quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016


A morte não é direito


Henrique Raposo, Jornal Expresso, 13 de Fevereiro de 2016

Cresci numa cultura que promove o suicídio. No Alentejo, a eutanásia não é um debate, é uma forma de convívio. «Atão não se houvera de matar!». O suicida até é glorificado pelos alentejanos, o que acabou por cavar um abismo entre mim e os meus antepassados. Uma cultura que aceita o suicídio e a eutanásia está no caminho errado. Querem um exemplo? Muitos alentejanos matam-se porque «estão a dar trabalho» à família por causa da doença. Ora, devem dar trabalho. O fim da vida não é a perfeição biológica. A doença e a velhice fazem parte do pacote. É claro que os velhos e os doentes dão trabalho às famílias, às comunidades, ao Estado. É nosso dever tratar deles, é nosso dever retirar qualquer tipo de legitimidade ao desabafo «mato-me para não dar trabalho». Uma lei que legaliza a eutanásia directa faz o contrário, legitima este desespero e traz o Alentejo para o resto do país. Lamento, mas temos de fazer o contrário. Há que trazer o resto do país para o Alentejo. O suicídio não pode ser um acto social e colectivo.


Lamento, mas nada disto faz sentido. É tudo demasiado desconcertante. É desconcertante ver como a atmosfera intelectual obcecada com a vida animal é a mesmíssima atmosfera que aceita activa ou passivamente a morte de seres humanos (na fase intra-uterina e na velhice). De igual forma, é desconcertante assistir ao estertor do progressismo, que nas últimas décadas elevou a morte à condição de direito fundamental. Lamento interromper o coro da unanimidade já cozinhada, mas a morte não pode entrar no arsenal legislativo de um Estado que preza a vida e o livre arbítrio. Não há mortes beneméritas, misericordiosas ou úteis. A morte não leva adjectivo. Em consequência, um Estado civilizado não pode aceitar a pena de morte como punição aceitável, não pode aceitar o aborto como método contraceptivo, não pode aceitar a legitimação da eutanásia directa — a morte a pedido. Uma coisa é a família em articulação com os médicos decidir desligar a máquina que suporta um homem inconsciente; outra coisa é uma pessoa escolher a morte no cardápio do hospital. A primeira é orgânica, indirecta e nasce numa decisão colegial. A segunda é directa e parte de uma decisão desesperada que não pode ser legitimada pela lei. Um acamado que pede para morrer já não é um homem dotado de livre arbítrio, é apenas um homem reduzido à condição de animal acossado pela biologia. O nosso dever é evitar essa queda na condição animal.

E aqui entra a questão da medicina e da retórica da «guerra contra o cancro». Qual é o problema desta narrativa? É desistirmos de quem não consegue ganhar a tal «guerra». E, de facto, a medicina desiste de quem «perde». Por outras palavras, este debate só será sério quando existir entre nós uma rede de cuidados paliativos que resgate os doentes daquela queda animal provocada pela dor. Os cuidados paliativos não podem continuar a ser o parente pobre da medicina. Os frágeis e «derrotados» não podem ser esquecidos. Pelo contrário, os «derrotados» devem ter prioridade na fila do respeito. Respeito da família, respeito da medicina, respeito de um Estado que não pode aceitar a morte com bonomia.






A presença de Fátima no encontro de Havana


José Milhazes, Observador, 13 de Fevereiro de 2016

O templo ortodoxo em Fátima continua aberto mas, ao visitá-lo, sentimos a falta da bela imagem da Mãe de Deus de Kazan. Talvez fosse boa ideia fazer uma cópia do ícone para o centenário das Aparições.

O encontro histórico entre o Papa Francisco e o Patriarca Ortodoxo russo Kirill realizou-se em Havana, capital de Cuba, mas a verdade é que, mesmo que de forma indirecta, Fátima esteve presente nele. Esta presença materializou-se na cópia do ícone da Mãe de Deus de Kazan que Kirill ofereceu a Francisco.

Esse ícone está estreitamente ligado ao segundo segredo de Fátima que preconizava o regresso da Rússia, depois de uma terrível passagem por um regime ateu, à família cristã.

Segundo reza a lenda, a imagem original da Mãe de Deus de Kazan foi milagrosamente descoberta em 1579 por uma menina na cidade de Kazan, hoje capital da Tartária, após a conquista dessa cidade pelo czar russo Ivan o Terrível.

Esta imagem esteve presente nos momentos em que a independência da Rússia se viu em perigo. Existem testemunhos de que cópias desse ícone estiveram, por exemplo, nos arredores de Moscovo e em Stalingrado durante os sangrentos combates entre o Exército Vermelho e os invasores nazis na Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Uma das cópias mais antigas e mais valiosas da imagem de Nossa Senhora de Kazan, pintada no século XVIII no mosteiro ortodoxo do Sul da Rússia e ornada com dezenas de pedras preciosas e pérolas, foi levada para o estrangeiro pelas tropas comunistas na guerra civil que assolou a Rússia entre 1917 e 1922.

Depois de ter passado pelas mãos de vários coleccionadores, a relíquia foi adquirida pela organização católica norte-americana Exército Azul, que a trouxe para a Cova da Iria.

O ícone foi instalado num templo ortodoxo (bizantino) construído para o efeito em 1972 e que ainda hoje pode ser visto por detrás do Santuário de Fátima.

A presença desse ícone devia ser temporária, pois estava previsto que ela seria devolvida à Igreja Ortodoxa Russa logo após a queda do comunismo na União Soviética em 1991. Por isso, durante a visita de João Paulo II a Fátima em 1991, o ícone foi entregue ao Sumo Pontífice católico para que o devolvesse a Alexis II, então Patriarca de Moscovo.

É sabido que um dos sonhos desse Papa era visitar a Rússia, mas tal acabou por não acontecer. Por isso, o acto de entrega da obra deveria ocorrer em 1997, num encontro dos chefes das duas Igrejas Cristãs que estava marcado para a Áustria. Porém, a Igreja Ortodoxa Russa anulou o encontro a pretexto de que os católicos estavam a fazer missionação (proselitismo) na Rússia e de que os uniatas, cristãos ortodoxos que reconhecem a primazia do Papa de Roma, estavam a ocupar ilegalmente templos ortodoxos na Ucrânia.

Depois de aturadas conversações, o ícone acabou por ser entregue pelo Vaticano aos ortodoxos russos em 2004, tendo sido recebido com todas as honras e veneração no Kremlin de Moscovo.

O templo ortodoxo em Fátima continua aberto, mas, quando o visitamos, sentimos a falta dessa bela imagem da arte religiosa russa. Por isso, talvez não fosse má ideia fazer mais uma cópia do ícone e instalá-lo nesse templo em 2017, centenário das Aparições. Seria mais um símbolo da ligação de Fátima à Rússia e da aproximação das duas Igrejas irmãs que estiveram de costas voltadas durante quase mil anos.






Proposta de legalização da Eutanásia

– Tomada de posição



A sociedade portuguesa foi confrontada, mais uma vez, com uma proposta que atenta contra a vida humana: a legalização da eutanásia; esta é apresentada sob a aparência de um acto de misericórdia e escondida numa capa de compaixão, procurando ocultar a realidade do que se propõe: tornar legal que os médicos matem, a pedido, determinados doentes. Apelidada, de forma camuflada, de «morte assistida» ou de «morte com dignidade», a eutanásia é entendida como um direito, um exercício de liberdade de pessoas com doenças incuráveis e em sofrimento intolerável, exigindo-se, para isso, por parte dos médicos, o dever de matar os doentes, a seu pedido.

No pressuposto de que a vida não tem sempre o mesmo valor e de que há vidas e fases da vida que podem ser «descartadas», considera-se que a pessoa concreta, afectada pelo sofrimento, com uma doença incurável ou muita idade, se transforma numa vida indigna e prescindível.

Por detrás desta aparente morte misericordiosa existe o risco de os interesses economicistas aflorarem como prioridade numa sociedade onde a pessoa real, o cidadão individual, deixou de ser uma prioridade. Na sociedade do «bem-estar» e da «qualidade de vida», regida exclusivamente por parâmetros economicistas, a visão do ser humano é totalmente orientada por critérios de utilitarismo, para os quais os cidadãos apenas têm valor se «forem úteis» à sociedade. A marginalização crescente e totalitária dos fracos, dos doentes, dos deficientes, dos que sofrem, dos que não têm voz, tornou-se institucional e aparece camuflada sob rótulos de eficiência e de eficácia. Num contexto de envelhecimento da população e de crise económica, é bem aceite pelos Estados a proposta de, face aos custos crescentes na saúde, se suspenderem os tratamentos mais onerosos a doentes mais idosos ou declarados incuráveis.

Mas há, ainda, outros riscos, relativos a pessoas jovens, com patologias crónicas, abrindo-se a porta a que, em nome do exercício da liberdade e da autonomia, as pessoas não sejam ajudadas a viver a doença, mas, sim, encaminhadas a acabar com a sua vida.

Perante o facto de um atentado contra a vida humana, não podem os médicos, no exercício da sua acção profissional, praticar a eutanásia, como consta do seu código deontológico, pois o dever do médico, reiteradamente reafirmado no juramento de Hipócrates, é defender a vida humana, respeitando-a, procurando preservá-la e cuidar dela, usando todos os meios disponíveis para aliviar o sofrimento dos doentes. Se este princípio fosse quebrado, ficariam sem confiança nos médicos aqueles que os procuram e que deles precisam. Os médicos, numa atitude de cuidado e de proximidade com as pessoas, tudo devem fazer para que, com a sua competência e dedicação, a vida seja protegida em todas as fases do seu desenvolvimento, incluindo a do seu fim.

Para a Associação dos Médicos Católicos Portugueses é incompreensível que a sociedade não se preocupe em investir nos cuidados de saúde de modo a proporcionar aos doentes todos os cuidados necessários à sua situação concreta; estranha-se, na verdade, que, em vez de se apresentarem propostas para melhorar os cuidados de saúde dos idosos, para apoiar os doentes crónicos e as suas famílias, em tempo de grande dificuldade para o Serviço Nacional de Saúde, se discuta e se apresente como solução a eutanásia; é lamentável que, em vez de se lutar por proporcionar todos os meios disponíveis para se cuidar dos mais idosos, das doenças oncológicas e neuro-degenerativas, haja a preocupação, não em oferecer os melhores cuidados disponíveis e em proporcionar os recursos para que isso aconteça, mas em desprezar os meios de que se dispõe e, em nome de ideologias, proclamar a eutanásia como um direito.

Aquilo por que, na realidade, as pessoas anseiam é experiência profissional, afecto, fuga à solidão, consolo e ajuda, em momentos difíceis, de alguém que as ajude a encontrar sentido para a vida, uma vez que o desejo mais profundo de cada pessoa é viver.

Os riscos que a abertura da porta da legalização da eutanásia acarretaria não são de todo calculáveis, como se pode já verificar em países europeus onde a eutanásia foi legalizada. Esperamos que Portugal seja um testemunho na luta pela defesa do valor da vida humana.





segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016


Trocar o Carlos

pelo São Carlos e as carmelitas


José Maria C.S. André, Correio dos Açores, 14 de Fevereiro de 2016

Há um ano, toda a gente se identificava com o Carlitos, o célebre semanário «Charlie», vítima de um ataque terrorista. Desta vez, é caso para nos identificarmos com o Teatro Nacional de São Carlos, que levou à cena a história de 16 carmelitas guilhotinadas pela Revolução Francesa. O tema da ópera não é o terror daquele regime, nem são os algozes, o protagonismo vai inteiro para uma história de amor, uma aventura radical vivida em equipa.

O acontecimento tem direito a destaque por várias razões. Citando o encenador, Luís Miguel Cintra, os espectáculos de ópera costumam ser divertimentos mais ligeiros, ao gosto do público endinheirado que frequenta esse ambiente; desta vez, foi tudo muito a sério. Mesmo a sério. A imprensa elogiou, em título garrafal: «Luís Miguel Cintra ensina-nos a morrer»... Além disso, raramente uma produção inteiramente portuguesa atingiu uma qualidade artística superlativa; esta foi unanimemente celebrada como excepcional. Os críticos referiram o maestro João Paulo Santos, o acerto com que escolheu cada uma das cantoras, a qualidade das suas interpretações e da presença em palco, o mérito do encenador. Eu louvo também o livro que documenta o espectáculo.

Esta ópera é a obra-prima de Francis Poulenc, um dos principais compositores do século XX. O libreto é de Georges Bernanos, inspirado numa novela histórica de Gertrud von le Fort.

Os diálogos traduzem a experiência de quem avança pelo caminho surpreendente do amor, serenamente, lucidamente, totalmente. No começo, a generosidade parece suficiente. Depois, a pessoa apercebe-se do perigo da vaidade, ou da tentação de se comprazer em si. Uma freira comenta o paradoxo: «para uma religiosa, de que serve separar-se de tudo, se não se distancia de si própria?». Quem experimenta uma entrega realmente plena aprende onde está a dificuldade: «subimos uma montanha, mas tropeçamos numa pedrinha!», diz uma freira: o amor brilha no dia-a-dia, nos pequenos gestos. Decisões muito firmes? «Da divina Providência espero somente as modestas virtudes que os ricos e os poderosos desprezam de bom grado: boa vontade, paciência e espírito de conciliação. (...) Pois existem várias classes de coragem, e a dos grandes senhores deste mundo não é a mesma das gentes humildes». O heroísmo até ao martírio empolga os jovens enamorados, mas a maturidade no amor faz descobrir que «uma carmelita que desejasse o martírio seria uma carmelita tão má como um soldado que procurasse a morte». As coisas não são simples. Umas vezes, o ímpeto da generosidade..., outras vezes, a fragilidade humana parece intransponível. Sente-se estremecer o mundo, à volta. Quase não há quem defenda a justiça. «Estão com medo. Toda a gente está com medo. Contagiam o medo entre eles, como a peste ou a cólera em tempo de epidemia». É então, no auge do desamparo, perante a fraqueza própria e a alheia, que se aprende a confiar verdadeiramente em Deus e se reza melhor. «Não somos uma instituição de mortificação, nem conservatórios de virtudes. Somos uma casa de oração; só a oração justifica a nossa vida».

Um dos mistérios da vida espiritual é que a interioridade é um trabalho de equipa, que se atrofia no individualismo. Aquela pequena equipa de freiras entreajuda-se de mil modos, crescem umas com as outras, abertas para a Igreja e para o mundo inteiro. A ópera de Poulenc é brilhante a expressar isto. Estas freiras de clausura vivem e morrem pelos outros. Uma delas observa que «não morremos cada um para si mesmo, morremos uns pelos outros, ou mesmo – quem sabe? – uns em vez dos outros». Não é um desejo, é uma constatação. Interiorizaram tão profundamente esta realidade que lhes parece natural morrerem «para que nunca faltem sacerdotes em França».

Era justo que esta ópera fosse o tema desta crónica sobre a actualidade religiosa. Religiosa?! A plena sintonia dos críticos não católicos com esta ópera pode surpreender, porque grande parte do tempo se passa a rezar e só fala de Deus. Será o poder da música? Ou talvez os não católicos tenham alguma experiência dos itinerários da vida espiritual. Porque disso se trata, nesta obra prima de Bernanos e Poulenc, servida excelentemente por um elenco português.