sexta-feira, 19 de maio de 2017

Centenário de Fátima

Centenas de milhares de fiéis reunidos em Fátima, no dia 13 de Maio último,
para a canonização de Jacinta e Francisco
(click na imagem para ampliá-la).

Paulo Roberto Campos, Instituto Plinio Corrêa de Oliveira, 18/05/2017

«Na confusão da Terra, abriram-se os Céus e a Virgem apareceu em Fátima para dizer aos homens a verdade. Verdade austera, de admoestação e penitência, mas verdade rica em promessas de salvação. O milagre de Fátima repetiu-se […] para atestar que as ameaças de Deus continuam a pairar sobre os homens, mas que a protecção da Virgem jamais abandonará a Igreja e os seus verdadeiros filhos».

Assim se expressou em 1952 o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira. Do mesmo modo nos poderíamos expressar nos presentes dias, pois a Mensagem de Nossa Senhora de Fátima continua mais actual do que então. Continua desde 1917 alertando a humanidade, pedindo a conversão, e como esta não veio, paira sobre o mundo o anunciado castigo: «Várias nações serão aniquiladas». Mas também continua de pé a sua grande promessa: «Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará!».

Cem anos depois do mais importante acontecimento do século XX, trágicos eventos nos ameaçam. Quem, tomando conhecimento do noticiário actual, não fica a temer a eclosão de uma nova guerra mundial?

Em Fátima, a Santíssima Virgem previu o fim da Primeira Guerra, mas afirmou que se os homens não se convertessem uma hecatombe ainda pior eclodiria. Duas décadas depois, a profecia realizou-se: as nações viram-se precipitadas na Segunda Guerra Mundial.

No dia da canonização de Jacinta e Francisco (13 de Maio)
as estampas dos dois novos santos colocadas na torre
da Basílica de Nossa Senhora do Rosário em Fátima
(click na imagem para ampliá-la).
Ninguém pode afirmar com toda a certeza que estamos na iminência de uma Terceira Guerra Mundial, ou de algum outro tipo de castigo que atingiria o mundo inteiro, mas, sobretudo, ninguém pode negar. O que precisamos é estar prontos para a realização dos planos de Deus. E ao aparecer em Fátima aos três Pastorinhos — Lúcia, Jacinta e Francisco (os dois últimos canonizados no dia 13 de Maio) — Nossa Senhora pediu que o mundo fizesse oração e penitência, necessárias para a conversão, e insistiu na recitação do Santo Rosário.

Aconteça o que acontecer, se atendermos aos pedidos da Santa Mãe de Deus, nada teremos a temer durante o castigo divino, e exultaremos depois com a realização do que Ela também profetizou há um século: o Reinado do seu Imaculado Coração em toda a Terra.

Quando se realizará? Após o terrível castigo e a conversão da humanidade?

Pintura de São Luis Grignion de Montfort
rezando o Rosário
 
Deixo a resposta com São Luís Maria Grignion de Montfort — grande santo e missionário francês do século XVIII — no seu célebre Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem:

«Quando virá este tempo feliz em que Maria será estabelecida Senhora e Soberana nos corações, para submetê-los plenamente ao império do seu grande e único Jesus? Quando chegará o dia em que as almas respirarão Maria, como o corpo respira o ar? Então, coisas maravilhosas acontecerão neste mundo, onde o Espírito Santo, encontrando a sua querida Esposa como que reproduzida nas almas, a elas descerá abundantemente enchendo-as dos seus dons, particularmente do dom da sabedoria, a fim de operar maravilhas da graça. Meu caro irmão, quando chegará esse tempo feliz, esse século de Maria, em que inúmeras almas escolhidas, perdendo-se no abismo do seu interior, se tornarão cópias vivas de Maria, para amar e glorificar Jesus Cristo? Esse tempo só chegará quando se conhecer e praticar a devoção que ensino, Ut adveniat regnum tuum, adveniat regnum Mariae» (Que venha o Reino de Maria, para que assim venha o vosso Reino — ou seja, o Reino de Jesus Cristo).





quinta-feira, 18 de maio de 2017

Paroxismo da desinformação russa: a mensagem de Fátima e a «missão providencial» de Putin


Luis Dufaur, Instituto Plinio Corrêa de Oliveira, 9 de Maio de 2017

Continuação do artigo anterior: «Manipulação da mensagem de Fátima pela Rússia»

No Ocidente está a haver boas reacções crescentes contra a ofensiva da Revolução Cultural de substância marxista-gramsciana.

Tentando explorá-las, a propaganda do Kremlin passou a apresentar cinicamente a Rússia de Putin como um sedutor porto da salvação de onde pode vir o reerguimento moral e intelectual dos cristãos perseguidos.

A desinformação russa veicula no Ocidente
que Putin teria a «missão providencial»
de salvar o cristianismo
E essa manipulação atingiu o exagero procurando inverter os termos da advertência de Nossa Senhora em Fátima contra os «erros da Rússia» para transformá-los nos «erros do Ocidente», segundo constatou Jeanne Smits, ex-directora e ex-gerente do jornal «Présent» ligado à Front National, partido amigo do Kremlin, no seu site Reinformation.tv.

Líderes políticos de «direita» e até de «extrema-direita», escreveu Smits, passaram a ser recebidos em Moscovo como romeiros que procuram as bênçãos de um novo Carlos Magno.

Embora ele declare que conserva piedosamente a sua carteirinha do Partido Comunista da URSS…

Pouco importa se estes políticos de «direita» defenderam no passado e sem retractação o «direito» ao aborto, o «casamento» homossexual ou leis de espírito socialista e confiscatório.

Pouco importa se a Rússia tem o maior número de abortos por mulher em idade fértil do mundo, observa espantada Jeanne Smits.

Procissão na Rússia para adorar
o mais recente enviado de Deus:
Vladimir Putin!
Vladimir Putin explora a angústia dos movimentos conservadores no Ocidente, pois sonha com a expansão da Rússia no mundo como outrora sonhou a URSS.

A formação dada nas escolas do KGB apagava qualquer senso moral ou remorso na hora de procurar objectivos concretos.

Smits exemplifica com o problema do embrião de República Universal anticristã que germina na União Europeia (UE). Os europeus de bem percebem que este monstrengo é maléfico e querem abandoná-lo. O Brexit foi um caso típico.

Então os enviados de Putin passaram a gritar contra a UE e até a facilitar dinheiro para os anti-UE.

Mas estes mesmos acólitos nas suas reuniões preconizam como alternativa uma «confederação de Brest a Vladivostok». Esta seria uma «União Euro-asiática» que faria a inveja dos mais delirantes fundadores e teorizadores da decadente União Europeia. E os conservadores seduzidos estariam ludibriados e silenciados.

Esta nova confederação, de maneira muito concreta acabaria realizando os objectivos planetários da organização opressiva e utópica dirigida desde Bruxelas. Só que o comando supremo ficaria em Moscovo.

Para ver com clareza a inversão radical em acto não é preciso ir muito longe, escreve Smits.

Um outro exemplo da experiente jornalista. A Igreja católica, ainda quando é mal representada, guarda em si potencialidades de restauração do bem que inviabilizariam a conquista do mundo por qualquer adversário que encarne o mal. António Gramsci partiu desta constatação para elaborar a sua estratégia marxista.

Moscovo seria a «nova Roma»
e os cristãos não poderiam voltar em grupo
ao catolicismo!
Como fazer desaparecer a Igreja católica do mapa dizendo ao mesmo tempo que está a ser salva por quem a extingue?

Fácil, talvez pense Moscovo. Fazer acreditar que a cabeça d’Ela migrou para o Kremlin conservando a continuidade como Igreja de Jesus Cristo. Moscovo seria a nova Roma e o Patriarca de Moscovo o verdadeiro Papa escolhido pelo Espírito Santo!

Smits fornece alguns exemplos. Um «próximo entre os próximos» de Vladimir Putin, o multibilionário Konstantin Malofeev financiador da restauração do Patriarcado de Moscovo, sustenta o think-tank Katehon dirigido pelo pensador gnóstico Aleksandr Dugin, teorizador desta super-UE euro-asiática ou «eurasianismo».

Numa série de artigos publicados nos dias 27 e 28 de Março de 2017 em Katehon, Charles Upton e a sua mulher Jennifer Doane Upton interpretaram ao modo gnóstico de Dugin a descrição do Purgatório da Divina Comédia de Dante Alighieri.

Charles Upton apostatou do catolicismo para se converter ao islamismo místico, ou sufi. E o título do trabalho do casal é suficientemente explícito: «A profecia de Dante sobre a queda da Igreja Católica Romana».

Eles explicam que não se inspiraram em pensadores como Santo Agostinho ou Santo Tomás, mas basearam-se sobretudo nos «filósofos tradicionalistas René Guénon e Fritjof Schuon», sendo este um esotérico sincretista.

O francês René Guénon morreu no Cairo como sufi, aduzindo que tinha achado a fina ponta da «Tradição» no misticismo islâmico.

A análise do casal Upton conclui que a «nova-Rússia» e o Patriarcado de Moscovo vão salvar a Igreja do Ocidente, extinguindo a sucessão dos Papas de Roma.

Para tornar mais sedutora a enganação, a funambulesca análise diz que por esta via se encerraria a crise aberta pelo Vaticano II, o modernismo e o liberalismo.

Montagem da desinformação:
a Rússia não professa os «erros da Rússia»
que passaram a ser exclusivamente
os «erros do Ocidente»!
Ela distorce e manipula com desfaçatez as profecias de Nossa Senhora em La Salette e Fátima.

E forja o inacreditável: que tendo Roma perdido a Fé, a religião cismática da Rússia virou a única religião cristã verdadeira.

O delírio da tese bate bem com as alucinações do sufismo islâmico. Mas, sobretudo, com as metas expansionistas do comunismo metamorfoseado de Vladimir Putin.

Katehon e o esoterismo de Aleksandr Dugin exploram a confusão nos católicos favorecida por desconcertantes actos, gestos, omissões e afirmações do pontífice.

E a montagem russa está toda feita para seduzi-los e fazê-los aceitar uma convergência entre Putin e um representante do Vaticano disposto a entrar no jogo.

Em 2015, um editorial de Katehon impostava-se numa visão ecuménica e pancristã. E exigia que a Igreja católica renunciasse a converter os outros cristãos desviados pelos erros dos cismas orientais e do protestantismo.

Esta reclamação iníqua vem a ser repetida pelo Patriarcado de Moscovo a propósito da conversão em massa dos ucranianos para o rito greco-católico. Também está na Declaração de Havana assinada pelo Papa Francisco e pelo Patriarca de Moscou Kirill.

A reclamação se atendida reforçaria o império do KGB sobre o mundo cristão.

A conclusão destes malabarismos todos seria que os apóstatas e inimigos do cristianismo são os fiéis à Igreja católica como Ela é, modelada durante dois mil anos pelo Espírito Santo e pelo ensinamento do seu Magistério tradicional.

A falsidade da manobra, mostra Smits, atinge o seu auge tentando virar a mensagem de Nossa Senhora em Fátima contra os católicos.

Mas os católicos, sublinha a jornalista, sabem que a Igreja está construída sobre a rocha que é Pedro e que as portas do Inferno não prevalecerão contra Ela. Mesmo quando se abatem sobre Ela as piores tempestades, da mesma maneira que aconteceu no passado e ainda haverá de se verifica no futuro.

Os escritores e jornalistas associados a Katehon excogitam sofismas para tentar matar esta Fé invertendo o sentido das palavras de Nossa Senhora em Fátima e La Salette.

Jeanne Smits:
«se eu fosse o KGB teria feito tudo
como está acontecendo»
Vamos mais longe,
escreve Jeanne Smits:

«se eu fosse o KGB e tivesse os meios para forjar uma imensa montagem, eu teria favorecido com todas as minhas forças a desmontagem da liturgia católica, a ascensão do relativismo e por fim eu teria espalhado que a Igreja de Roma fracassou.

«Eu também teria tido a precaução de favorecer um renascimento ortodoxo».

E é isso o que parece ter sido concebido e estar sendo posto em prática.

É uma manobra suprema contra a Igreja, invertendo luciferinamente o sentido das palavras de Nossa Senhora em Fátima.

Quiçá seja esta a suprema tentativa dos «erros da Rússia» contra o catolicismo autêntico.

Mas terá sido a última antes de serem esmagados pelo triunfo do Imaculado Coração de Maria anunciado por Nossa Senhora aos três pastorinhos em Portugal.





Manipulação da mensagem de Fátima pela Rússia


Luis Dufaur, Instituto Plinio Corrêa de Oliveira, 3 de Maio de 2017

A aparição de Nossa Senhora em Fátima deixou uma espada encravada no cerne da Revolução anticristã.

Os católicos receberam a advertência de que como castigo para a impenitência «a Rússia espalhará os seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja». Cfr. «Fátima: Mensagem de tragédia ou de esperança?»

A Rússia comunista apareceu assim como o inimigo por excelência. E esta advertência tornou-se mais cogente e actual neste ano do centenário da aparição de Fátima.

Jeanne Smits ex-directora do jornal da Front National:
a Rússia tenta voltar a mensagem de Fátima
contra o Ocidente
Jeanne Smits, ex-directora e ex-gerente do jornal «Présent» ligado à Front National de Marine Le Pen, partido amigo do Kremlin, escreveu palpitante matéria sobre como a desinformação da «nova-Rússia» trabalha para se livrar do estigma e inverter astuciosamente os termos da denúncia profética.

Smits publicou um longo artigo a este respeito no seu site Reinformation.tv.

Segundo Smits, a manobra de guerra da informação encontrou o terreno bem preparado pela falsa ideia de que «o comunismo morreu».

Na fase actual, a propaganda russa tenta erigir em Moscovo um bastião derradeiro do cristianismo sitiado pelos inimigos. A inversão não podia ser mais completa e contrária à razão.

Segundo a montagem que está a ser espalhada entre muitos grupos de direita ocidentais, o comunismo inimigo de morte da Igreja católica não existiria mais na Rússia de Putin.

Mais ainda, esta «nova Rússia» teria passado a ser o baluarte da moral tradicional cristã diante de ideologias do tipo LGBT, de género, anti-vida, anti-família, etc., subprodutos do liberalismo que domina no Ocidente.

Desta maneira a imagem da «Rússia promotora de guerras e perseguições à Igreja» ficaria invertida. E os seus erros deveriam ser apontados com exclusividade aos países da ex-civilização cristã, de berço ocidental e católico.

Os velhos erros comunistas
não foram banidos da Rússia e estão a crescer
Smits ficou espantada vendo que em alguns meios dos movimentos conservadores que frequenta, parecem não perceber que esses erros não só não foram banidos da Rússia, mas estão a reforçar-se dissimulados sob vernizes enganadores.

O ateísmo de Estado, o igualitarismo filosófico, o niilismo moral, a ditadura absoluta do relativismo são erros com que a URSS montou uma revolta suprema contra Deus e contra a verdade.

E o comunismo bolchevique consagrou décadas para tentar instilá-los nas almas dos russos com uma perversidade que supera a dos crimes de sangue massivos que também praticou.

Estes erros produziram efeitos nefastos: por exemplo, o assassinato das crianças no ventre materno foi logo aprovado sem restrições na URSS, e a «nova-Rússia» continua praticando-o em proporções recorde.

O aborto foi trazido para os países ocidentais e elevado à condição de «direito» pelos agentes que ciclicamente faziam romaria até Moscovo para receber doutrinamento, conselho e consignas.

Estes erros acabaram instalados em quase todos os campos de actividade da ex-Civilização Cristã ocidental em decorrência de uma avalanche de leis, portarias e costumes promovidos por estes agentes.

Para pior penetraram na própria Igreja católica. Esta infiltração foi tão grave que 213 padres conciliares de 54 países elevaram uma petição ao Papa Paulo VI para que o Concilio Vaticano II condenasse os erros socialistas e comunistas.

Mas, o enigmático silêncio do Concílio a este respeito abriu as portas da Igreja para a infiltração e para a devastação. Agora a Igreja está abalada em decorrência deles.

Número de abortos na Rússia por cada 100 nascimentos em 2014,
pelo Estado da Federação Russa

A confusão criada pela Exortação Sinodal «Amoris laetitia» é uma recente expressão desta infiltração dos «erros da Rússia».

A cultura da morte – aborto, destruição do casamento e da família, etc. – foi erigida na cultura de Estado da Rússia escravizada pela revolução bolchevista de 1917.

No século XIX, Marx e Engels foram os teóricos alemães da utopia comunista, surgida fugazmente durante as agonias finais das Revoluções Protestante e Francesa.

Porém quem tirou o comunismo dos livros filosóficos mais ou menos inaplicáveis e fracassados no Ocidente foi bem um russo: Vladimir Ilyich Ulyanov Lenine.

Lenine elaborou a práxis da Revolução bolchevique, fez e comandou esta revolução, e conferiu ao comunismo um tom e um espírito incontestavelmente russo.

Mas a expansão dos erros do comunismo russo não correu assim tão facilmente. Ela até pareceu ameaçada e os partidos comunistas foram perdendo a capacidade de atear o ódio de classe e seduzir com a sua agenda igualitária emanada de Moscovo.

Foi então a hora do pensador António Gramsci. Ele formulou a via da Revolução Cultural hoje preferida pelo marxismo e seus seguidores no Ocidente, muitas vezes comodamente instalados e gordamente pagos na direcção de organismos como a ONU ou a União Europeia.

A Revolução Cultural de inspiração marxista gramsciana
poderá levar-nos mais longe na linha
do sonho tóxico de Lenine
Mas, o objectivo de Gramsci era só um: conseguir o que a revolução russa fundada por Lenine tentava obter mas não estava a conseguir. E provavelmente ir mais longe do que o líder comunista russo sequer imaginou.

Gramsci foi o grande pregador ocidental do método para difundir os «erros da Rússia».

Se a estratégia por ele concebida der certo conduzir-nos-à a uma situação análoga à que Lenine e os seus sonharam aplicar no ex-império dos czares.

Estes erros atacam as nações católicas ou apenas cristãs, e até ex-cristãs, com mais eficácia que as fórmulas escancaradamente leninistas. Mas estão a encontrar crescentes resistências que comprometem a vitória comunista final.

Um pouco por toda parte manifestam-se grandes, e até imensas correntes na opinião pública, que não querem saber desta Revolução Cultural e as suas propostas anti-vida, anti-família, anti-religiosas e destruidoras das nações e das culturas tradicionais.

Tentando explorar estas boas crescentes reacções, a propaganda do Kremlin passou a apresentar cinicamente a Rússia de Putin como um sedutor porto da salvação de onde pode vir o reerguimento moral e intelectual dos cristãos perseguidos.

E há quem acredita nisto, adverte Jeanne Smits.





quarta-feira, 17 de maio de 2017

Cardeal Müller: «As autoridades da Igreja são o único grupo que luta absolutamente contra o abuso de menores»


Rita Garcia, Observador, 9 de Maio de 2017
Enviada especial ao Vaticano

Em entrevista ao Observador no Vaticano, o cardeal Gerhard Müller, Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, fala das diferenças entre Francisco e Bento XVI e dos casos de abusos de menores.

Gerhard Müller é um homem tão solene como as funções que ocupa. Alto, robusto e aprumado, com as suas vestes negras de cardeal, é desde 2012 o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o braço direito do Papa Francisco na preservação dos dogmas da Igreja católica. Escolhido por Bento XVI para ocupar um cargo que ele próprio desempenhara, tinha — e tem — muito em comum com Joseph Ratzinger. Ambos são alemães, teólogos e académicos, e partilham uma certa visão do mundo. Além disso, foi Müller o escolhido por Bento XVI para coordenar a publicação das suas Obras Completas.

Nasceu em Finthen, um subúrbio da cidade de Mainz, em 1947. O pai era um operário da indústria automóvel e a mãe uma doméstica que acompanhou de perto a educação dos quatro filhos. Gerhard sempre quis ser padre. Segundo revelou ao Osservatore Romano (o jornal oficial do Vaticano), a mãe costumava contar que, com apenas quatro anos, o filho ficou tão impressionado com a imagem do bispo de Magonza, Albert Stohr, que exclamou: «Quando for grande, quero ser bispo!». E foi mesmo.

Doutorou-se em 1977 e foi ordenado padre no ano seguinte. Em 2002, João Paulo II nomeou-o bispo de Ratisbona. O sonho estava realizado. Em 2014, coube a Francisco entregar-lhe o barrete vermelho de cardeal. Os dois nem sempre estão de acordo e têm estilos distintos, mas mantêm uma relação leal: encontram-se uma vez por semana ou de 15 em 15 dias no Palácio Apostólico para falar de trabalho.

De resto, Gerhard Müller passa grande parte do tempo no seu gabinete do Palácio do Santo Ofício, um imponente edifício amarelo construído no início do século XVI e que albergou o temido tribunal eclesiástico com o mesmo nome. É nas traseiras do palácio, situado a Sul da colunata da Basílica de São Pedro, que fica o gabinete do Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. As grandes janelas têm vista para a Aula Paulo VI, uma gigantesca sala de audiências situada dentro do Vaticano, com capacidade para 12 mil pessoas. O Papa vive a dois passos, na Casa de Santa Marta. Müller mora do outro lado da Basílica, perto da Porta de Sant’Anna.

O Prefeito é visto como um conservador que não hesita em recordar publicamente os preceitos da Doutrina quando as vozes progressistas clamam por mudanças. Foi atacado depois de lembrar, numa entrevista à revista Il Timone, que, à luz da Doutrina católica, os divorciados recasados vivem em situação de adultério e «o adultério é um pecado mortal». Ao Observador, Müller diz que não tem medo de fazer afirmações impopulares: «O próprio Jesus não foi assim tão bem aceite quando falou da indissolubilidade do matrimónio». No entanto, sente-se insultado quando lhe atribuem o epíteto de polícia da Doutrina.

Numa conversa pausada e assertiva com o Observador no Vaticano, recusa as acusações feitas por Marie Collins, a irlandesa que foi vítima de abusos sexuais por um padre na infância e se demitiu da Comissão Pontifícia para a Protecção de Menores por alegar que a Congregação para a Doutrina da Fé colocou entraves ao trabalho do grupo de trabalho criado pelo Papa Francisco. Garante que a hierarquia da Igreja está determinada a lutar contra a pedofilia nas suas fileiras, e lamenta que o olhar da sociedade seja tão intolerante com o clero, quando se mostra complacente com abusadores de Hollywood ou de outros sectores poderosos.

Nas vésperas da visita do Papa Francisco a Portugal, Gerhard Müller considera que a mensagem de Fátima não podia ser mais actual, numa época em que surgem novos nacionalismos e imperialismos perigosos para a Humanidade. Diz ao Observador que agora, como em 1917, é preciso apelar à conversão dos corações para que o ódio não vença o amor.

«Não me parece que o Papa Francisco tenha mudado a Doutrina da Igreja. A doutrina dogmática não pode ser mudada porque se baseia na revelação e no magistério da Igreja, do Papa e dos bispos»

Foi nomeado Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé pelo Papa Bento XVI e é próximo da sua mensagem, estudou-a profundamente. Quais foram as principais alterações com a chegada de Francisco?

O Prefeito desta Congregação não está ligado às características pessoais do Papa, mas à sua missão. Não se trata apenas de uma relação pessoal. O Papa, seja ele Bento, Leão ou Francisco, tem a mesma missão confiada por Jesus e a nossa Congregação já leva 500 anos a apoiar o Papa no seu mister de ser o primeiro pastor do rebanho, e de dar verdadeiro testemunho da fé revelada em Jesus Cristo. Os media podem estar mais interessados em sentimentos pessoais e nesse tipo de discussão, nós estamos mais orientados para a nossa tarefa de promover a Fé católica em todo o mundo, em nome e com a autoridade do Papa actual. E também para a defesa da Fé e da disciplina da Igreja contra heresias, cismas e outros casos onde ela seja violada.

Essa é a abordagem formal ao seu trabalho. Mas o facto é que se trata de dois homens com estilos totalmente diferentes. Quais são as diferenças práticas na forma de trabalhar de Francisco e de Bento XVI?

O Papa tem o seu ênfase próprio, a sua própria história. As circunstâncias da sua vida e da formação da sua razão e das suas experiências são muito diferentes das de alguém oriundo da Alemanha, com uma vida académica, virada para o nível académico que existe na teologia alemã há vários séculos. O Papa Francisco tem uma espiritualidade que lhe vem dos Jesuítas, enquanto a do Papa Bento XVI lhe chega mais de Santo Agostinho, São Boaventura e da tradição da teologia existencial. Seguramente que a realidade do Papa Francisco, vindo de um contexto latino-americano, é muito diferente da história e da cultura europeias. No entanto, somos a mesma Igreja e a Fé não divide as pessoas. É a base da unidade. «Una fides» é a expressão latina para uma fé, a mesma fé que temos, a mesma missão. É mais interessante ver o que liga os diferentes Papas através da longa História da Igreja do que olhar para as diferenças. É muito interessante ver como o Espírito Santo age por meio das personalidades distintas que ocupam a Cathedra Petri (a cadeira de Pedro).

Nos últimos quatro anos, quais foram as principais alterações que Francisco trouxe à Igreja?

Os media dão atenção aos sapatos vermelhos ou pretos, o que, para mim, não são coisas assim tão importantes. Reparam se ele vive em privacidade no Palácio Apostólico ou em Santa Marta. Estas não são questões de relevância teológica, mas o mais significativo é o novo estilo que vem da experiência do Papa na América Latina, mais próxima da realidade dos pobres e das grandes diferenças que existem na sociedade.

Na Alemanha, depois da Segunda Guerra Mundial, deixou de haver esta disparidade entre as classes, temos uma sociedade mais unida, há mais solidariedade, graças à Doutrina Social da Igreja que teve início no pós-Guerra, na Alemanha, e aos partidos democráticos de inspiração cristã e aos social-democratas. Não há assim tantas forças anti-clericais.

No meu tempo de professor universitário em Munique, todos os anos tirava três meses de férias em países da América Latina — Peru, Brasil. Por isso, esta mentalidade, diferente da europeia e da norte-americana, não me é assim tão estranha. Conheci algumas obras sobre a teologia da libertação que está de acordo com a Doutrina da Igreja, enquanto outras são mais próximas da abordagem marxista. O que eu retiro da teologia da libertação é um maior desenvolvimento da Doutrina Social da Igreja, relativamente às circunstâncias especiais que se verificam na América Latina.

Do ponto de vista do dogma, não há nada que diga que o Papa deve vir da Europa, do centro da Europa. No passado, houve muitos Papas provenientes da Grécia, da Síria, de outras partes do Império Romano, representando outras culturas. Não é absolutamente novo ter um Papa que vem de uma cultura diferente. Agora, pela primeira vez, temos Papas de continentes diferentes, mas a cultura da Argentina não é totalmente diferente da europeia. É mais próxima do que algumas culturas asiáticas. A realidade latino-americana é uma mistura dos costumes europeus com os nativos. Noutros continentes, como a África ou a Ásia, há uma cultura própria mais forte, que não sofre tanta influência do pensamento europeu. Isso para nós não constitui um problema. É um sinal da riqueza da revelação de que todos são chamados a pertencer à mesma Igreja, à mesma família de Deus em todo o mundo.

«Não é possível ter dois tipos de cristianismo: um para uma elite, que respeita a palavra de Deus, e o outro para os outros, a quem impomos apenas alguns direitos e sacramentos, deixando que a vida corra como ela é. Jesus veio para mudar o velho mundo de pecado, do qual fazia parte o divórcio. Jesus explicou isto de forma muito clara»

Na América Latina, o Papa esteve sempre próximo dos pobres, da periferia da sociedade, de que ele tanto fala. Essa realidade traz desafios à Igreja e à Doutrina?

Temos a Doutrina social. Esta questão das periferias não começou com o Papa Francisco, o que acontece é que ele tem sublinhado esse aspecto, tem-lhe dado relevo. Mas não começámos do ponto zero. Na História da Igreja temos tantas situações análogas… Quando houve novos encontros entre diferentes culturas, quando os povos germânicos e eslavos entraram na cultura cristã isso deu origem a tensões e à necessidade de novos ajustes. Não temos uma cultura cristã tão puramente europeia que justifique ficarmos chocados com a aproximação de outra cultura católica. Há sempre uma dimensão de universalidade da Igreja, que pode ser representada e inculturada por povos diferentes. As culturas devem estar abertas à vida universal de todos os povos do mundo. São esses povos de todo o mundo que formam a família de Deus. João Crisóstomo escreveu numa célebre carta a Ireneu de Lyon como era admirável que aqueles que viviam na Índia, na Síria e na Germânia daquele tempo, apesar das diferentes culturas e línguas, fossem membros do mesmo corpo de Jesus Cristo. Isso é um milagre e uma maravilha permanente que temos na Igreja.

Então a grande diferença nestes quatro anos é uma questão de estilo.

É o estilo. O Papa que vier a seguir também terá o seu próprio estilo. Foi sempre assim, ninguém pode ser uma cópia do seu antecessor. Cada Papa, na sua pessoa, é um sucessor de São Pedro, dogmaticamente falando — e não um sucessor do seu antecessor. Do ponto de vista temporal e cronológico, é, mas ao nível do dogma é o sucessor de Pedro e tem o direito de realizar a sua missão de acordo com o seu carisma, com a sua história, de moldar o Pontificado à sua maneira.

O Papa anterior trabalhou nesta Congregação, foi o Prefeito durante anos. Era da casa. Francisco não. Até que ponto é diferente a relação dos dois com a Congregação para a Doutrina da Fé?

Devido à sua história pessoal, naturalmente que Bento XVI era mais próximo. Não é possível passar aqui 24 anos e depois dizer: «Isto não tem nada a ver comigo». Por isso, claro que as suas emoções e a sua sensibilidade serão mais próximas desta Congregação, mas a tarefa deste departamento não mudou. A ida e vinda de um Papa não significa o mesmo que a entrada ou saída do Prefeito. As tarefas sobrepõem-se e a missão desta Congregação não depende apenas do Prefeito, mas de todos os padres e dos 25 cardeais que trabalham connosco. A tarefa da Congregação para a Doutrina da Fé não se alterou e isso consiste em aconselhar o Santo Padre, em dar apoio ao seu magistério, com autoridade e responsabilidade, com o trabalho do dia a dia. Para os nossos documentos e doutrinas, precisamos de aprovação do Papa, mas na nossa vida quotidiana agimos sob a autoridade dele, mas com a nossa responsabilidade.

Sobre as diferenças entre Bento XVI e Francisco: «ninguém pode ser uma cópia do seu antecessor.
Cada Papa é um sucessor de São Pedro e não um sucessor do seu antecessor»

Com que frequência se encontra com o Papa?

Depende. Os prefeitos desta Congregação e da Congregação para os Bispos têm encontros regulares com o Papa, todas as semanas, de quinze em quinze dias. Dependendo da ocasião, essas reuniões podem ser mais frequentes.

Encontram-se no Palácio Apostólico?

Normalmente, no Palácio Apostólico porque não são encontros privados entre amigos ou família. São reuniões de trabalho onde lhe levamos os documentos que estamos a preparar para ele tomar decisões.

Houve momentos, depois da eleição deste Papa, que insiste numa abordagem pastoral, em que o senhor cardeal alertou que a Igreja deve ser prudente com algumas mudanças. Refiro-me à interpretação da exortação apostólica Amoris Laetitia, e à carta que alguns cardeais escreveram ao Papa durante o Sínodo da Família, por exemplo. Como lida com o facto de o Prefeito parecer, por vezes, ter uma opinião diferente da do Papa?

Não me parece que o Papa tenha mudado a Doutrina da Igreja. A doutrina dogmática não pode ser mudada porque se baseia na revelação e no magistério da Igreja, do Papa e dos bispos. Na Doutrina da Igreja, Jesus é alguém que revela, é um mediador para a salvação. Os Apóstolos e seus sucessores exercem apenas o ministério da revelação e da salvação que nos é dada por Jesus Cristo. Temos de ser verdadeiros ministros de Cristo. O Papa Francisco já disse que a doutrina relativamente ao matrimónio é muito clara, muito bem formulada e não está apenas relacionada com palavras da Bíblia. Resulta de doutrina estabelecida ao longo de dois mil anos. Não podemos ignorar o Concílio de Trento, por exemplo, nem a doutrina sobre o matrimónio elaborada na [constituição pastoral] Gaudium et Spes, resultante do Concílio Vaticano II, nem o que é dito na [exortação apostólica] Familiaris Consortio [de João Paulo II], nem na encíclica Caritas in Veritate, do Papa Bento XVI, nem em todas as declarações feitas por nós. O problema hoje é como nos devemos dirigir a este grande número de pessoas que não entende a Doutrina cristã relativamente ao matrimónio. Partilham outra mentalidade que não é amistosa, nem favorável à vida e às práticas cristãs. [A questão está em perceber] como chegar junto destas pessoas e explicar aquilo que significa para nós a graça de Deus, qual é o significado profundo do matrimónio, da paternidade, de alguém se tornar pai ou mãe. Estes elementos básicos da nossa antropologia nem sempre são compreendidos.

Mas essas diferentes abordagens vêm de toda a parte, incluindo da Igreja. Os bispos do seu país, a Alemanha, por exemplo, têm uma opinião diferente em relação ao Capítulo VIII da exortação Amoris Laetitia.

Mas nada disto depende das opiniões pessoais dos membros da Igreja. Não são as opiniões dos bispos que são decisivas, mas a fidelidade à palavra de Deus. Há aqui um certo positivismo do magistério, como se o Papa ou o conselho dos bispos fossem senhores da revelação. Isso é um mal entendido. O Papa deu uma interpretação na Amoris Laetitia, e não é bom que os bispos dêem uma interpretação da interpretação. Critiquei isso. É contrário à estrutura dos sacramentos da Igreja católica. O Papa tem uma autoridade superior, sujeita à revelação, e é responsável pela unidade da Igreja, na Fé revelada. Não é alguém que emite certas opiniões de maneira a fazer uma síntese de opiniões sobre isso. Alguns bispos correm o risco de dar mais atenção àquilo que pode sofrer o efeito da opinião pública do que à palavra de Deus, que deveria vir em primeiro lugar, de acordo com a Bíblia e a tradição apostólica.

«Se eu disser 'Podem fazer o que quiserem', serei muito amado. Dirão: 'Oh, é um grande amigo nosso.' Mas se os pais ou os professores permitirem tudo às crianças... No longo prazo, não é bom para nós»

E qual é a sua proposta para lidar com os católicos que contraíram o matrimónio e se divorciaram?

O sacramento do matrimónio é indissolúvel por vontade de Deus. Ninguém pode mudar isso. Uma possibilidade é voltar para o esposo legítimo ou então desistir das relações que não são válidas. A questão está apenas em perceber se as condições para aquele matrimónio estavam reunidas, de acordo com os preceitos da Igreja. O casamento civil não é exactamente igual ao sacramento do matrimónio. Seguramente que há muitas pessoas que não conseguem entender isto.

Parece-lhe que é sempre possível voltar para o matrimónio?

Se humanamente não for possível, também não podem viver [com outros] como se fossem esposos.

Há quem argumente que isso elimina a possibilidade de penitência ou a possibilidade de reconhecer o que correu mal, permanecendo envolvidos na vida da Igreja.

Não é possível ter dois tipos de cristianismo: um para uma elite, que respeita a palavra de Deus, e o outro para os outros, a quem impomos apenas alguns direitos e sacramentos, deixando que a vida corra como ela é. Jesus veio para mudar o velho mundo de pecado, do qual fazia parte o divórcio. Jesus explicou isto de forma muito clara. Não é assim tão fácil satisfazer a vontade de Deus. Jesus não queria ir para a Cruz. Podemos dizer que era necessário que Jesus morresse pelos nossos pecados, mas isso não depende da nossa vontade pessoal, da nossa opinião. Quando as pessoas dizem que sim apenas a uma pessoa, para a vida inteira, e lhes é concedido por Deus o laço matrimonial, Ele estabelece uma aliança entre essas duas pessoas. Devemos respeitar a realidade do sacramento que recebemos. Seguramente que para muitos no mundo isto é estranho. Muitas pessoas são incapazes de perceber e procuram formas de escapar a esta realidade. Mas se somos baptizados, somos baptizados, somos cristãos. Não podemos dizer: «Ah, eu vivo num mundo de muçulmanos, vou à mesquita, porque podemos louvar a Deus em todos os sítios.» Se somos cristãos, somos cristãos. É preciso assumir as consequências. Se nos casamos enquanto cristãos, temos de assumir as consequências disso. Não podemos dizer: «Casei-me primeiro, tive duas crianças, e depois casei-me com outra pessoa, tive outros filhos e já não quero saber dos primeiros.» Há obrigações que resultam do matrimónio e que é preciso assumir.

Enquanto Prefeito desta Congregação, sente-se, de certa forma, o polícia da Doutrina?

De certa forma, isso parece-me insultuoso. É um estereótipo que recai sobre a nossa Congregação. A fidelidade à palavra de Jesus Cristo é uma tarefa da Igreja, não tem nada a ver com policiamento. A palavra de Deus é uma palavra de salvação. Poderia parecer bom para nós que encontrássemos formas de fundamentar Jesus Cristo de maneira a que a religião fosse aceite por todos e merecesse o aplauso de todos, mas nós somos a Igreja católica. Temos de permanecer próximos das palavras de Deus, caso contrário perdemos os nossos fundamentos. Não podemos falar apenas para agradar às pessoas.

«A demissão [de Marie Collins, vítima de abuso na infância por parte de um padre que decidiu sair da Comissão Pontifícia para a Protecção dos Menores] não teve nada a ver connosco. Fomos acusados e eu não sei porquê»

Quer dizer que muitas vezes lhe cabe a si ser a voz do dever…

Se eu disser «Podem fazer o que quiserem», serei muito amado. Dirão: «Oh, é um grande amigo nosso.» Mas se os pais ou os professores permitirem tudo às crianças… No longo prazo, não é bom para nós. O próprio Jesus não foi assim tão bem aceite quando falou da indissolubilidade do matrimónio. Os Apóstolos não ficaram muito entusiasmados. Disseram: «É impossível para nós enquanto homens». Mas Jesus disse: «Com a graça de Deus, tudo é possível». Isto é o Evangelho cristão — e não apenas falar para agradar às pessoas. Há quem fale em conservadores e liberais. O que são liberais? O que é que aconteceu a alguns países que aderiram ao cristianismo liberal, reduzindo a base do próprio cristianismo? Caíram no secularismo, na indiferença. Não é assim tão fácil ser e tornar-se cristão. Só há um caminho estreito que conduz ao Céu. Por isso, é preciso manter clara a revelação de Jesus Cristo, tornando possível segui-Lo.

Esta Congregação tem a tarefa difícil de lidar com os casos de abusos sexuais na Igreja. Em Março, Marie Collins [vítima de abuso na infância por parte de um padre] demitiu-se da Comissão Pontifícia para a Protecção dos Menores. Como vê esta saída?

Esta demissão não teve nada a ver connosco. Fomos acusados e eu não sei porquê.

Essas críticas pareceram-lhe um ataque pessoal?

Não, mas levamo-las muito a sério porque os nossos colaboradores trabalham de dia e de noite há 16 anos, de forma exemplar. É uma tarefa árdua, não é fácil trabalhar neste campo. E agora são acusados de não fazer nada… Esta Comissão começou há dois anos. Não é possível que a nossa Congregação seja acusada de ter a culpa desta demissão. Todos queriam trabalhar com esta Comissão. Se alguém não queria continuar naquele trabalho, podia sair, mas não acusar outro grupo de pessoas, que nada tiveram a ver com isso.

O senhor cardeal e a Congregação estiveram sempre disponíveis para a Comissão?

Trabalhámos juntos na Constituição [Pastor Bonus], mas esta Congregação tem uma tarefa especial confiada pelo Papa para liderar os processos canónicos. Se os outros lá fora tiverem ideias diferentes, não dependemos daquilo que os outros pensam de nós. Não podem dar à nossa Congregação a definição que entenderem. Se entendem que devemos entrar em contacto com as vítimas ou os perpetradores de uma forma pastoral, essa não é a nossa missão.

Quando um destes casos entra na Congregação, qual é o procedimento habitual?

Há um procedimento estabelecido pelo Papa João Paulo II, e que os Papas Bento XVI e Francisco aceitaram, que assenta em regras da Lei Canónica e da Constituição motu proprio Sacramentorum Sanctitatis Tutela. Os primeiros destinatários destas acusações de abusos cometidos sobre menores por clérigos são as dioceses ou as congregações religiosas. Estas instituições eclesiásticas informam-nos a nós, que somos a segunda ou terceira instância deste processo. A principal responsabilidade centra-se na diocese e não aqui em Roma. Aqui não somos responsáveis por toda a Igreja. Apenas agimos com a autoridade do Papa. O Santo Padre é uma instância de apelo e, por isso, ele pode pedir à sua Congregação que supervisione tudo e tome algumas decisões. Mas não está tudo centralizado em Roma. Não podemos ocupar-nos das terapias, dos discursos pastorais, da investigação nestes locais. Estamos em Roma, não por todo o mundo. A Congregação não é uma organização internacional, é apenas uma instituição que dá apoio ao Santo Padre, na sua responsabilidade sobre a Igreja universal. A responsabilidade concreta recai sobre as dioceses. Nós temos de nos restringir aos processos canónicos.

«A opinião pública fala apenas dos clérigos como se, cada vez que vemos um padre na rua, ele fosse um possível criminoso, abusador de crianças. A realidade é totalmente oposta. A percentagem de padres envolvidos nestes casos lamentáveis é muito pequena, mais pequena do que na população geral»

Quantos casos chegaram aqui nos últimos três anos?

É difícil dizer porque aqui chegam as acusações e nós temos de nos concentrar nas sentenças que são dadas no fim. Alguns casos prolongam-se por muito tempo e duram 14 ou 15 anos.

E quantas sentenças foram atribuídas nos últimos três anos?

Não sei o número exacto. Depende dos anos. Mas temos alguns dados publicados no Anuário Pontifício. Mas não são tantos quanto as pessoas pensam.

Serão centenas?

Centenas… Mas num período de 50 ou 60 anos. E isto são sentenças. Porque também há acusações que não podem ser clarificadas ao fim de 50 anos. Às vezes há casos em que as testemunhas dizem que ouviram alguma coisa, nalgum lado, mas não há um autor do abuso, ninguém é acusado. Também há acusações estranhas que são verdade e nós damos as sentenças de acordo com a Lei Canónica e não a nosso bel-prazer, de acordo com a nossa subjectividade.

Em países profundamente católicos, fazer uma denúncia contra um padre pode ser muito difícil. A Igreja é muitas vezes vista como uma instituição poderosa.

A Igreja não é uma instituição poderosa com poder político, mas tem uma autoridade que está de acordo com a salvação, a revelação e o Evangelho. Essa é a missão da Igreja. Os Papas e nós sempre dissemos que é uma absoluta contradição para o ethos de um padre abusar de menores ou cometer outros crimes contra a dignidade do Homem, porque somos as primeiras testemunhas da dignidade do Homem, incluindo os menores, as crianças. Por outro lado, a opinião pública fala apenas dos clérigos como se, cada vez que vemos um padre na rua, ele fosse um possível criminoso, abusador de crianças. A realidade é totalmente oposta. A percentagem de padres envolvidos nestes casos lamentáveis é muito pequena, mais pequena do que na população geral. Temos tantos casos de abusos na sociedade civil, nas sociedades ocidentais, nas asiáticas e em África e noutras culturas onde é quase legal. E ninguém fala nisso. É como se o abuso de menores fosse um problema exclusivo do clero. A realidade é outra. Intriga-me que não haja um movimento público para parar o abuso de crianças, nomeadamente na pornografia infantil na televisão, em livros, na Internet. Não há acções para parar isso. Se houver gente influente envolvida nisto, toda a gente encontra formas de os desculpar. Se acontecer em Hollywood, ninguém se importa. Compreendem, têm pena dessas pessoas. A realidade é que as autoridades da Igreja católica, tal como milhões e milhões de católicos, não estão envolvidas nisto. As autoridades da Igreja — os bispos e o Papa — são o único grupo que luta absolutamente contra o abuso de menores, não apenas em teoria, mas também na prática. Estamos na linha da frente desta luta. E a Comissão para a Protecção de Menores não foi instituída apenas para lidar com este grupo de padres, mas também para confrontar a Igreja católica com a sua autoridade moral contra estes abusos que acontecem aos milhões em todo o mundo.

«O respeito pelos direitos humanos é uma grande mensagem da Igreja, também através da voz profética da Virgem Sagrada que apareceu a estas três crianças em Fátima. Crianças, pobres, marginalizadas, longe dos centros do poder, longe de Silicon Valley...»

O Papa Francisco mencionou a intenção de criar um tribunal para lidar com este tipo de abusos, mas isso não aconteceu. Porque razão?

Nós temos um tribunal contra casos reais de abusos e de crimes, mas não temos condições para construir uma definição fluída daquilo que é a negligência e do que é o abuso. Um tribunal deve ter uma definição das matérias que julga e a negligência não é assim tão fácil de entender. As circunstâncias nem sempre são fáceis. No fim do processo, no fim da investigação, sabemos mais coisas, mas no início há vozes que ninguém sabe de onde vêem. É fácil criticar, mas na realidade não é assim tão fácil de investigar, de encontrar informação significativa.

A Igreja está a fazer tudo o que pode para prevenir estes casos em todo o mundo?

Isso é absolutamente verdade. No início de 2001, houve uma reorganização [da forma de lidar com este assunto], porque ninguém sabia o que devia fazer. Ninguém sabia que este também era um problema existente no seio do clero católico, não havia uma visão global. Desde essa altura, há um procedimento claríssimo para enfrentar os problemas que surgem.

Pensa que, durante a investigação, os suspeitos devem ser mantidos nos cargos ou devem ser afastados das crianças?

Depende dos casos. Não é possível dar a todos os casos a mesma penalização. A culpa deve ter uma pena adequada. Nos tribunais civis, as pessoas não recebem todas as mesmas penas — é impossível. Depende das circunstâncias, da prevenção do futuro. Mas há muitos casos aqui em que decidimos que devemos dispensar as pessoas do estado clerical. Para outros, há medidas distintas. Mas não há nenhum caso provado de abuso de menores sem punição.

Quanto a Fátima, qual é a relevância desta viagem do Papa?

É o centenário e, por isso, é uma viagem importante. Vemos que os problemas do mundo são muito semelhantes aos desafios que havia em 1917. Estava a começar a Primeira Guerra Mundial, era o arranque de grandes ideologias que devastaram a Humanidade. Agora somos confrontados com novos nacionalismos e imperialismos que são muito perigosos para a Humanidade. Por isso, julgo que a mensagem de Fátima é muito importante, enquanto chamada à conversão dos nossos corações, para os enchermos de amor e não de ódio, promovendo os valores da solidariedade, da responsabilidade ou da ecologia, do cuidado com o ambiente e, especialmente, da protecção da dignidade humana e para a dedicação de todos à totalidade da vida, na Terra, mas também pensando no nosso caminho em direcção ao Céu. O nosso horizonte não se limita ao seu curto percurso na Terra. O respeito pelos direitos humanos é uma grande mensagem da Igreja, também através da voz profética da Virgem Sagrada que apareceu a estas três crianças em Fátima. Crianças, pobres, marginalizadas, longe dos centros do poder, longe de Silicon Valley…