Devia ter sido feito em segredo e pela calada da
noite, mas o desvio de centenas de quilos de documentos da PIDE/DGS, no auge do
Verão Quente de 1975, foi testemunhado pelo próprio comandante da PSP de Lisboa
José Pedro Castanheira, Expresso, 16 de Abril de 2016
Foi numa noite do Verão Quente de 1975 em que havia
Conselho da Revolução. O comandante da PSP de Lisboa estava a comer no
restaurante Belcanto quando um dos donos o alertou. No Largo de São Carlos, ao
pé da ópera, estavam estacionados dois camiões da Armada, para onde um grupo de
marinheiros ia transportando caixotes trazidos, escadas abaixo, das ruas
vizinhas. Seriamente intrigado, o tenente-coronel José Aparício mandou dois dos
seus homens investigar. Os volumes vinham da antiga sede da PIDE/DGS, a polícia
política da ditadura, na Rua António Maria Cardoso. Assim que os camiões se
puseram em marcha, foram seguidos por dois subchefes da PSP numa viatura à
paisana. Quando regressaram ao Comando da Rua Capelo, os graduados contaram que
os camiões foram directamente para o aeródromo militar de Figo Maduro, contíguo
ao aeroporto da Portela, tendo transferido a mercadoria para um aparelho da
Aeroflot, a companhia de aviação da União Soviética.
Testemunha. O coronel José Alberto Aparício, de
79 anos, junto à antiga sede da PIDE/DGS (hoje, um condomínio de luxo) |
Foi o antigo general do KGB Oleg Kalugin quem, em
1994, confirmou nas suas memórias o que há muito se suspeitava: o desvio de
inúmera documentação da PIDE/DGS para Moscovo. Mais tarde, esta operação foi
documentada de forma insofismável por Vasili Mitrokhin, ex-arquivista-chefe de
um dos principais departamentos dos serviços secretos soviéticos. O Expresso,
através do seu correspondente em Londres, Paulo Anunciação, teve acesso ao
famoso arquivo Mitrokhin, que se encontra depositado na Universidade de
Cambridge, onde o antigo alto funcionário do KGB pormenoriza parte do conteúdo
do acervo documental desviado para a então União Soviética, num total de 474
quilos.
Não sendo capaz de datar de forma rigorosa a
operação que testemunhou, o comandante distrital da PSP de Lisboa da altura,
tenente-coronel José Aparício, garante ao Expresso que «foi no Verão de 1975,
muito provavelmente no tempo dos governos de Vasco Gonçalves. Fiz um relatório
para o Comando-Geral da PSP. Durante muitos anos guardei uma cópia desse e de
outros documentos, mas que decidi destruir. Hoje, tenho pena...»
Nomeado por Costa Gomes na Assembleia do 11 de
Março
José Aparício fora nomeado comandante da PSP de
Lisboa logo a seguir ao 11 de Março de 1975, na sequência do malogro do golpe
de Estado liderado pelo ex-Presidente da República, general António de Spínola.
O oficial já estivera em comissão de serviço na PSP antes do 25 de Abril. «A
primeira vez que estive na PSP foi em 1969, era capitão, num intervalo entre
duas comissões» em África. A última fora na Guiné, e seguir-se-ia mais uma, em
Moçambique, de onde regressou, já major, em finais de 1973. Voltou para a PSP
uma semana antes do golpe dos capitães. «Estava colocado no Regimento de
Infantaria N.º 10, em Aveiro. Convidaram-me para ir de novo para a PSP de
Lisboa e aceitei.»
O Comando da PSP na capital estava instalado na Rua
Capelo, paredes meias com o Governo Civil de Lisboa — no espaço onde foi
recentemente instalado o Museu da Polícia de Segurança Pública. No 25 de Abril
de 1974, o comandante era o coronel Pedro Barcelos. «Era um homem do curso do
Spínola, que também estivera na guerra civil de Espanha, mas que se portou
muito bem.» O major Aparício era o oficial de operações. Consumado e vitorioso
o golpe dos capitães, Spínola, o novo Presidente da República, colocou à frente
da PSP de Lisboa um dos seus homens de confiança, o major Casanova Ferreira,
que manteve Aparício no mesmo cargo. «O Casanova não deixou que houvesse um
único saneamento político na PSP.»
Envolvido no golpe spinolista de 11 de Março de
1975, Casanova Ferreira foi de imediato destituído. «Nessa noite, eu estava
como habitualmente no Comando, quando fui chamado pelo general Costa Gomes.» O
então Presidente da República estava no Instituto de Sociologia Militar, na
Calçada das Necessidades — actual Instituto da Defesa Nacional —, onde dirigia
a Assembleia do MFA. Uma reunião que passaria para a história como a
«assembleia selvagem», onde foi decretada a nacionalização da banca e dos
seguros e recusada a pena de morte contra os golpistas.
Aparício não estranhou o pedido de Costa Gomes.
«Conhecia-o bem. Durante o período revolucionário, dava-nos muitas vezes ordens
directas, passando por cima do ministro da Administração Interna, que tinha a
tutela da PSP, e do próprio primeiro-ministro.» Nessa mesma noite, num
intervalo da Assembleia, Costa Gomes comunicou a Aparício que seria nomeado
novo comandante da PSP de Lisboa. Dependia hierarquicamente do general Pinto
Ferreira, o comandante-geral da GNR, que passara a acumular com a PSP. Além
disso, «passei também a despachar com o COPCON para as questões de ordem
pública». Espécie de braço armado da revolução, o Comando Operacional do
Continente (COPCON) era chefiado pelo general Otelo Saraiva de Carvalho. «Ia
regularmente aos briefings do COPCON, no forte do Alto do
Duque, com o Otelo.» Pouco depois, foi promovido a tenente-coronel.
Em 1975 frequentou um curso intensivo em
Inglaterra. «Foi o general Pedro Cardoso, que era o ‘patrão’ das informações
militares no EMGFA, que me mandou. Éramos quatro, entre os quais o major Cuco
Rosa, da Polícia Militar. Os britânicos ajudaram-nos muito a aprender a lidar
com manifestações e situações de violência urbana.» Do seu currículo na PSP
constam ainda vários cursos nos EUA, França e Israel.
Inspirado na experiência britânica, «passámos a
reunir em joint committees: nós, a PJ de Lisboa, a GNR, a Guarda
Fiscal, os serviços de informações e os bombeiros. As reuniões eram normalmente
no meu Comando ou na PJ, na Gomes Freire. Éramos mais ou menos dez, mas
operacionais, não políticos. Havia uma partilha permanente de informação, de
tal modo que eu sabia quase tudo o que se passava em Lisboa.» A cooperação
entre os serviços era a palavra de ordem. «Só depois é que começaram a
construir muros entre as várias quintas...» À sua disposição, a PSP de Lisboa
possuía uma rede de rádios portáteis Motorola, «com pagers para
nos chamarmos uns aos outros». O material havia sido adquirido «antes do 25 de
Abril, mas ainda estava em fase experimental».
Durante o Verão Quente de 1975, «sempre que havia
reuniões do Conselho da Revolução, a gente não saía do Comando». Principal
órgão do poder político e militar, o Conselho da Revolução tinha reuniões com
desfecho imprevisível. Prolongavam-se muitas vezes pela noite fora, não raro até
ao nascer do sol. Havia decisões tomadas na hora, a que havia que dar
cumprimento imediato — e a PSP, tal como o COPCON, tinha de estar disponível.
«Ao lado do meu gabinete tinha um quarto com uma cama. Dormi ali muitas noites.
E não era só eu: também os comandantes de Divisão, responsáveis por várias
zonas da cidade, quase todos eles oficiais do meu curso.»
«Conheci muitos dos agentes do KGB»
Uma vez que a messe da polícia encerrava depois do
jantar, durante a noite, «quando era preciso, íamos comer ao Belcanto, que
passou a ser uma espécie de cantina». Um dos restaurantes mais afamados do
Chiado — hoje dirigido pelo chefe José Avillez —, a uma trintena de metros da
PSP, o Belcanto tinha uma freguesia muito variada. Desde meninas que se
dedicavam ao engate até melómanos e amantes de ópera, que ali ceavam nas noites
de récita no Teatro de São Carlos, passando por políticos, homens de negócios e
— nos anos efervescentes de 1974 e 1975 — pessoal dos serviços de espionagem
que se haviam instalado em Lisboa. «A fina-flor dos serviços secretos
estrangeiros estava em Lisboa. Sabíamos que muitos deles ficavam no Hotel
Tivoli.»
Caos 1. Militares da Marinha (e Exército) fazem
guarda à sede nacional da PIDE/DGS, na Rua António Maria Cardoso, após a tomada do edifício, a 26 de Abril |
Aparício conhecia alguns. «Vi o Jacques Foccart no
Belcanto mais de uma vez, logo a seguir ao 25 de Abril.» Foccart era um dos
responsáveis dos serviços franceses de informação, muito atento a tudo quanto
se passava em África, incluindo a lusófona... “Veio ver quem mandava nisto. Foi
trazido pelo genro do Jorge Jardim, o comandante Themes de Oliveira, que eu
conhecia muitíssimo bem.» O Belcanto era (e é) servido por duas portas, uma que
dá para a Rua Anchieta, enquanto a principal está virada para o Largo de São
Carlos. «O Foccart nunca entrava e saía pela mesma porta. E sei que o Marenches
também lá foi — mas esse não o cheguei a ver pessoalmente.» Director do SDECE,
os serviços secretos franceses, o famoso conde Alexandre de Marenches fora
quem, na manhã de 25 de Abril de 1974, ao receber em Paris o subdiretor-geral
da DGS, Barbieiri Cardoso, o informara de que estava a decorrer um golpe
militar em... Lisboa.
«Pelo Belcanto passava sobretudo gente dos serviços
ocidentais. Pelo menos que eu soubesse.» Aparício, no entanto, também conhecia
os soviéticos — desconfiando desde sempre que pertenciam ao KGB, o que o
arquivo Mitrokhin viria a confirmar. «Conheci muitos dos nomes referidos no
Expresso. Encontrava-os muitas vezes nas recepções das embaixadas. O Semenychev
era o mais relevante: era o primeiro-secretário da embaixada, mais importante
do que o próprio embaixador. Era um prazer conversar com ele: um tipo muito
culto e inteligente. Tentou convencer-me a aprender russo para melhor poder ler
autores como Tolstói e Dostoiévski... Foi um dos ‘diplomatas’ russos expulsos
em 1981 pelo governo de Sá Carneiro... Outros dois que também conhecia eram o
Boris Kesarev, chefe da delegação comercial, e o correspondente do jornal
‘Izvestia’, Viktor Nesterov.»
Caos 2. Um jornalista britânico consulta diversa documentação numa sala |
O Belcanto fora fundado, como muitos outros dos
melhores restaurantes de Lisboa, por galegos, e não havia praticamente um dia
em que Aparício não fosse lá. «Nem que fosse para tomar um café, que é talvez o
meu maior vício. Ainda hoje sou capaz de beber uma dúzia de bicas por dia, mas
na altura chegava às vinte...» Frequentador habitual, «conhecia todos os sócios
e empregados. Informaram-me e avisaram-me de muita coisa que se passava na
cidade...»
«Chamei dois subchefes muito batidos e mandei-os
seguir os camiões»
Numa das muitas noites em que havia Conselho da
Revolução, José Aparício foi como de costume ao Belcanto. «Seriam umas onze e
meia, estava a comer qualquer coisa, quando o Aurélio, que era um dos sócios,
veio ter comigo: ‘Venha ali ver uma coisa’, disse com ar misterioso. E levou-me
para o exterior.» O Teatro de São Carlos estava encerrado e no Largo não havia
quase vivalma. A não ser dois camiões com a traseira encostada ao muro
fronteiro, de onde se desce pelas escadas que fazem a ligação à Rua Paiva de
Andrada. Aparício apurou o olhar e percebeu de imediato que eram dois camiões
militares de carga, de caixa fechada de lona. As matrículas eram da Marinha,
facilmente identificáveis por começarem pelas letras «AP», de Armada
Portuguesa. Em redor, o movimento era intenso, com marinheiros a descerem as
escadas com caixotes nos braços, que depositavam no interior dos camiões.
«Pareciam dois grupos, num total de uma dezena de marinheiros — ou pelo menos
fardados de marinheiros —, aparentemente comandados por um sargento.»
Caos 3. Os responsáveis da polícia política
deixaram deliberadamente os papéis de forma caótica e desorganizada |
Não tendo competência para intervir em situações
envolvendo a Marinha ou qualquer outro ramo das Forças Armadas — só a Polícia
Militar o poderia fazer —, mesmo assim Aparício tratou de averiguar o que se
passava. Atravessou a Rua Capelo e entrou no Comando da PSP. «Chamei os dois
primeiros homens que encontrei. Estavam à paisana, eram da Secção de Justiça, e
mandei-os ver o que se passava, donde vinham aqueles marinheiros e o que
transportavam. Eles subiram ao Largo do Chiado, entraram discretamente pela Rua
António Maria Cardoso, foram andando até à sede da PIDE/DGS e vieram ter comigo
ao Comando.» Era do interior das instalações da extinta polícia política da
ditadura que estava a sair a misteriosa mercadoria, que os marinheiros
transportavam pela António Maria Cardoso; passado o Teatro São Luiz, viravam à
direita na Travessa dos Teatros, seguiam à esquerda pela Paiva de Andrada e, em
frente do night club Nina (que não deixava de fazer
concorrência às meninas do Belcanto), desciam as escadas que conduzem ao Largo
de São Carlos, onde acondicionavam as caixas nos camiões.
Caos 4. Parte do armamento encontrado no
interior ainda foi utilizado pelos «pides», que dispararam sobre civis, fazendo cinco mortos |
Tudo aquilo pareceu muito estranho ao comandante da
PSP. Interrogando-se sobre o que estaria a ser retirado da sede da PIDE —
documentação?, armas e munições?, o que mais poderia ser? —, quis saber o seu
destino. «Chamei dois subchefes muito batidos, da velha guarda, e mandei-os ver
para onde iam os camiões. Lembro-me de que um era o Silva, o tipo mais eficaz
que eu já conheci, sempre disponível, que me resolveu várias encrencas. Morava
na Rua Conde de Almoster, em Benfica, numas casas da PSP que por lá havia.»
Os dois subchefes meteram-se num carro da PSP sem
qualquer identificação e foram atrás dos dois misteriosos camiões.
«Seguiram-nos de forma discreta até ao aeródromo militar de Figo Maduro»,
contíguo ao aeroporto da Portela. «Os camiões entraram sem qualquer
dificuldade, em direcção a um avião da Aeroflot», a companhia aérea da União
Soviética, para cujo interior se fez a mudança dos caixotes.
Um «Relatório Imediato» para o Comando-Geral da PSP
De regresso ao Chiado, os dois subchefes fizeram um
relato ao comandante, que, por sua vez, redigiu um «Relatório Imediato». «Era
uma informação elementar, própria daquele tipo de relatórios. Seriam umas dez
linhas, quase telegráficas.» Como era norma, afiança o agora coronel, «o
relatório foi enviado para o Comando-Geral da PSP, e decerto que também para o
COPCON. Além disso, falei no caso a vários camaradas de armas, incluindo alguns
amigos meus que pertenciam ao Conselho da Revolução. Lembro-me de também ter
falado ao general Galvão de Melo, porque tinha sido o primeiro responsável da
Junta de Salvação Nacional pela Comissão de Extinção da PIDE/DGS. Mas ninguém
ligou nada a isto».
Numa investigação sumária, a PSP procurou
identificar e localizar os camiões a partir das matrículas da Armada. «Pedi aos
meus serviços que os descobrissem, mas nenhuma das matrículas existia.» Ou
seja, «eram falsas». Anos mais tarde, «pedi a alguns camaradas da Marinha para
tentarem saber o que se passara, mas nunca conseguiram apurar nada».
Caos 5. Na delegação do Porto, um grupo de civis
(entre os quais jornalistas) consulta os muitos milhares de fichas feitas e guardadas pela PIDE/DGS |
Aparício reconhece que cometeu «dois erros». «Todos
os aviões têm uma identificação, mas não tomámos nota da matrícula do aparelho.
Não o pedi aos meus homens, e eles não o fizeram. Esse foi o primeiro erro. O
segundo é que podia ter pedido, mais tarde, o plano de voo. Porque não há
aparelho que saia de um aeródromo que não tenha de comunicar o plano de voo,
onde está incluído o respectivo destino. Não me lembrei de o fazer, de maneira que
fiquei sem saber para onde voou: se para Berlim, se para Moscovo, se para outra
cidade qualquer.» Ser-lhe-ia muito fácil obter o plano de voo. «Na altura, era
membro por inerência de uma comissão de segurança aeroportuária. Mas, como era
da Aeroflot, imagino que tenha voado para Moscovo.»
José Alberto Aparício manteve-se à frente da PSP da
capital até 1980. Viria a ser substituído no governo da Aliança Democrática,
presidido por Francisco Sá Carneiro. Coronel na reforma, hoje com 79 anos, é um
dos militares que acumulou mais experiência na PSP em termos operacionais. Não
duvida: «A operação foi muito bem montada. Foi escolhida uma noite em que
estava reunido o Conselho da Revolução, em que sabiam que não haveria ninguém
nas instalações da António Maria Cardoso. Os camiões ficaram estacionados
suficientemente longe da sede da PIDE, para não levantar muitas suspeitas.»
Aliás, nem poderiam ficar parados diante do edifício, uma vez que não deixariam
os carros eléctricos circular — é por ali que passa a famosa carreira 28 da
Carris. «As matrículas eram falsas e nada me diz que os marinheiros não o
fossem: podiam ser civis disfarçados com fardas da Marinha. E no aeródromo de
Figo Maduro estava tudo preparado para os receber. Pode escrever: eram
profissionais com todos os efes e erres.»
Aparício é incapaz de dar uma data. «Foi no Verão
de 1975, muito provavelmente ainda no tempo do Vasco Gonçalves como
primeiro-ministro. E na vigência do general graduado Pinto Ferreira no
Comando-Geral da PSP. Esteve lá até 29 de Setembro de 1975 e desde que foi
substituído nunca mais me falou.» À demissão de Pinto Ferreira não terá sido
alheio o assalto e incêndio, três dias antes, da embaixada de Espanha em
Lisboa, a que as forças de segurança assistiram de forma passiva.
«Há coisas que nunca se esquecem na vida»
O Expresso contactou o Ministério da Administração
Interna no sentido de localizar o relatório enviado para o Comando-Geral da PSP
pelo seu então comandante distrital, tenente-coronel Aparício. A resposta,
transmitida pelo gabinete da ministra Constança de Sousa, foi negativa: «Apesar
das diligências do Departamento de Sistemas de Informação e Comunicações [DSIC]
da Polícia de Segurança Pública, não foi possível encontrar qualquer documento
referente ao tema.»
Igualmente contactado foi o então comandante do
COPCON, a quem Aparício admite que também enviou uma cópia do relatório. «Não
me lembro de qualquer relatório desse género», afirmou o coronel Otelo Saraiva
de Carvalho. «Lembro-me muito bem de ter o José Aparício nos briefings matinais
do COPCON — designadamente no dia do assalto ao consulado e à embaixada de
Espanha, em que a PSP não fez nada. Mas esse tal relatório nunca o vi e nunca
ouvi falar dele. E estou autorizado a dizer que o mesmo aconteceu com o coronel
António Jorge Cardoso, que era o chefe da Repartição de Informações do COPCON,
com quem falei.» Otelo, que tem acompanhado as revelações do Expresso a partir
do arquivo Mitrokhin, acredita que «a maior parte da documentação terá sido
levada para Moscovo não durante o PREC mas logo a seguir ao 25 de Abril, quando
se formou a Comissão de Extinção da PIDE/DGS».
Durante alguns anos, Aparício conservou uma cópia
do relatório, que entretanto decidiu queimar. «Destruí há alguns anos pelo
fogo, na Beira Baixa, o que pessoalmente tinha guardado do tempo do PREC.»
Entre o material que guardara incluíam-se «cópias dos mandados de captura do
COPCON enviados à PSP e nunca cumpridos; relatórios de alguns acontecimentos em
que a PSP teve intervenção nesses tempos envolvendo figuras hoje importantes e
ainda no activo; notas de algumas reuniões importantes; notícias e informações
de ‘rasquices’ e ‘baldas’ de muitos intervenientes desses tempos revoltos;
fitas de gravação de comunicações telefónicas de, e para, o telefone directo
que tinha no meu gabinete». Até que chegou um dia em que «decidi destruir tudo.
Reuni tudo o que tinha, e algum tempo depois, zás, tudo ficou em cinzas». «Hoje
penso que fiz bem», mesmo tendo «consciência que sob o ponto de vista histórico
fiz mal».
Quanto a outras testemunhas, «infelizmente já
ninguém está vivo: nem os dois polícias que mandei fazer o reconhecimento do
terreno, nem os subchefes que seguiram os camiões, nem o meu amigo Aurélio,
sócio do Belcanto, nem o general Pinto Ferreira, a quem apresentei o
relatório». José Aparício confia, porém, na sua (excelente) memória. «Há coisas
que nunca se esquecem na vida. Uma delas, por exemplo, é a origem do avião que
levou os caixotes da PIDE. É que não era um avião da TWA, era da Aeroflot, não
sei se me faço entender...»
O conteúdo dos caixotes só viria a ser conhecido em
1994, através do antigo general do KGB Oleg Kalugin. No seu livro «Memórias de
Um Espião», aquele dissidente soviético refere a audaciosa operação que
consistiu no transporte, num camião, de uma «montanha de dados classificados»
para a embaixada da União Soviética em Lisboa, de onde transitaram de avião
para Moscovo. Muitos outros detalhes surgiram a público em 1999, com a
revelação do arquivo Mitrokhin — o ex-arquivista-chefe de um dos principais
departamentos do KGB. O livro «O Arquivo Mitrokhin. O KGB na Europa e no
Ocidente», da autoria do próprio Vasili Mitrokhin e do investigador britânico
Christopher Andrew, foi traduzido e lançado em Portugal no ano seguinte, pela
Dom Quixote. Mas os pormenores da rede portuguesa do KGB só recentemente foram
divulgados pelo Expresso. Um dos apontamentos redigidos por aquele alto
funcionário do KGB — que se refugiou em Inglaterra com todo o seu gigantesco
acervo documental — confirma de forma inequívoca que, «no final de 1975», a
organização do KGB (ou rezidentura) em Portugal «recebeu do PCP» diverso
material pertencente ao arquivo da PIDE/DGS.
Sem comentários:
Enviar um comentário