quarta-feira, 9 de novembro de 2016


Cristandade


Péricles Capanema

Cristandade, realidade esquecida, até vilipendiada. O progressismo a abomina, tantos católicos, mesmo de boa orientação, substituem o termo por outros, pelo temor de empregar o anacronismo nunca aceite, nem sequer tolerado em certos círculos. Na Grécia antiga, pela pena do ostracismo, o cidadão era expulso do convívio dos seus pares. A Cristandade parece tê-la sofrido. Fale dela nos seus círculos, qualquer que seja, e vão torcer o nariz. Deveria ser o contrário.

No paganismo, as ordens espiritual e temporal confundiam-se. Na Cristandade, realidade luminosa, eram distintas e harmónicas. Duas passagens do Evangelho de São João expressam tal realidade: «Meu reino não é desse mundo; se o meu reino fosse desse mundo, certamente que os meus ministros haviam de se esforçar para que eu não fosse entregue aos judeus». Logo a seguir: «Tu o dizes, sou rei. Nasci e vim ao mundo para dar testemunho da verdade, todo o que está pela verdade, ouve a minha voz».

A Cristandade ia imprimindo ao Velho Continente (excluo a Rússia cismática) um rumo de autêntica civilização, de liberdade e progresso, ainda que lhe custe as carências, erros e até crimes em muitos dos seus defensores. A Europa tudo lhe deve. Mas dinamitaram-na e reduziram-na a cacos a Revolução protestante, a Revolução francesa e, finalmente, a Revolução comunista. Dela ficou um imorredouro rastro de luz, de saudades em toda a parte da doçura da vida, respeito e elevação que, tantas vezes apenas de modo germinativo, começavam a reger a Europa inteira.

Vitorioso, o laicismo proclamou a ruptura entre a ordem espiritual e a ordem temporal. No começo, ostentou liberdade, isenção e Igreja livre num Estado livre. Hoje, cada vez mais, revela a face intolerante, fundamentalista e totalitária. Quer encurralar as manifestações religiosas ao interior dos lares ou aos templos e às sacristias. À espera de sufocá-las por completo. Nada na vida do Estado, das empresas e das escolas poderia manifestar convicções cristãs. Nem um singelo crucifixo nas paredes.

Porque digo tudo isto? Porque me encantei com inesperados ecos de Cristandade. Pedro Pablo Kuczynski [foto acima], Presidente do Peru, em 21 de Outubro, diante de deputados, senadores, da Presidente do Congresso, de figuras representativas da economia e da educação, consagrou o País ao Sagrado Coração de Jesus e ao Imaculado Coração de Maria:


«Eu, Pedro Pablo Kuczynski, Presidente da República do Peru, com a autoridade que me foi outorgada, faço um acto de consagração da minha pessoa, minha família, aqui presente minha esposa, da República do Peru ao amor e protecção de Deus Todo Poderoso pela intercessão do Sagrado Coração de Jesus e do Imaculado Coração de Maria. Coloco nas suas mãos amorosas o meu governo com todos os seus trabalhadores e cidadãos que estão sob a minha responsabilidade. Ofereço a Deus Todo-poderoso os meus pensamentos e decisões como presidente, para que os utilize para o bem do nosso País e quero sempre estar consciente dos Dez Mandamentos ao governá-lo. Pela intercessão do Sagrado Coração de Jesus e do Imaculado Coração de Maria peço a Deus que escute e aceite o meu acto de consagração e cubra o nosso País com a sua protecção especial. Ao fazer esta oração, peço a Deus perdão por todas as transgressões que cometi no passado, todas que foram feitas no passado da República e por todas as decisões que foram tomadas contra os seus mandamentos e Lhe peço ajuda para mudar tudo o que nos separa d’Ele. Eu, Pedro Pablo Kuczynski como Presidente da República do Peru declaro este juramento solene diante de Deus e os cidadãos do nosso país hoje, 21 de Outubro de 2016.»

Poucos dias antes, em 2 de Outubro, Pedro Pablo Kuczynski havia condecorado uma freira carmelita de clausura, Madre María Soledad de Nuestra Señora de Guadalupe [foto ao lado], espanhola que vive há mais de 50 anos no Peru, com uma das distinções mais importantes do país, a Orden al Mérito por Servicios Distinguidos. Disse-lhe o Presidente: «Outorgo-lhe esta ordem ao mérito no grau de comendador por os seus serviços à Cristandade, ao Peru, e por tudo o que por nós fez».A freira respondeu: «Agradeço-lhe […] para que o reino de Cristo avance». A alta condecoração a uma humilde freira de clausura merece estar no mesmo olhar que analisa a consagração.

Tradición y Acción, valoroso e meritório movimento peruano, em análise bem fundamentada e corajosa, pediu ao Presidente coerência com o seu acto. Tem razão, pois a consagração, para ter inteiro valor, precisa expressar a intenção sincera do coração e o propósito firme de agir segundo ela. E admito que o Presidente, pelo menos em parte, foi movido no seu acto por uma efectiva exigência de sectores da opinião do País, o que no povo revela vigoroso sintoma de fidelidade à Igreja.

Mas hoje eu queria falar de outra coisa. Actos assim, provenientes da mais alta autoridade, nunca aconteceram no Brasil, motivo de tristeza perene para nós. Há décadas, e em especial no século XIX, ocorreram em numerosos países, mas a pressão do ambiente moderno eliminou-os. Por imposição do laicismo sulfúrico com a conivência satisfeita do progressismo católico, hoje não existem. Sucederam no Peru, ecoaram e lembram a cristandade. Tudo o que lembra a cristandade merece registo.





segunda-feira, 7 de novembro de 2016


500 anos depois, de joelhos diante de Lutero


O Papa Francisco e o pastor luterano Martin Junge assinam uma «Declaração Conjunta».
O heresiarca Lutero definiu, no século XVI, o Papa como
«apóstolo de Satanás» e «anticristo».

Roberto De Mattei

O Concílio de Trento pronunciou
um ditame irrevogável sobre a incompatibilidade entre a fé católica
e a protestante.

Dizemo-lo com profunda dor. Parece uma nova religião aquela que aflorou em Lund no dia 31 de Outubro, durante o encontro ecuménico entre o Papa Francisco e os representantes da Federação Luterana Mundial. Uma religião em que são claros os pontos de partida, mas obscura e inquietante a linha de chegada.

O slogan que mais ressoou na catedral de Lund foi o da necessidade de um «caminho comum» que leve católicos e luteranos «do conflito à comunhão». Tanto o Papa Francisco quanto o pastor Martin Junge, secretário da Federação Luterana, se referiram nos seus sermões à parábola evangélica da videira e dos ramos. Católicos e luteranos seriam «ramos secos» de uma única árvore que não dá frutos por causa da separação de 1517. Mas ninguém sabe quais seriam esses «frutos». O que católicos e luteranos parecem ter agora em comum é apenas uma situação de profunda crise, ainda que por motivos diferentes.

O luteranismo foi um dos principais factores da secularização da sociedade ocidental e hoje está agonizando pela coerência com que desenvolveu os germes de dissolução que portava dentro de si desde a sua irrupção. Na vanguarda da secularização estiveram os países escandinavos, apresentados por longo tempo como modelo do nosso futuro. Mas a Suécia, depois de ter-se transformado na pátria do multiculturalismo e dos direitos homossexuais, é hoje um país onde apenas 2% dos luteranos são praticantes, enquanto quase 10% da população segue a religião islâmica.

A Igreja católica, pelo contrário, está em crise de autodemolição porque abandonou a sua Tradição para abraçar o processo de secularização do mundo moderno na hora em que este entrava na sua fase final de decomposição. Os luteranos procuram no ecumenismo um sopro de vida, e a Igreja católica não adverte nesse abraço o mau hálito da morte.

«O que nos une é muito mais do que aquilo que nos divide», foi ainda dito na cerimónia de Lund. Mas, o que une católicos e luteranos? Nada, nem sequer o significado do baptismo, o único dos sete sacramentos que os luteranos reconhecem. Para os católicos, o baptismo elimina de facto o pecado original, enquanto para os luteranos ele não pode apagá-lo, porque consideram a natureza humana radicalmente corrupta, e irremovível o pecado. A fórmula de Lutero «peca com força, mas crê com maior força ainda» resume o seu pensamento. O homem é incapaz de praticar o bem e não pode senão pecar e abandonar-se cegamente à misericórdia divina. A vontade corrompida do homem não tendo nenhuma participação nesse acto de fé, no fundo é Deus que decide, de forma arbitrária e inapelável, quem se condena e quem se salva, como deduziu Calvino. Não existe liberdade, mas apenas rigorosa predestinação dos eleitos e dos condenados.

Santo Inácio de Loyola combateu
com muita coragem e eficácia
a heresia luterana
A «Sola Fede» é acompanhada pela «Sola Scriptura». Para os católicos, a Sagrada Escritura e a Tradição são as duas fontes da Revelação divina. Os luteranos eliminam a Tradição porque afirmam que o homem deve ter uma relação directa com Deus, sem a mediação da Igreja. É o princípio do «livre exame» das Escrituras, a partir do qual fluem o individualismo e o relativismo contemporâneos. Este princípio implica a negação do papel da Igreja e do Papa, que Lutero define como «apóstolo de Satanás» e «anticristo». Lutero odiava especialmente o Papa e a Missa católica, que ele queria reduzir a mera comemoração, negando-lhe o carácter de sacrifício e impugnando a transubstanciação do pão e do vinho no Corpo e no Sangue de Jesus Cristo. Mas, para os católicos, a renovação incruenta do sacrifício de Cristo existente na Missa é a fonte principal da graça divina. Trata-se de simples incompreensões e mal-entendidos?

O Papa Francisco declarou em Lund: «Também nós devemos olhar, com amor e honestidade, para o nosso passado e reconhecer o erro e pedir perdão.» E ainda: «Com a mesma honestidade e amor, temos de reconhecer que a nossa divisão se afastava da intuição originária do povo de Deus, cujo anseio é naturalmente estar unido, e, historicamente, foi perpetuada mais por homens do poder deste mundo do que por vontade do povo fiel.» — Quem são esses homens de poder? Os Papas e os santos, que combateram o luteranismo desde o início? A Igreja, que o condenou durante cinco séculos?

O Concílio de Trento pronunciou um ditame irrevogável sobre a incompatibilidade entre a fé católica e a protestante. Não podemos seguir o Papa Francisco por um caminho diferente.