Na continuação do que dizia logo no início do número anterior, no qual acabei por desenvolver apenas a questão do canto na liturgia, continuando nessa mesma interpelação que fiz ao leitor no sentido de se interrogar sobre a razão que terá levado o Santo Padre a apelar ao uso do latim, debrucemo-nos agora um pouco sobre essa questão.
Basta olharmos para o último (e triste) acontecimento na nossa língua mátria, para vermos que uma língua é dinâmica, que tem vida. Sabemos que no Português há mais do que uma maneira para dizer a mesma coisa, daí as situações por vezes embaraçosas que resultam da aplicação de termos susceptíveis de alguma ambiguidade, problema mais notório quando há que interpretar o exacto sentido de uma ideia posta em letra de lei, por exemplo.
Então o que é que o uso do latim na liturgia tem a ver com isto? Tem a ver com isto, e não só, pois, são duas as razões fundamentais que clamam para o uso do latim:
A primeira é o factor da universalidade, que permite a todo o católico, em qualquer parte do mundo, participar na liturgia celebrada numa só e mesma língua.
A segunda e mais importante razão, tem a ver com o facto de o latim, por não ser uma língua evolutiva, não permitir as variações que foram introduzidas no vernáculo. Escondida atrás dessas variações, veio a adulteração, que não deriva de uma deficiente tradução, mas de uma sub-reptícia intencionalidade, mal do qual já o próprio Papa Paulo VI se queixara em 1976, como referi no primeiro artigo.
Estas são as razões que levam o Santo Padre a falar-nos da necessidade de irmos voltando àquela que é, afinal, a língua oficial da Igreja, para que em todas as Missas de todo o mundo, todos os sacerdotes, com todos os fiéis, celebrem o cruento e salvífico Sacrifício do altar proferindo exactamente as mesmas palavras, não dando azo a supressões ou acrescentos como os que gostam de fazer muitos padres, desobedecendo às normas estabelecidas pelo Vat. II, na SC, 22, § 3.
Foi precisamente com a mudança para o idioma de cada povo, que todos fomos levados a crer que isso representava um avanço, quando na verdade não passou de uma forma ardilosa dos inimigos, usada para impedir o maior louvor ao Altíssimo, ao nos desviarem do exacto sentido das palavras veiculado pelo latim. Dessa forma, a coberto da tradução foi-lhes possível alterarem o significado teológico de algumas frases.
Basta um pouco de atenção para vermos o exemplo que salta mais à vista: na Missa em latim, o sacerdote, dirigindo-se ao povo, diz: «Dominus vobiscum!», e o povo, por sua vez, responde, com o mesmo sentido de petição a Deus e desejo de coração: «Et cum spiritu tuo!»
Com estas palavras, o sacerdote está a dizer: «O Senhor esteja convosco!», às quais o povo responde: «E com o teu espírito!»
Se meditarmos um pouco só nestas palavras, que se repetem por três vezes, logo vemos a dimensão, a profundidade, a unção do Espírito (como diriam no RC) (1) que nelas se encontra. Nesta resposta, o povo lança ao sacerdote, como forma de bênção, o seu desejo, antes feito súplica a Deus, que também nele se faça presente o mesmo Senhor, para mais digna celebração e santificação de todos.
Para uma alma enamorada por Deus, numa Missa onde o Sagrado é sentido pelos fiéis, estas palavras de bênção são suficientes para lhe escancarar a porta do coração ao Espírito Santo. Mas para impedir que isso aconteça, e impedir também que outros cheguem a esse enamoramento, tudo fora pensado. Este pequeno exemplo ilustra bem o que foi o trabalho dos inimigos da Fé dentro da Igreja.
Como dizia atrás, aproveitaram a tradução para alterarem o sentido. Senão, vejamos agora a resposta do povo em sua língua, que, em vez de dizer «e com o teu espírito», diz, «ele está no meio de nós…»
Se isto não é subversão crua e pura, então não sei o que é subversão. Como quem suscita todo o erro é o mesmo que tem estado a macaquear as coisas de Deus, com esta e outras adulterações que passam despercebidas à maioria, muito nos tem andado a gozar. Disso só se apercebe quem já lhe conheça todas as manhas e esteja mais por dentro dos vários serviços da Igreja. Uma vez que se oculta aos nossos olhos físicos, não identificamos a sua presença no seio dos vários grupos paroquiais, razão pela qual a fraternidade Cristã é a coisa mais difícil, para não dizer impossível, de encontrar. E mesmo assim, na Missa, hipocritamente dizemos «ele (2) está no meio de nos?»
Eis um triste exemplo, que lamentavelmente me diz respeito:
Um dia alertei um amigo, membro da Conferência Vicentina local, para a necessidade de repensarem o apoio que estavam a dar a uma determinada família, por mim bem conhecida. Porque nesse dia iam ter reunião, pediu-me que fosse lá com ele expor o caso. Quando eu disse que aquela família, composta por mãe e filho, cada um com suas limitações, carecia de outro tipo de apoio e não daquele que lhe estavam a dar, que era o saco com víveres, uma vez que, todos, mas todos os dias, ambos tomavam o pequeno-almoço no café, composto por uma sandes de queijo e um galão cada um, talvez por julgar que eu estava a pôr em causa o seu trabalho, vendo-se por isso ferida no seu orgulho, uma das senhoras presentes caiu-me em cima de uma forma «tão cristã», que ainda hoje nem o olhar me dirige, passados que já foram vários anos…
E este é apenas um dos vários casos que só comigo já se passaram… Por isso, conhecedor dos muitos males existentes entre pessoas e grupos, quando na Santa Missa todos dizem «ele está no meio de nós», sabendo que isso está longe da verdade, só por distração é que eu pronuncio tais palavras.
Quanto ao não sabermos o que dizemos no latim, basta termos o Ordinário da Missa com a tradução por baixo, e por outro lado, aceitarmos que o essencial da Missa é um Mistério…
Sobre isso mantenho ainda viva na memória a imagem de mim próprio quando era criança. Fixava-me, muitas vezes sem me aperceber se estaria a respirar, naquilo que para mim representava cada frase, cada momento da Santa Missa. Vejo agora que, de facto, naquele quadro tão simples, composto pelo Sagrado e pela criança interessada em perscrutar o Mistério, o não entendimento não impedia a atracção que o Espírito Santo em mim suscitava pelo Divino. É o que acontece nos corações que se deixam enamorar por Deus…
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(1) Renovamento Carismático.
(2) Propositadamente em minúscula, por não ser Ele, o Senhor, aquele que na verdade está no meio de nós.
José Augusto Santos