Cardeal Walter Brandmüller
3. O CENÁRIO JURÍDICO
Após esta descrição sintética dos acontecimentos será examinado o cenário no
qual se desenvolveram.
Para fazê-lo é necessário primeiro observar que o matrimónio entre Lotário II e
Teutberga tinha sido contraído por motivos políticos. O rei ligava-se de tal
modo com a casa nobiliar que, na região dos vales alpinos, controlava
importantes pontos estratégicos. Podia assim esperar melhorar a própria posição
de partida com uma intervenção no território dos burgúndios. O irmão de
Teutberga era, além disso, abade leigo no convento de S. Maurice d'Agaune,
situado numa posição estratégica. A outra esperança nutrida por Lotário, ou
seja, a de expulsar o irmão menor Carlos de Borgonha para subir ao trono, foi
no entanto frustrada quando o Papa Bento III conseguiu resolver de modo
pacífico a luta entre os dois irmãos no ano a seguir ao matrimónio de Lotário
com Teutberga.
Assim, a razão política do matrimónio tinha-se tornado inconsciente. A isto
juntavam-se a antipatia pessoal e talvez ainda um conflito profundamente
radicado, com a família de Teutberga. Lotário voltou de novo para junto de
Gualdrada, com a qual tinha vivido anteriormente em relação de Friedelehe,
da qual tinham nascido um filho de nome Hugo e diversas filhas.
Coloca-se por isso a questão sobre a qualidade jurídica, e portanto, também
sacramental, desta primeira união. Se se tratasse de um matrimónio
juridicamente válido e portanto sacramental, o matrimónio com Teutberga teria
sido impossível logo à partida. Isso, no entanto, pode ser excluído, uma vez
que Lotário tem um contrato válido de matrimónio com Teutberga.
O que era então a Friedelehe de Lotario com Gualdrada?
A literatura da história do direito não oferece um quadro claro e inequívoco.
Pode no entanto estabelecer-se o quanto segue: a Friedelehe –
de friedila, ou seja amante, consorte – realizava-se através do
consenso entre homem e mulher, o Brautlauf (termo com o qual
se definiam os usos esponsais), e o concúbito. Com esta forma de comunhão o
homem não obtinha a Munt, ou seja a potestade conjugal sobre a
mulher. Não era pago um Muntschatz; era portanto um matrimónio sem
dote. Todavia, a mulher recebia a Morgengabe, um presente precioso
oferecido na manhã seguinte. Em particular a Friedelehe era
escolhida – falamos aqui no âmbito jurídico germânico – quando havia
disparidade de classes, quando o homem passava a fazer parte da família da
mulher através do matrimónio ou em caso de rapto. Este tipo de matrimónio
existia também como matrimónio secundário. É portanto neste tipo de relação que
conviviam Lotário e Gualdrada.
Deste se distinguia substancialmente a assim chamada Muntehe,
fundada sobre um contrato entre duas famílias implicadas, ou seja entre o
esposo e o pai ou o tutor da esposa. Em tal caso, o esposo recebia a Munt da
mulher, ou seja a tutela, e como contrapartida pagava o Muntschatz,
isto é, o dote, também chamado Wittum, (contra-dote). A conclusão
desse contrato era seguida por uma série de actos jurídicos: a entrega solene
da mulher, o acompanhamento dela até à casa do esposo (o chamado Brautlauf)
e o concúbito. Através deste tipo de matrimónio, a mulher assumia a posição de
patroa da casa e na manhã a seguir à primeira noite de núpcias recebia a Morgengabe.
Era isto que estava em vigor no âmbito jurídico franco-germânico. E era
precisamente esta a situação perante a qual se encontrou a Igreja no seu
esforço por fazer valer a exigência de Cristo da unidade e indissolubilidade do
matrimónio. A luta da Igreja por uma civilização e por uma cristianização do
matrimónio não deveria recomeçar somente junto dos Germanos. Foi uma luta que –
por motivos que aqui nãe estudamos – começou relativamente tarde. Só Bonifácio
conseguiu, com o apoio dos príncipes francos Carlos Magno e Pepino, fazer com
que a lei de Deus adquirisse valor universal. Os numerosos sínodos para a
reforma, convocados por Bonifácio, proporcionaram um foro adequado a tal fim. A
partir daquele momento se impôs o princípio formulado por Bento o Levita: «Nullum
sine dote fiat coniugium nec sine publicis nuptiis quisquam nubere praesumat»
(nenhum matrimónio deverá ser contraído sem dote, e ninguém deve ousar casar sem
núpcias públicas».
Embora se possa afirmar que a Muntehe, o matrimónio contratual,
finalmente prevaleceu, ficam muitas dúvidas sobre se com isto a Friedelehe foi
abandonada. Paul Mikat vê nisto uma desiderato urgente da investigação e Werner
Ogris, no manual de História do Direito Alemão (Handwörterbuch zur deutschen
Rechtsgeschichte), não obstante toda a incerteza sobre os pormenores,
sustenta que «a existência, no âmbito germânico, de um matrimónio morganático
sem dote e sem potestade, dificilmente pode ser fundamentadamente posta em
dúvida».
Entretanto, exactamente por influência da Igreja, o desenvolvimento foi na
direcção do facto de que «a Friedelehe se distinguisse cada
vez mais da Muntehe, e acabou necessariamente por aproximar-se da
união sexual não conjugal». Indicativo disto mesmo é a utilização indistinta da
palavra concubina quer para a mulher na Friedelehe quer para a
verdadeira concubina.
Dadas as circunstâncias era urgentemente necessário verificar, no caso
específico de Lotário, se antes de ter contraído matrimónio com Teutberga ele
tinha contraído um matrimónio secundum legem et ritum (segundo
a lei e o rito) com Gualdrada, como Nicolau pediu que fosse feito pelos seus
legados. Ele insistiu de modo particular sobre a dotação e sobre a consagração
do matrimónio: «Informa-nos o mais depressa possível se o rei desposou
Gualdrada com a apresentação e entrega do dom nupcial perante testemunhas,
segundo o direito e o costuma, e se Gualdrada lhe foi dada em matrimónio
publicamente».
Por outro lado, não dispomos de nenhuma fonte a testemunhar que a Igreja
tivesse alguma vez reconhecido uma Friedelehe como matrimónio.
E isto encontra confirmação no facto de que não foi levantada nenhuma objecção
por parte da Igreja quando Lotário, depois de se ter separado de Gualdrada,
contraíu matrimónio com Teutberga.
Paul Mikat conclui desta forma a sua profunda análise Dotierte Ehe –
rechte Ehe de 1984: «O desenvolvimento do direito matrimonial em época
franco-merovíngia e também nos séculos seguintes mostra quanto fosse difícil
para a Igreja fazer valer entre os germanos a sua concepção de matrimónio e o
seu direito matrimonial. No processo de afirmação, uma função particular coube
ao direito sobre a celebração do matrimónio que, no entanto a Igreja enfrentou
só tardiamente com hesitação. Não dispunha de um modelo para a celebração do
matrimónio eclesial e podia aceitar o direito vigente sempre que este
representasse uma forma de matrimónio que a Igreja pudesse reconhecer
plenamente do ponto de vista teológico, ou seja, quando a forma do matrimónio
correspondia aos princípios da indissolubilidade e da comunidade de vida
monogâmica. Os desenvolvimentos que se deram desde meados do século VIII
confirmam claramente o carácter funcional que a Igreja atribuía ao direito
sobre a celebração do matrimónio; eles demonstram que a influência da Igreja
sobre o direito relativo à celebração do matrimónio era intimamente ligada ao
seu esforço por fazer valer a sua compreensão do matrimónio».
Partindo destes pressupostos, não se pode considerar senão como coerente o
facto de Nicolau I ter definido como grave impiedade a tentativa de contrair
uma Muntehe com Gualdrada. Fez isto nada menos do que para
satisfazer as exigências da justiça e por isto ordenou uma atenta investigação
através do já mencionado sínodo de Metz e dos seus legados, Radoaldo e João. O
seu encargo era, antes de mais, o de descobrir se a afirmação de Lotário de que
tinha recebido Gualdrada como mulher da parte do seu pai era correcta. Tal
seria o caso se Lotário tivesse tomado Gualdrada como mulher «depois de ter
havido a entrega do dom nupcial perante duas testemunhas, segundo o direito e o
costume». Se tivesse sido este o caso, surgia a pergunta de que porque é que
depois a tinha repudiado e tinha casado com Teutberga. Se no entanto, Lotário
afirmava ter casado com Teutberga por medo, então era preciso perguntar-se como
é que um rei tão poderoso tinha chegado a transgredir o mandamento de Deus por
medo de um homem, e cair tão em baixo.
Se, em vez disso fosse claro que Gualdrada não era de facto sua legítima
consorte, porque não era casada com Lotário de acordo com os usos e com a
bênção de um sacerdote, os legados teríam devido fazer compreender ao rei que
devia retomar Teutberga, se esta estivesse sem culpa. Ele não deveria seguir a
voz da carne, mas sim obedecer ao mandamento de Deus. Deveria isso sim temer
apodrecer na lama da luxúria tendo seguido o próprio querer e lembrar que teria
que prestar contas diante do trono do Juiz. O Papa, além disso, transmitiu aos
legados que Teutberga já se tinha dirigido três vezes à Sé Apostólica,
lamentando-se de ter sido afastada injustamente e declarando que tinha sido
coagida a uma confissão falsa. Se Teutberga acolhesse o seu convite para
apresentar-se ao sínodo, os legados deveriam examinar em consciência a sua
causa. Se ela confirmasse a acusação de ter sido coagida à referida confissão,
isto é, de ter sido condenada por juízes injustos, esses então deveriam decidir
segundo a equidade e a justiça, para que ela não viesse a ser esmagada pelo
peso da injustiça.
Em tudo isto Nicolau – e este é um aspecto interessante – não ignora de forma
alguma o destino de Gualdrada. Acusa Lotário, de facto, de se ter comportado
também para com ela de forma celerada. Em seguida, muitos bispos receberam
cartas da parte do Papa, em que eram convidados a exercer a sua influência
sobre Lotário para o fazer voltar ao caminho recto. A este último escreveu em
finais de 863: «Cedeste tanto aos impulsos do teu corpo, que soltaste as rédeas
da tua vontade. Assim tu próprio, que estás colocado como guia do teu povo te
tornaste para muitos causa de ruína!». Uma vez que estes e outros avisos foram
vãos, quer Lotário quer Gualdrada foram excomungados; esta última em 13 de
Junho de 866. No ulterior curso das questões que não puderam ser resolvidas
durante a vida de Lotário II, a posição do Papa não mudou sobre nenhum ponto.
Se examinarmos na sua globalidade a tomada de posição de Nicolau I e de Incmaro
de Reims nesta causa, torna-se evidente que um e outro seguem a corrente da
tradição jurídica canónica e da fé na unidade e na indissolubilidade do
matrimónio sacramental.
Emerge ainda um outro dado: na medida em que a Igreja conseguiu que esta
concepção do matrimónio se afirmasse, o matrimónio perdeu toda a função
utilitarista.
Embora nunca tenha sido possível evitar que fossem celebrados matrimónios
(simulados) ao serviço de interesses políticos, dinásticos ou até financeiros,
naqueles lugares onde a dignidade da pessoa e os direitos pessoais das mulheres
eram sacrificados, enquanto que os homens se sentiam impelidos a romper o
matrimónio com uma mulher não amada, seja Incmaro de Reims, seja sobretudo
Nicolau I propõem a dignidade e os direitos de uma mulher acima da
arbitrariedade de um poderoso. Incmaro, fazendo referência ao direito canónico,
sublinha expressamente que mesmo a esterilidade da esposa não pode ser um
motivo para dissolver um matrimónio válido, e menos ainda para contrair um novo
matrimónio.
Por sua vez, Nicolau, que não ignorava de forma alguma as culpas de Gualdrada,
considera-a, no entanto uma vítima da paixão de Lotário. Através das
explicações muito eficazes contidas numa carta de 30 de Outubro de 867 a
Ludovico, tio de Lotário, o Papa dá um ulterior testemunho da sua visão personalista
do matrimónio, quase anacrónica para aquela época. Pede a este tio que exerça a
sua própria influência sobre Lotário, para que não só acolha Teutberga
novamente como mulher e lhe restitua os seus direitos, o que já tinha sido
alcançado graças ao legado Arsénio, mas que a trate também verdadeiramente como
sua mulher. De que serve, pergunta Nicolau, se Lotário com os pés do próprio
corpo deixa de se deslocar para Gualdrada enquanto que com os passos do
espírito corre ao seu encontro? E de que serve se, separado externamente de
Gualdrada, continua intimamente a estar fundido com ela? Enfim, também
Teutberga não pode estar satisfeita com a proximidade física do marido se não
existe proximidade espiritual, uma vez que Gualdrada continua a exercer o seu
poder como se fosse ela a rainha!
Perante afirmações tão claras e nítidas é necessário precaver-se de um clichè que
define a compreensão do matrimónio de amor fundamentado sobre uma ligação
espiritual só como uma conquista da idade moderna. É precisamente esta tomada
de posição de Nicolau I sobre o matrimónio de Lotário que mostra o quanto o
conceito cristão de matrimónio se distinguia da visão – e da prática –
germânica pré-cristã. Mesmo sobre a questão «mulher e Igreja», agora tanto na
moda, desce uma luz até agora percebida com dificuldade.