Robert Royal
O sínodo sobre a família de 2015 já acabou, depois de ter produzido vários pontos positivos, e não poucos negativos. O relatório final contém algumas reflexões espirituais fortes, inspiradas pelas Sagradas Escrituras e as tradições da Igreja. Trata também de forma realística muitas das situações políticas, sociais e culturais de famílias em todo o mundo – situações que variam muito: Desde a cultura hedonista e saturada de sexo do Ocidente às condições de guerra e perseguição do Médio Oriente e África. Alguns parágrafos eram escusados. Se o virmos apenas como uma visão geral da família, tem o seu valor. Mas o contexto em que o texto foi elaborado é outra coisa e será uma ferida aberta durante muitos anos.
Um tema repetido muitas vezes pelos padres sinodais durante as últimas três semanas é que uma Igreja preocupada com o futuro da família estaria a adoptar uma visão muito estreita se se limitasse a reflectir preocupações ocidentais sobre divorciados e homossexuais. Um dos sinais do quão longe o sínodo de 2015 já foi, apesar de ainda haver problemas, é que já não há nada daquela linguagem de «aceitar e valorizar… orientação sexual gay, sem pôr em causa a doutrina católica da família e do matrimónio», trata-se de um recuo grande em relação ao relatório intermédio de 2014. Durante o fim-de-semana, a BBC disse que o Papa Francisco tinha sido «derrotado» na questão dos homossexuais – o que não é particularmente correcto, tendo em conta que ele não defende o casamento gay. E ainda por cima, o instrumentum laboris, com o qual ele teve pouco que ver, não dizia grande coisa sobre homossexualidade. Mas a cadeia britânica não foi a única a inventar coisas de acordo com as suas próprias obsessões. Cuidado com estes relatos e com os media em geral.
Uma boa parte do relatório final é útil e reflecte uma Igreja global interessada em proclamar a Boa Nova e em corresponder às responsabilidades de todas as famílias do mundo. Quando for traduzido, valerá a pena passar algumas horas a estudar, por parte de todos os que se interessam pelos actuais problemas e pelo futuro das famílias.
Mas a questão do acesso à comunhão por parte de divorciados recasados continuou a absorver a maior parte das atenções no mundo desenvolvido – sobretudo nos media. Teria sido bom poder dizer que agora sabemos em que situação estamos. O Wall Street Journal não tem dúvidas: «Bispos entregam ao Papa uma derrota na aproximação aos católicos divorciados». (Que é como quem diz, como muitos repararam, que não existe uma referência clara ao acesso à Comunhão para estas pessoas no documento e, por isso, não existe apoio textual para uma das correntes que consta do processo sinodal desde que o cardeal Walter Kasper se dirigiu aos bispos, a convite do Papa, no dia 15 de Fevereiro de 2014). Mas o jornal romano Il Messagero leu a coisa de maneira diferente: «Sim, para os divorciados recasados». Outros, que queiram que essa seja a mensagem, também o afirmarão. Na verdade, o resultado foi, como tem sido frequente com este Papa, confuso.
Os bispos optaram por não votar sobre o documento como um todo, mas apenas nos parágrafos individuais, o que faz do texto, no fundo, uma série de reflexões apresentadas ao Papa para sua consideração e não uma afirmação global aprovada formalmente pelos padres sinodais. Teremos de esperar por Francisco para ele nos dizer o que considera que deve ser o próximo passo. Poderá ter tornado a sua vida mais complicada tanto pela forma como o sínodo foi gerido como (ver abaixo) pela forma zangada como reagiu às críticas e para com os mais conservadores.
Apesar do que se possa vir a dizer ao longo das próximas semanas, vale a pena repetir: O relatório final do sínodo não refere o acesso à comunhão para os divorciados recasados. Se é isso que o Papa quer, terá de ser ele a colocá-lo lá. Como temos dito desde o início, houve oposição clara a essa proposta em si. Por causa da controvérsia, a linguagem final sobre a relação entre a consciência e a lei moral é muito mais clara no texto final do que no instrumentum laboris. Mas alguns parágrafos do texto final – que obtiveram o maior número de votos negativos – exploram muito a ideia do «discernimento» das circunstâncias individuais e invocam o «foro interno», ou seja, a direcção privada por um padre ou bispo, chegando mesmo até à fronteira do acesso à Eucaristia, sem o pôr em palavras.
Alguns jornalistas dizem que isto se trata de uma forte defesa do ensinamento actual da Igreja, mas essa é uma caracterização demasiado optimista. Mas também não é um livre-trânsito para liberais. Houve esforços nas discussões do último dia para deixar claro que isto não era um convite para mudar a doutrina ou a disciplina. O padre Federico Lombardi sublinhou propositadamente a continuidade com os ensinamentos de São João Paulo II e Bento XVI . O cardeal de Viena, Christoph Schönborn, realçou, de forma menos convincente, que haveria critérios claros para guiar esse discernimento.
Os critérios existem, mas se são claros é outra questão. Quando se olha para o texto, o que vemos é isto (tradução da nossa autoria, uma vez que o texto em português ainda não foi publicado):
85. São João Paulo II ofereceu critérios compreensivos, que permanecem a base de avaliação para estas situações. «Saibam os pastores que, por amor à verdade, estão obrigados a discernir bem as situações. Há, na realidade, diferença entre aqueles que sinceramente se esforçaram por salvar o primeiro matrimónio e foram injustamente abandonados e aqueles que por sua grave culpa destruíram um matrimónio canonicamente válido. Há ainda aqueles que contraíram uma segunda união em vista da educação dos filhos, e, às vezes, estão subjectivamente certos em consciência de que o precedente matrimónio irreparavelmente destruído nunca tinha sido válido.»
Aqui vemos João Paulo II a ser usado para dar força à ideia de um discernimento mais vigoroso, o que em si pode ser esticar a corda, tendo em conta a forma como o discernimento é entendido hoje em dia. O que falta é o que João Paulo II diz passados dois parágrafos, no Familiaris Consortio: «A Igreja, contudo, reafirma a sua práxis, fundada na Sagrada Escritura, de não admitir à comunhão eucarística os divorciados que contraíram nova união. Não podem ser admitidos, do momento em que o seu estado e condições de vida contradizem objectivamente aquela união de amor entre Cristo e a Igreja, significada e actuada na Eucaristia. Há, além disso, um outro peculiar motivo pastoral: se se admitissem estas pessoas à Eucaristia, os fiéis seriam induzidos em erro e confusão acerca da doutrina da Igreja sobre a indissolubilidade do matrimónio».
A indissolubilidade é afirmada noutros pontos do relatório final e há passagens polvilhadas pelo texto que sugerem mais claramente aquilo que o Papa João Paulo II disse. Há também referências ao Catecismo da Igreja Católica sobre «inimputabilidade», quando as circunstâncias diminuem ou anulam mesmo a responsabilidade pessoal. Devidamente seguidas, todas estas citações poderiam significar que nada mudou na prática da Igreja. Mas oitenta padres sinodais votaram contra este parágrafo, o maior número de votos contra de qualquer parágrafo isolado porque, sem permitir explicitamente uma mudança na prática, ele tem o potencial de permitir muitas escapatórias.
A questão que está a gerar mais controvérsia é esta: O discernimento será devidamente conduzido na linha dos princípios morais firmes enunciados por João Paulo II? É aqui que alguns optam pela abordagem do Wall Street Journal e outros pela do Il Messagero. As palavras do texto são estas:
86: O percurso de acompanhamento e discernimento orienta estes fiéis em direcção a um exame de consciência sobre a sua situação diante de Deus. A discussão com o sacerdote, no foro interno, caminha juntamente com a formação de um juízo correcto sobre aquilo que bloqueia a possibilidade de uma melhor participação na vida da Igreja e sobre os passos requeridos para que ela cresça. Tendo em conta que na mesma lei não existe gradualidade (cf. Familiaris Consortio 34), este discernimento nunca pode prescindir das exigências evangélicas de verdade e caridade, como propostas pela Igreja. Para que isto possa acontecer, devem ser garantidas as condições necessárias de humildade, reserva, amor pela Igreja e pelos seus ensinamentos, na busca sincera pela vontade de Deus e no desejo de responder a ela de forma mais perfeita.
Para chegar a este texto foi preciso muito ajuste e os peritos em teologia irão sem dúvida analisá-lo cuidadosamente. Mas lendo-o como está, e retirado do contexto polémico, até se poderia dizer que tinha sido escrito por João Paulo II. A frase que eu destaquei em itálicos parece dar bastante força à necessidade de uma mudança de vida para remover obstáculos, mais do que outra coisa qualquer. E quando se diz que não existe gradualidade na lei, está-se a dizer que as pessoas se aproximam gradualmente daquilo que devem seguir, mas que a lei é constante e não pode ser abrogada simplesmente porque há pessoas que levam mais tempo a harmonizar-se com ela. Ainda assim, há uma razão pela qual 64 padres sinodais votaram contra este parágrafo, talvez não tanto pelo que diz, mas por aquilo a que poderá conduzir no actual clima que se vive na Igreja.
Mas também vale a pena notar os votos para o Conselho do Sínodo, o grupo que governa os próximos sínodos. Tal como disse na sexta-feira (apesar de os resultados oficiais ainda não serem públicos nessa altura), estes mostram basicamente que existe uma maioria de dois terços a favor do ensinamento católico tradicional. O jornalista Sandro Magister disse durante o fim-de-semana que o arcebispo Charles Chaput, de Filadélfia, foi quem recebeu o maior número de votos de todo o mundo, embora os cardeais George Pell e Robert Sarah também tenham tido números significativos. Isto são excelentes notícias. Das américas temos também o canadiano Cardeal Marc Ouellet (um tipo formidável), e o cardeal Oscar Maradiaga (muito próximo do Papa). Da Ásia os cardeais Pell, Oswald Gracias (Bombaím) e Luis Antonio Tagle (Manila). De África os cardeais Sarah, Wilfred Napier, e o bispo Mathieu Madega Lebouakehan, do Gabão.
Só na Europa é que as escolhas foram mais fraquinhas: Schönborn, o arcebispo inglês Vincent Nichols e o arcebispo Bruno Forte (cardeais italianos fortes como o Scola, o Caffara e o Bagnasco tiverem também muitos votos individuais, e se os italianos se tivessem unido atrás de um candidato, este teria arrasado). Em todo o caso, na medida em que o Conselho do Sínodo conduzirá os eventos futuros, há uma preponderância de figuras sérias e a sua selecção demonstra o sentir geral dos padres sinodais.
O próprio Papa não estava particularmente contente no final dos procedimentos, embora como é hábito em eventos do Vaticano a linha oficial tenha sido que tudo terminou numa grande demonstração de fraternidade e sinodalidade, incluindo uma ovação de pé no final do seu discurso. Entre muitas afirmações positivas, contudo, Francisco expressou irritação com partes da conversa. «Ao longo deste sínodo foram livremente expressas opiniões diferentes – por vezes, infelizmente, de forma pouco caridosa…»
E nas suas declarações sobre a razão de ser do sínodo, disse: «Tratou-se de abrir os corações fechados, que frequentemente se escondem mesmo atrás dos ensinamentos da Igreja ou das boas intenções, para se sentarem na cátedra de Moisés e julgar, por vezes com superioridade e superficialidade, os casos difíceis e as famílias feridas».
Este é um tema recorrente com ele. Ninguém negaria que existem pessoas autoritárias entre aqueles que enfatizam os ensinamentos tradicionais – tal como há pessoas autoritárias com opiniões teológicas contrárias. Mas estas são as franjas, os poucos. Muitos clérigos e leigos ficaram ofendidos – e enfurecidos – com esta afirmação. É justo sublinhar que pode bem ter estado a dizer que alguns tradicionalistas são duros de coração, mas não foi essa a leitura que a maioria das pessoas fez e é natural que isso venha a exacerbar as divisões que já existem.
Esta é a realidade com que teremos de lidar nos próximos tempos na Igreja. O Relatório Final é um texto tolerável, sobretudo tendo em conta que é produto de uma comissão de 270 pessoas. Se tivesse aparecido durante o pontificado de João Paulo II, teria causado pouco alarido. Mas num contexto de suspeição mútua e de revolta, o tolerável pode bem tornar-se intolerável.
Robert Royal é editor de The Catholic Thing e presidente do Faith and Reason Institute em Washington D.C.