o Otelo.» Pouco depois, foi promovido a tenente-coronel.

Em 1975 frequentou um curso intensivo em Inglaterra. «Foi o general Pedro Cardoso, que era o ‘patrão’ das informações militares no EMGFA, que me mandou. Éramos quatro, entre os quais o major Cuco Rosa, da Polícia Militar. Os britânicos ajudaram-nos muito a aprender a lidar com manifestações e situações de violência urbana.» Do seu currículo na PSP constam ainda vários cursos nos EUA, França e Israel.

Inspirado na experiência britânica, «passámos a reunir em joint committees: nós, a PJ de Lisboa, a GNR, a Guarda Fiscal, os serviços de informações e os bombeiros. As reuniões eram normalmente no meu Comando ou na PJ, na Gomes Freire. Éramos mais ou menos dez, mas operacionais, não políticos. Havia uma partilha permanente de informação, de tal modo que eu sabia quase tudo o que se passava em Lisboa.» A cooperação entre os serviços era a palavra de ordem. «Só depois é que começaram a construir muros entre as várias quintas...» À sua disposição, a PSP de Lisboa possuía uma rede de rádios portáteis Motorola, «com pagers para nos chamarmos uns aos outros». O material havia sido adquirido «antes do 25 de Abril, mas ainda estava em fase experimental».

Durante o Verão Quente de 1975, «sempre que havia reuniões do Conselho da Revolução, a gente não saía do Comando». Principal órgão do poder político e militar, o Conselho da Revolução tinha reuniões com desfecho imprevisível. Prolongavam-se muitas vezes pela noite fora, não raro até ao nascer do sol. Havia decisões tomadas na hora, a que havia que dar cumprimento imediato — e a PSP, tal como o COPCON, tinha de estar disponível. «Ao lado do meu gabinete tinha um quarto com uma cama. Dormi ali muitas noites. E não era só eu: também os comandantes de Divisão, responsáveis por várias zonas da cidade, quase todos eles oficiais do meu curso.»

«Conheci muitos dos agentes do KGB»

Uma vez que a messe da polícia encerrava depois do jantar, durante a noite, «quando era preciso, íamos comer ao Belcanto, que passou a ser uma espécie de cantina». Um dos restaurantes mais afamados do Chiado — hoje dirigido pelo chefe José Avillez —, a uma trintena de metros da PSP, o Belcanto tinha uma freguesia muito variada. Desde meninas que se dedicavam ao engate até melómanos e amantes de ópera, que ali ceavam nas noites de récita no Teatro de São Carlos, passando por políticos, homens de negócios e — nos anos efervescentes de 1974 e 1975 — pessoal dos serviços de espionagem que se haviam instalado em Lisboa. «A fina-flor dos serviços secretos estrangeiros estava em Lisboa. Sabíamos que muitos deles ficavam no Hotel Tivoli.»

Caos 1. Militares da Marinha (e Exército) fazem guarda à sede nacional da PIDE/DGS,
na Rua António Maria Cardoso, após a tomada do edifício, a 26 de Abril
Aparício conhecia alguns. «Vi o Jacques Foccart no Belcanto mais de uma vez, logo a seguir ao 25 de Abril.» Foccart era um dos responsáveis dos serviços franceses de informação, muito atento a tudo quanto se passava em África, incluindo a lusófona... “Veio ver quem mandava nisto. Foi trazido pelo genro do Jorge Jardim, o comandante Themes de Oliveira, que eu conhecia muitíssimo bem.» O Belcanto era (e é) servido por duas portas, uma que dá para a Rua Anchieta, enquanto a principal está virada para o Largo de São Carlos. «O Foccart nunca entrava e saía pela mesma porta. E sei que o Marenches também lá foi — mas esse não o cheguei a ver pessoalmente.» Director do SDECE, os serviços secretos franceses, o famoso conde Alexandre de Marenches fora quem, na manhã de 25 de Abril de 1974, ao receber em Paris o subdiretor-geral da DGS, Barbieiri Cardoso, o informara de que estava a decorrer um golpe militar em... Lisboa.

«Pelo Belcanto passava sobretudo gente dos serviços ocidentais. Pelo menos que eu soubesse.» Aparício, no entanto, também conhecia os soviéticos — desconfiando desde sempre que pertenciam ao KGB, o que o arquivo Mitrokhin viria a confirmar. «Conheci muitos dos nomes referidos no Expresso. Encontrava-os muitas vezes nas recepções das embaixadas. O Semenychev era o mais relevante: era o primeiro-secretário da embaixada, mais importante do que o próprio embaixador. Era um prazer conversar com ele: um tipo muito culto e inteligente. Tentou convencer-me a aprender russo para melhor poder ler autores como Tolstói e Dostoiévski... Foi um dos ‘diplomatas’ russos expulsos em 1981 pelo governo de Sá Carneiro... Outros dois que também conhecia eram o Boris Kesarev, chefe da delegação comercial, e o correspondente do jornal ‘Izvestia’, Viktor Nesterov.»

Caos 2. Um jornalista britânico consulta diversa documentação numa sala
O Belcanto fora fundado, como muitos outros dos melhores restaurantes de Lisboa, por galegos, e não havia praticamente um dia em que Aparício não fosse lá. «Nem que fosse para tomar um café, que é talvez o meu maior vício. Ainda hoje sou capaz de beber uma dúzia de bicas por dia, mas na altura chegava às vinte...» Frequentador habitual, «conhecia todos os sócios e empregados. Informaram-me e avisaram-me de muita coisa que se passava na cidade...»

«Chamei dois subchefes muito batidos e mandei-os seguir os camiões»

Numa das muitas noites em que havia Conselho da Revolução, José Aparício foi como de costume ao Belcanto. «Seriam umas onze e meia, estava a comer qualquer coisa, quando o Aurélio, que era um dos sócios, veio ter comigo: ‘Venha ali ver uma coisa’, disse com ar misterioso. E levou-me para o exterior.» O Teatro de São Carlos estava encerrado e no Largo não havia quase vivalma. A não ser dois camiões com a traseira encostada ao muro fronteiro, de onde se desce pelas escadas que fazem a ligação à Rua Paiva de Andrada. Aparício apurou o olhar e percebeu de imediato que eram dois camiões militares de carga, de caixa fechada de lona. As matrículas eram da Marinha, facilmente identificáveis por começarem pelas letras «AP», de Armada Portuguesa. Em redor, o movimento era intenso, com marinheiros a descerem as escadas com caixotes nos braços, que depositavam no interior dos camiões. «Pareciam dois grupos, num total de uma dezena de marinheiros — ou pelo menos fardados de marinheiros —, aparentemente comandados por um sargento.»

Caos 3. Os responsáveis da polícia política deixaram deliberadamente
os papéis de forma caótica e desorganizada
Não tendo competência para intervir em situações envolvendo a Marinha ou qualquer outro ramo das Forças Armadas — só a Polícia Militar o poderia fazer —, mesmo assim Aparício tratou de averiguar o que se passava. Atravessou a Rua Capelo e entrou no Comando da PSP. «Chamei os dois primeiros homens que encontrei. Estavam à paisana, eram da Secção de Justiça, e mandei-os ver o que se passava, donde vinham aqueles marinheiros e o que transportavam. Eles subiram ao Largo do Chiado, entraram discretamente pela Rua António Maria Cardoso, foram andando até à sede da PIDE/DGS e vieram ter comigo ao Comando.» Era do interior das instalações da extinta polícia política da ditadura que estava a sair a misteriosa mercadoria, que os marinheiros transportavam pela António Maria Cardoso; passado o Teatro São Luiz, viravam à direita na Travessa dos Teatros, seguiam à esquerda pela Paiva de Andrada e, em frente do night club Nina (que não deixava de fazer concorrência às meninas do Belcanto), desciam as escadas que conduzem ao Largo de São Carlos, onde acondicionavam as caixas nos camiões.

Caos 4. Parte do armamento encontrado no interior ainda foi utilizado
pelos «pides», que dispararam sobre civis, fazendo cinco mortos
Tudo aquilo pareceu muito estranho ao comandante da PSP. Interrogando-se sobre o que estaria a ser retirado da sede da PIDE — documentação?, armas e munições?, o que mais poderia ser? —, quis saber o seu destino. «Chamei dois subchefes muito batidos, da velha guarda, e mandei-os ver para onde iam os camiões. Lembro-me de que um era o Silva, o tipo mais eficaz que eu já conheci, sempre disponível, que me resolveu várias encrencas. Morava na Rua Conde de Almoster, em Benfica, numas casas da PSP que por lá havia.»

Os dois subchefes meteram-se num carro da PSP sem qualquer identificação e foram atrás dos dois misteriosos camiões. «Seguiram-nos de forma discreta até ao aeródromo militar de Figo Maduro», contíguo ao aeroporto da Portela. «Os camiões entraram sem qualquer dificuldade, em direcção a um avião da Aeroflot», a companhia aérea da União Soviética, para cujo interior se fez a mudança dos caixotes.

Um «Relatório Imediato» para o Comando-Geral da PSP

De regresso ao Chiado, os dois subchefes fizeram um relato ao comandante, que, por sua vez, redigiu um «Relatório Imediato». «Era uma informação elementar, própria daquele tipo de relatórios. Seriam umas dez linhas, quase telegráficas.» Como era norma, afiança o agora coronel, «o relatório foi enviado para o Comando-Geral da PSP, e decerto que também para o COPCON. Além disso, falei no caso a vários camaradas de armas, incluindo alguns amigos meus que pertenciam ao Conselho da Revolução. Lembro-me de também ter falado ao general Galvão de Melo, porque tinha sido o primeiro responsável da Junta de Salvação Nacional pela Comissão de Extinção da PIDE/DGS. Mas ninguém ligou nada a isto».

Numa investigação sumária, a PSP procurou identificar e localizar os camiões a partir das matrículas da Armada. «Pedi aos meus serviços que os descobrissem, mas nenhuma das matrículas existia.» Ou seja, «eram falsas». Anos mais tarde, «pedi a alguns camaradas da Marinha para tentarem saber o que se passara, mas nunca conseguiram apurar nada».

Caos 5. Na delegação do Porto, um grupo de civis (entre os quais jornalistas) consulta
os muitos milhares de fichas feitas e guardadas pela PIDE/DGS
Aparício reconhece que cometeu «dois erros». «Todos os aviões têm uma identificação, mas não tomámos nota da matrícula do aparelho. Não o pedi aos meus homens, e eles não o fizeram. Esse foi o primeiro erro. O segundo é que podia ter pedido, mais tarde, o plano de voo. Porque não há aparelho que saia de um aeródromo que não tenha de comunicar o plano de voo, onde está incluído o respectivo destino. Não me lembrei de o fazer, de maneira que fiquei sem saber para onde voou: se para Berlim, se para Moscovo, se para outra cidade qualquer.» Ser-lhe-ia muito fácil obter o plano de voo. «Na altura, era membro por inerência de uma comissão de segurança aeroportuária. Mas, como era da Aeroflot, imagino que tenha voado para Moscovo.»

José Alberto Aparício manteve-se à frente da PSP da capital até 1980. Viria a ser substituído no governo da Aliança Democrática, presidido por Francisco Sá Carneiro. Coronel na reforma, hoje com 79 anos, é um dos militares que acumulou mais experiência na PSP em termos operacionais. Não duvida: «A operação foi muito bem montada. Foi escolhida uma noite em que estava reunido o Conselho da Revolução, em que sabiam que não haveria ninguém nas instalações da António Maria Cardoso. Os camiões ficaram estacionados suficientemente longe da sede da PIDE, para não levantar muitas suspeitas.» Aliás, nem poderiam ficar parados diante do edifício, uma vez que não deixariam os carros eléctricos circular — é por ali que passa a famosa carreira 28 da Carris. «As matrículas eram falsas e nada me diz que os marinheiros não o fossem: podiam ser civis disfarçados com fardas da Marinha. E no aeródromo de Figo Maduro estava tudo preparado para os receber. Pode escrever: eram profissionais com todos os efes e erres.»

Aparício é incapaz de dar uma data. «Foi no Verão de 1975, muito provavelmente ainda no tempo do Vasco Gonçalves como primeiro-ministro. E na vigência do general graduado Pinto Ferreira no Comando-Geral da PSP. Esteve lá até 29 de Setembro de 1975 e desde que foi substituído nunca mais me falou.» À demissão de Pinto Ferreira não terá sido alheio o assalto e incêndio, três dias antes, da embaixada de Espanha em Lisboa, a que as forças de segurança assistiram de forma passiva.

«Há coisas que nunca se esquecem na vida»

O Expresso contactou o Ministério da Administração Interna no sentido de localizar o relatório enviado para o Comando-Geral da PSP pelo seu então comandante distrital, tenente-coronel Aparício. A resposta, transmitida pelo gabinete da ministra Constança de Sousa, foi negativa: «Apesar das diligências do Departamento de Sistemas de Informação e Comunicações [DSIC] da Polícia de Segurança Pública, não foi possível encontrar qualquer documento referente ao tema.»

Igualmente contactado foi o então comandante do COPCON, a quem Aparício admite que também enviou uma cópia do relatório. «Não me lembro de qualquer relatório desse género», afirmou o coronel Otelo Saraiva de Carvalho. «Lembro-me muito bem de ter o José Aparício nos briefings matinais do COPCON — designadamente no dia do assalto ao consulado e à embaixada de Espanha, em que a PSP não fez nada. Mas esse tal relatório nunca o vi e nunca ouvi falar dele. E estou autorizado a dizer que o mesmo aconteceu com o coronel António Jorge Cardoso, que era o chefe da Repartição de Informações do COPCON, com quem falei.» Otelo, que tem acompanhado as revelações do Expresso a partir do arquivo Mitrokhin, acredita que «a maior parte da documentação terá sido levada para Moscovo não durante o PREC mas logo a seguir ao 25 de Abril, quando se formou a Comissão de Extinção da PIDE/DGS».

Acervo. O arquivo da PIDE/DGS, depositado na Torre do Tombo, em Lisboa,
devidamente guardado, organizado e com acesso público (em cima).
Dois «boletins de informação» elaborados pela PIDE sobre o cidadão
Francisco da Costa Gomes, futuro Presidente da República e marechal (em baixo)

Durante alguns anos, Aparício conservou uma cópia do relatório, que entretanto decidiu queimar. «Destruí há alguns anos pelo fogo, na Beira Baixa, o que pessoalmente tinha guardado do tempo do PREC.» Entre o material que guardara incluíam-se «cópias dos mandados de captura do COPCON enviados à PSP e nunca cumpridos; relatórios de alguns acontecimentos em que a PSP teve intervenção nesses tempos envolvendo figuras hoje importantes e ainda no activo; notas de algumas reuniões importantes; notícias e informações de ‘rasquices’ e ‘baldas’ de muitos intervenientes desses tempos revoltos; fitas de gravação de comunicações telefónicas de, e para, o telefone directo que tinha no meu gabinete». Até que chegou um dia em que «decidi destruir tudo. Reuni tudo o que tinha, e algum tempo depois, zás, tudo ficou em cinzas». «Hoje penso que fiz bem», mesmo tendo «consciência que sob o ponto de vista histórico fiz mal».

Quanto a outras testemunhas, «infelizmente já ninguém está vivo: nem os dois polícias que mandei fazer o reconhecimento do terreno, nem os subchefes que seguiram os camiões, nem o meu amigo Aurélio, sócio do Belcanto, nem o general Pinto Ferreira, a quem apresentei o relatório». José Aparício confia, porém, na sua (excelente) memória. «Há coisas que nunca se esquecem na vida. Uma delas, por exemplo, é a origem do avião que levou os caixotes da PIDE. É que não era um avião da TWA, era da Aeroflot, não sei se me faço entender...»

O conteúdo dos caixotes só viria a ser conhecido em 1994, através do antigo general do KGB Oleg Kalugin. No seu livro «Memórias de Um Espião», aquele dissidente soviético refere a audaciosa operação que consistiu no transporte, num camião, de uma «montanha de dados classificados» para a embaixada da União Soviética em Lisboa, de onde transitaram de avião para Moscovo. Muitos outros detalhes surgiram a público em 1999, com a revelação do arquivo Mitrokhin — o ex-arquivista-chefe de um dos principais departamentos do KGB. O livro «O Arquivo Mitrokhin. O KGB na Europa e no Ocidente», da autoria do próprio Vasili Mitrokhin e do investigador britânico Christopher Andrew, foi traduzido e lançado em Portugal no ano seguinte, pela Dom Quixote. Mas os pormenores da rede portuguesa do KGB só recentemente foram divulgados pelo Expresso. Um dos apontamentos redigidos por aquele alto funcionário do KGB — que se refugiou em Inglaterra com todo o seu gigantesco acervo documental — confirma de forma inequívoca que, «no final de 1975», a organização do KGB (ou rezidentura) em Portugal «recebeu do PCP» diverso material pertencente ao arquivo da PIDE/DGS.

José Aparício leu obviamente tanto o livro de Kalugin como o de Mitrokhin. Não se espanta, porque assistiu. «O general Kalugin só comete um erro: não foi um camião, foram dois. Ah! E não foram para a embaixada da URSS, foram directamente para o aeroporto. A não ser que tenha havido mais do que uma operação!»





domingo, 8 de maio de 2016


O que acontece quando um leigo

se veste de sacerdote?


Blog Senza Pagare, 8 de Maio de 2016


«O que acontece quando um leigo se veste de sacerdote?: Uma investigação sobre o poder do uniforme» é o título de uma reportagem fruto de uma experiência social de Tom Chiarella, que comprou uma batina e disfarçou-se de sacerdote para ver e provocar reacções nos transeuntes, enquanto passeava pelas ruas de Chicago nos Estados Unidos.

O artigo foi publicado pela revista Esquire Magazine, que não costuma apresentar conteúdo católico nas suas páginas, e que posteriormente foi também utilizado pelo site ChurchPop, o qual publicou 5 curiosas descobertas que Chiarella fez depois de estar vestido com o clássico uniforme católico: a batina.

A primeira parte do artigo descreve como foi a experiência de andar vestido de batina pelas ruas de Chicago e que conclusões tira a propósito desses momentos. Chiarella chega a afirmar: «Eu não tenho uniforme. […] Tenho uma camisola azul muito catita quando quero vestir algo que me caracterize. É a minha escolha. De facto, esta é uma liberdade muito entediante, adquirida a partir de uma mudança social numa ou outra onda populista do último século. As pessoas olham para isto como uma espécie de libertação.» E acrescenta também: «Um bom uniforme tem presença. Sem dúvida, faz com que não se passe despercebido. Todos reagem. E acima de tudo, mostra com simplicidade a sua missão.»

Para efeitos de esclarecimento, Chiarella durante a sua experiência nunca mentiu a nenhuma pessoa e quando alguém perguntava se ele era um padre ele respondia que não. Aqui estão os 5 aspectos desta experiência que mais se destacam:

1. As pessoas olhavam-no para onde fosse

«Uma hora com o uniforme e soube logo isto: Num dia radiante de Verão, numa grande cidade, um padre com batina é algo digno de observar. As pessoas estabelecem imediatamente contacto visual com o Sr. Padre, inclinando a cabeça em gesto de reverência, ainda que muito ligeiramente por vezes. Da mesma forma, ficam a assistir ao sacerdote a passar. Respeitosamente. De longe.»

«Ao caminhar acompanhados, os homens deixam de lado a sua forma habitual de estar para saudar repentinamente com um: ‘Bons dias, Senhor Padre’. O que provavelmente é um hábito apreendido nos seus tempos passados na escola secundária».

2. As pessoas queriam tocar-lhe

«Por norma, quando estás de uniforme, ninguém te quer tocar. Excepto, quando se trata de uma batina; nesse caso, as pessoas vão querer tocar no sacerdote. Na grande maioria das pessoas que encontrei, pretendiam basicamente agarrar-me a mão.»

«Ao contrário do que seria expectável, a veste sacerdotal é a que tem mais procura de acção física entre os uniformes que já vesti para o mesmo efeito social. Durante todo o dia tem que se dar abraços, ajoelhar-se para falar com os mais pequenos e até, por vezes, inclinar-se para as selfies».

3) Os sem-abrigo iam ao seu encontro para pedir ajuda

«Particularmente as pessoas mais carenciadas. Durante todo o dia deparava-me com homens e mulheres a viver nas ruas. Por vezes, chegavam até mim e seguravam a minha mão. Em duas ocasiões pediram-me a bênção, a qual eu não podia dar. Não podia da maneira que eles mais queriam. E isso criou em mim um desejo de ser capaz de realizar um serviço para o mundo, contudo, encontrei uma situação em que não podia fazer nada.»

«O uniforme vem com algo de responsabilidade, caso contrário, não passava de um mera indumentária. Comecei a ajoelhar-me, oferecendo uma nota de 10 dólares e dizendo: ‘Não sou um padre, mas percebo-te’. E não podia fazê-lo apenas uma vez sem continuar a fazer umas quantas vezes mais. Chicago é uma enorme cidade, com uma quantidade imensa de almas encurraladas. Fico ainda mais entristecido do que poderia alguma vez ter imaginado depois de ver tudo isto.»

4) Veio a ser parte da rota turística da cidade

Esgotado, o autor desta experiência ainda vestido como presbítero, dirigiu-se a uma carrinha de comida ambulante, comprou a sua refeição e cumprimentou um autocarro turístico, que devolveu essa saudação ao som das buzinas.

5) É difícil ser sacerdote

Dada a maneira como muita gente recorria à sua presença em busca de alguma esperança ou de auxílio, o autor conclui depois de todas as experiências que fez com diversos tipos de uniformes: «Estranhamente, a veste sacerdotal foi a mais exigente. [...] É fácil vestir uma batina, porém, não é fácil andar com ela, de forma alguma.»

in ACI Prensa

(Tradução: Manuel Portugal e Mello)