Plínio Corrêa de Oliveira, Catolicismo, N.º 39, 1954
Resumamos em duas palavras o nosso artigo anterior.
O exagero é um defeito que pode corromper qualquer virtude. O amor à pátria, por exemplo, é uma qualidade, mas a estatolatria é um defeito. A justiça também é uma qualidade, mas o exagero pode transformá-la em dureza, e até em crueldade. A intransigência é uma virtude, mas, levada ao excesso, pode chegar ao sectarismo. E assim por diante.
Ora, a moderação também é uma qualidade. Logo, é susceptível de ser deformada pelo exagero. Ser "moderadamente moderado" é bom. Ser exageradamente moderado é mau. "Corruptio optimi péssima". A moderação é uma alta, uma altíssima virtude. Precisamente por isto, suas deformações são muito perigosas. Em princípio, é pois muito importante conhecer os exageros da moderação, para os prevenir ou remediar.
* * *
A esta razão doutrinária válida para todos os tempos e todos os lugares soma-se - para recomendar um estudo do assunto nestes primórdios de ano - um motivo circunstancial dos mais ponderáveis. O homem de nossos dias é essencialmente exagerado. Durante decénios inteiros sopraram sobre ele os ventos desencadeados das propagandas políticas e sociais mais extremadas. Ele tomou gosto pelo excesso. Depois da guerra tem-se feito em vários sectores um esforço muito oportuno para lhe incutir alguma moderação. Sucedeu então um fenómeno curioso, mas explicável: viciado no exagero, o homem moderno começou a exagerar a moderação. Daí, pelo menos em parte, a voga de que gozam agora muitas atitudes e modos de pensar do início deste século que há dez ou quinze anos atrás teriam sido apontadas como manifestamente liberais.
Ora, nada poderia comprometer mais a fundo a causa de uma santa e sadia moderação, do que um tal desvio. Apontar, analisar, pôr a nu este desvio em algumas de suas incontáveis manifestações é pois serviço útil e urgente, na luta contra o exagero.
* * *
Há três princípios que o hipermoderantismo leva ao excesso. Tolerante, transigente, quiçá displicente em tudo, ele receia o excesso em todos os campos. Mas nestes três principias ele é intransigente como um inquisidor de legenda, fanático como um maometano, meticuloso como um fariseu. São três princípios excelentes:
1) a norma de Santo Agostinho, "odiai o erro e amai os que erram";
2) "a virtude está no meio termo";
3) a máxima de S. Francisco de Sales: "com uma colherinha de mel se atraem mais moscas do que com um tonel de vinagre".
Daí decorre toda uma série de posições unilaterais que redundam em liberalismo mais ou menos declarado.
* * *
O que o hipermoderantismo tem de característico, é que leva praticamente a uma posição de "terceira força" entre a verdade e o erro, o bem e o mal. Se num extremo está a Cidade de Deus, cujos filhos procuram difundir por todas as formas o bem e a verdade, se no outro extremo está a Cidade do Demónio, cujos soldados procuram difundir o erro e o mal sob todas as suas formas, é claro que a luta entre estas duas Cidades é inevitável. Pois duas forças agindo num mesmo campo em sentidos opostos têm de se combater necessariamente. De onde não pode haver uma difusão da verdade e do bem que não implique num combate ao erro e ao mal, e ainda aos fautores do erro e do mal. Reciprocamente, não pode haver difusão do erro e do mal que não acarrete combate à verdade, ao bem, aos que difundem a verdade, aos que trabalham pelo bem. É precisamente o que não querem ver os hipermoderantistas quando levam ao exagero a primeira máxima. Imaginam que, atacando ideias e só ideias, podem chegar à vitória. Como se as ideias fossem entes concretos, susceptíveis de ser atacados e derrotados. As ideias existem na mente dos que as professam. Derrotá-las é converter os seus adeptos, ou, caso estes se obstinem, apontá-los, desmascará-los, privá-los de qualquer influência.
Mas o "moderantista" exagerado não vê nada disto. Resolvido a atacar as ideias só em tese, ele parte em guerra contra dois adversários:
a) as ideias dos anticatólicos;
b) os católicos que levam o combate ao campo dos fatos concretos.
Entre uns e outros, ele atua pois como uma genuína "terceira força".
Bem entendido, o "moderantista" da "terceira força" aplica seus principias também no caso de luta entre católicos dóceis à Santa Sé, e os que professam os erros que o Santo Padre gloriosamente reinante condenou nas encíclicas "Mystici Corporis" e "Mediator Dei", na constituição "Bis Saeculari" e na encíclica "Humani Generis". Ele quer atacar só as doutrinas. Sempre que se trata de dizer que alguém errou, sempre que se trata de afastar alguém de um cargo ou situação em que sua influência poderia ser perigosa, o moderantista está em desacordo. É que isto seria faltar com a caridade, pois transporta a luta, do campo das ideias, para o campo das pessoas.
Em linhas gerais, é este o católico da "terceira força". Mas ele tem uma característica muito curiosa, que a sábia máxima de Santo Agostinho, ele a aplica só em uma direcção. Quando trata com os que professam doutrinas velada ou abertamente erradas, o católico da "terceira força" é "moderantista". Mas sempre que se defronta com os que lutam pela pureza absoluta da doutrina ele ataca... também, e até principalmente as pessoas.
Apontamos um curioso campo de amostra, para a analise de nossos leitores. Atentem eles para a oposição que a "terceira força" faz ao CATOLICISMO. Comparem a posição dos soldados da "terceira força" em relação a nós, com a sua posição em relação aos que divergem de nossas ideias. Para mera comodidade de exposição, e sem querer dar à expressão qualquer significado especial, chamemos a estes de esquerda, e a nós de direita.
No centro estaria a "terceira força". Vejamos:
1) Os escritos emanados da "esquerda" não oferecem maior perigo, desde que não propugnem abertamente o erro. Por isto, devem ser considerados com vistas gordas. Pelo contrario, os escritos da "direita" são perigosíssimos. Eles difundem pelo menos implicitamente uma atmosfera de pugnacidade e intransigência que lesa a caridade. Em consequência, devem ser analisados a fundo e com a maior atenção, e devem ser rigorosamente "boicotados" sempre que tragam consigo o menor fermento de discussão.
2) Os escritores da "esquerda", ainda quando incidam em um ou outro erro formal, podem ser pessoas excelentes, dignas de todo o apreço, e sua colaboração nas lides do apostolado pode e deve ser francamente aproveitada. Os escritores da "direita" pelo contrário são pessoas perigosas, cuja influência se exerce sempre em detrimento da caridade, e que devem ser afastadas de qualquer actividade apostólica.
3) Haveria falta de caridade em criar pela acção pessoal, em conversas com amigos e parentes, com companheiros das associações que se frequenta, etc., um ambiente de suspeição em torno dos elementos da "esquerda". Mas é obra de salvação pública aplicar toda a diligência para criar tal ambiente em relação aos da "direita".
4) É possível que neste ou naquele caso concreto a acção de algum entusiasta da "esquerda" tenha sido menos leal ou menos caridosa. Cumpre perdoá-lo, pois a paixão muito pode sobre a pobre humanidade decaída. Haveria juízo temerário, ou até manifesta calúnia em suspeitar das intenções de tais pessoas. É patente, porém, que a "direita" peca sempre contra a caridade, que o senso mais elementar da justiça pede que seus adeptos sejam punidos com a maior severidade, que pela energia se façam cessar suas actividades perniciosas. Quanto às suas intenções, se se as considera com muita caridade fica-se no limite de uma grave suspeita.
Qual o resultado desta formidável e feroz contradição? Não poderia ser mais claro. Os fautores do mal ficam cercados de toda a consideração, de todas as simpatias, providos em todas as posições-chave para a difusão do erro. Pelo contrário, os defensores da verdade ficam isolados, antipatizados, afastados de todas as situações estratégicas.
Em outros termos, todo o peso da influência da terceira força concorre para a vitória das ideias que - no mundo da lua pelo menos - ela condena.
Uma ideia fixa: a equidistância
Mas, dirá alguém, a virtude não está no meio? Se a direita é um extremo, se a esquerda é outro, a virtude não tem que estar a meia distância entre uma e outra? Seria preciso começar por indagar se a posição da "terceira força", dos "exageradamente moderados", realmente está no meio. Pois quando se tem todas as cóleras voltadas para um dos lados, e todas as indulgências para o outro, é muito difícil afirmar que se tem o coração a igual distância de um e de outro. Ademais, nada seria mais erróneo do que imaginar que, dadas duas opiniões contrárias, a virtude está sempre no meio-termo entre elas. Assim, se numa roda alguém é a favor da decapitação para punir o homicídio, e outra pessoa é a favor da simples prisão, não se deve deduzir daí que a verdade não consiste em cortar o homicida pelo pescoço, nem em não o cortar de modo nenhum, mas em cortá-lo pelas pernas. Do mesmo modo, em um grupo onde um católico sustenta que a Hierarquia Eclesiástica se compõe de Papa, Bispos e Párocos, e um presbiteriano nega o Papa e os Bispos e admite só os Párocos, a verdade estaria no meio-termo, isto é, no anglicanismo que admite os Bispos, não porém o Papa. Se um ladrão pretende ter direito a todo o dinheiro contido na carteira de sua vítima, e esta afirma que pelo contrário o ladrão não tem direito algum a tal, a virtude consistiria em ficar no meio-termo, e dar ao ladrão a metade do dinheiro. E entre um católico que afirma a existência das três Pessoas da Santíssima Trindade, e um herege que só admitisse em Deus uma Pessoa, a verdade estaria em ficar no meio-termo, aceitando a existência de duas Pessoas em Deus.
Num recto sentido da máxima, é certo que a verdade e a virtude estão no meio. Não porém num meio-termo qualquer, pois isto seria absurdo. O "meio" da máxima significa uma posição de equilíbrio perfeito, do qual estão excluídos todos os exageros teoricamente possíveis, todos os erros imagináveis, no qual há só verdade e bem.
A virtude está no meio
Vamos aos exemplos. Um estudante que sofre uma ou mais reprovações em primeira época é certamente um mau estudante. Outro que passe em todas as matérias com nota 5, é um estudante mediano. Outro ainda, que só alcance distinções em todo o curso, e obtenha todos os prémios, é um estudante excelente. Qual dos três está no meio-termo ideal? Se a virtude está no meio, o meio-termo está com o mais virtuoso. Ora, o mais virtuoso não é o que tirou nota 5 em todos os exames, mas o que tirou nota 10... Isto nos leva a uma formulação que melhor fará compreender a famosa máxima de que a virtude está no meio. Queremos saber onde está o meio? Está na virtude. De onde quanto mais se caminha na virtude, rumo aos píncaros da santidade, tanto mais se está no meio. "Meio" bem diverso, é claro, de mediania, mediocridade, insonsa equidistância entre o bem e o mal. Em matéria de pureza, o "meio" consiste em imitar S. Luiz de Gonzaga, que fugia de tudo quanto fosse mundanismo e tivesse a menor sombra de mal. Em matéria de ortodoxia o meio é a imitação de S. Tomás, Sto. Inácio de Loyola, S. Pio V. Em matéria de oração, é seguir Sta. Tereza de Jesus ou Sta. Terezinha. Em matéria de combatividade consiste em imitar S. Bernardo, o Santo das Cruzadas, ou Santa Joana d'Arc.
Se num extremo está o Céu e noutro o inferno, o "meio" em que a virtude se encontra não está a igual distância entre o trono de Deus e o banco de Satanás, naquela zona de réprobos que Dante viu na entrada do inferno, rejeitados igualmente pelos Anjos e pelos Demónios, isto é, os tíbios, os medíocres, os indiferentes, que passaram pela vida "sanza infâmia e sanza lodo" ( Inf. III, 21 ss. ). O meio se encontra num dos extremos, ou seja, no Céu.
Se queremos saber onde está o meio, só temos um caminho: perguntar à Igreja onde está a virtude.
Mel e vinagre
Mas, dirá por fim mais alguém, não é certo que com uma colherinha de mel se atraem mais moscas do que com um tonel de vinagre? Deixemos de lado a terceira força, e suas lamentáveis incoerências. Não seria melhor que os da "direita" abandonassem definitivamente os métodos polémicos, e procurassem convencer o "outro lado" por meios carinhosos?
Em princípio, o carinho é o que mais atrai os homens. Deve-se deduzir daí, que ele é a única atitude própria do apóstolo? Se Santa Joana d'Arc tivesse querido expulsar os ingleses à força de carícias, teria obtido resultado? S. Bernardo teria agido melhor não pregando as cruzadas, mas organizando na Cristandade um "dia da boa vontade" para com os maometanos? S. Pio V teria procedido mais cristãmente, e mais eficientemente, mandando a Lepanto, em lugar das naus de D. João d’Áustria, algum especialista em sorrisos pacifistas?
De tantos exemplos se deduz claramente que um Santo, preferindo sempre que possível meios suasórios, pode ser obrigado a usar processos muito severos. E isto por duas razões principais. Antes de tudo, no apostolado nem sempre se trata de converter. Desde que uma conversão se revele inviável pela obstinação do pecador, é preciso tirar a este os meios de perder outras almas. E isto raras vezes se obtém com o mero emprego de meios suasórios.
De outro lado, a própria conversão nem sempre se consegue por palavras suaves. A História está cheia de exemplos de almas que só foram tocadas quando ouviram palavras duras, apóstrofes terríveis, ameaças tremendas. Basta pensar no caso de Davi.
Assim, se é verdade que a suavidade atrai mais almas do que a severidade, é certo também que há almas que só a severidade pode converter, situações interiores, estados de crise que só a severidade pode resolver.
Isto posto, firma-se um princípio essencial, que haveria grave erro em esquecer ou subestimar. É que uma técnica de apostolado feita só de doçura é tão errada quanto outra que constasse exclusivamente de severidade.
Severidade ou doçura
Como agir então? Em que medida empregar cada um destes indispensáveis ingredientes da ação apostólica? Quanto de sal? Quanto de açúcar? A primeira vista, o problema parece insolúvel; na realidade é de fácil solução.
Distinga-se cuidadosamente a doçura virtuosa, da viciosa. E o mesmo se faça com a severidade.
"Por seus frutos os conhecereis", diz Nosso Senhor. Pode-se dizer isto dos homens, e também das tácticas de apostolado.
Quando a suavidade do apostolo é de molde a acender nas almas o gosto pela fé, pela pureza, pela vida mortificada, o desapego dos bens da terra, uma confiança sem limites na Igreja de Deus, um ódio inexorável ao pecado: quando a suavidade - em suma - converte e santifica, ela é reta, virtuosa, santa. Mas quando a suavidade do apostolo atola ainda mais o pecador em seu pecado, incutindo nele uma esperança presunçosa de se salvar, diminuindo nele a noção da gravidade de sua culpa, induzindo-o a considerar com indiferença a cólera de Deus, levando-o a odiar as pessoas virtuosas, a se jactar de suas máximas sensuais e mundanas, a sofismar os ditames da Fé e os ensinamentos da Igreja, tal suavidade vem do demónio.
Quando a severidade é turbulenta, irrequieta, contraditória, ora recriminando uma bagatela, ora deixando passar um fato grave; quando ela se exerce mais na defesa dos direitos reais ou supostos da pessoa severa, do que na defesa dos direitos de Deus e da Igreja; quando ela não se aplaca diante de um arrependimento sincero; quando visa desabafar e não edificar; quando não aceita pronta e mansamente os freios da obediência; quando não é de molde a despertar admiração ou atração pela virtude; quando incute um temor que desanima e não converte, não vem de Deus. Mas quando ela é inteiramente razoável mesmo em suas afirmações mais radicais; quando se funda totalmente em princípios, e não em cóleras de momento; quando tem em vista a defesa dos direitos e doutrinas da Igreja, e vê tudo "sub specie aeternitatis", em lugar de se orientar por fobias ou simpatias pessoais; quando aceita bem a obediência, anima para a virtude, afasta do pecado, atrai para Deus as almas, então é dom do Céu.
A santidade é o essencial
Isto posto, o essencial não é que se seja doce ou severo, mas que se seja santamente doce, ou santamente severo.
Severidade, doçura, dependem em grande parte de feitios de alma, e "na casa do Pai celeste há muitas moradas". Diz a Escritura que "o Espírito sopra onde quer", e Deus dá a cada qual Seus dons como entende. A uns dará o dom de atrair principalmente pela suavidade, como São Francisco de Sales. A outros, dará o dom de atrair a Ele pelo vigor de uma polémica fogosa e inflexível, como S. Jerónimo. Não ergamos Santo contra Santo, altar contra altar, virtude contra virtude. Compreendamos antes que onde está a santidade está Deus, fonte de todo o bem. Sejamos mais severos do que suaves, ou mais suaves do que severos: o essencial é que o sejamos santamente. Pois o que se quer é a santidade, isto é, a perfeita adesão à doutrina católica, à prática perfeita dos Mandamentos.
Num ou noutro caso, ainda que cheguemos a extremos estaremos agindo moderadamente, se agirmos santamente.
Repetimos: a virtude está no meio; e este famoso meio está na virtude.
E se não estivesse na virtude, onde poderia estar senão no inferno?
Resumamos em duas palavras o nosso artigo anterior.
O exagero é um defeito que pode corromper qualquer virtude. O amor à pátria, por exemplo, é uma qualidade, mas a estatolatria é um defeito. A justiça também é uma qualidade, mas o exagero pode transformá-la em dureza, e até em crueldade. A intransigência é uma virtude, mas, levada ao excesso, pode chegar ao sectarismo. E assim por diante.
Ora, a moderação também é uma qualidade. Logo, é susceptível de ser deformada pelo exagero. Ser "moderadamente moderado" é bom. Ser exageradamente moderado é mau. "Corruptio optimi péssima". A moderação é uma alta, uma altíssima virtude. Precisamente por isto, suas deformações são muito perigosas. Em princípio, é pois muito importante conhecer os exageros da moderação, para os prevenir ou remediar.
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A esta razão doutrinária válida para todos os tempos e todos os lugares soma-se - para recomendar um estudo do assunto nestes primórdios de ano - um motivo circunstancial dos mais ponderáveis. O homem de nossos dias é essencialmente exagerado. Durante decénios inteiros sopraram sobre ele os ventos desencadeados das propagandas políticas e sociais mais extremadas. Ele tomou gosto pelo excesso. Depois da guerra tem-se feito em vários sectores um esforço muito oportuno para lhe incutir alguma moderação. Sucedeu então um fenómeno curioso, mas explicável: viciado no exagero, o homem moderno começou a exagerar a moderação. Daí, pelo menos em parte, a voga de que gozam agora muitas atitudes e modos de pensar do início deste século que há dez ou quinze anos atrás teriam sido apontadas como manifestamente liberais.
Ora, nada poderia comprometer mais a fundo a causa de uma santa e sadia moderação, do que um tal desvio. Apontar, analisar, pôr a nu este desvio em algumas de suas incontáveis manifestações é pois serviço útil e urgente, na luta contra o exagero.
* * *
Há três princípios que o hipermoderantismo leva ao excesso. Tolerante, transigente, quiçá displicente em tudo, ele receia o excesso em todos os campos. Mas nestes três principias ele é intransigente como um inquisidor de legenda, fanático como um maometano, meticuloso como um fariseu. São três princípios excelentes:
1) a norma de Santo Agostinho, "odiai o erro e amai os que erram";
2) "a virtude está no meio termo";
3) a máxima de S. Francisco de Sales: "com uma colherinha de mel se atraem mais moscas do que com um tonel de vinagre".
Daí decorre toda uma série de posições unilaterais que redundam em liberalismo mais ou menos declarado.
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O que o hipermoderantismo tem de característico, é que leva praticamente a uma posição de "terceira força" entre a verdade e o erro, o bem e o mal. Se num extremo está a Cidade de Deus, cujos filhos procuram difundir por todas as formas o bem e a verdade, se no outro extremo está a Cidade do Demónio, cujos soldados procuram difundir o erro e o mal sob todas as suas formas, é claro que a luta entre estas duas Cidades é inevitável. Pois duas forças agindo num mesmo campo em sentidos opostos têm de se combater necessariamente. De onde não pode haver uma difusão da verdade e do bem que não implique num combate ao erro e ao mal, e ainda aos fautores do erro e do mal. Reciprocamente, não pode haver difusão do erro e do mal que não acarrete combate à verdade, ao bem, aos que difundem a verdade, aos que trabalham pelo bem. É precisamente o que não querem ver os hipermoderantistas quando levam ao exagero a primeira máxima. Imaginam que, atacando ideias e só ideias, podem chegar à vitória. Como se as ideias fossem entes concretos, susceptíveis de ser atacados e derrotados. As ideias existem na mente dos que as professam. Derrotá-las é converter os seus adeptos, ou, caso estes se obstinem, apontá-los, desmascará-los, privá-los de qualquer influência.
Mas o "moderantista" exagerado não vê nada disto. Resolvido a atacar as ideias só em tese, ele parte em guerra contra dois adversários:
a) as ideias dos anticatólicos;
b) os católicos que levam o combate ao campo dos fatos concretos.
Entre uns e outros, ele atua pois como uma genuína "terceira força".
Bem entendido, o "moderantista" da "terceira força" aplica seus principias também no caso de luta entre católicos dóceis à Santa Sé, e os que professam os erros que o Santo Padre gloriosamente reinante condenou nas encíclicas "Mystici Corporis" e "Mediator Dei", na constituição "Bis Saeculari" e na encíclica "Humani Generis". Ele quer atacar só as doutrinas. Sempre que se trata de dizer que alguém errou, sempre que se trata de afastar alguém de um cargo ou situação em que sua influência poderia ser perigosa, o moderantista está em desacordo. É que isto seria faltar com a caridade, pois transporta a luta, do campo das ideias, para o campo das pessoas.
Em linhas gerais, é este o católico da "terceira força". Mas ele tem uma característica muito curiosa, que a sábia máxima de Santo Agostinho, ele a aplica só em uma direcção. Quando trata com os que professam doutrinas velada ou abertamente erradas, o católico da "terceira força" é "moderantista". Mas sempre que se defronta com os que lutam pela pureza absoluta da doutrina ele ataca... também, e até principalmente as pessoas.
Apontamos um curioso campo de amostra, para a analise de nossos leitores. Atentem eles para a oposição que a "terceira força" faz ao CATOLICISMO. Comparem a posição dos soldados da "terceira força" em relação a nós, com a sua posição em relação aos que divergem de nossas ideias. Para mera comodidade de exposição, e sem querer dar à expressão qualquer significado especial, chamemos a estes de esquerda, e a nós de direita.
No centro estaria a "terceira força". Vejamos:
1) Os escritos emanados da "esquerda" não oferecem maior perigo, desde que não propugnem abertamente o erro. Por isto, devem ser considerados com vistas gordas. Pelo contrario, os escritos da "direita" são perigosíssimos. Eles difundem pelo menos implicitamente uma atmosfera de pugnacidade e intransigência que lesa a caridade. Em consequência, devem ser analisados a fundo e com a maior atenção, e devem ser rigorosamente "boicotados" sempre que tragam consigo o menor fermento de discussão.
2) Os escritores da "esquerda", ainda quando incidam em um ou outro erro formal, podem ser pessoas excelentes, dignas de todo o apreço, e sua colaboração nas lides do apostolado pode e deve ser francamente aproveitada. Os escritores da "direita" pelo contrário são pessoas perigosas, cuja influência se exerce sempre em detrimento da caridade, e que devem ser afastadas de qualquer actividade apostólica.
3) Haveria falta de caridade em criar pela acção pessoal, em conversas com amigos e parentes, com companheiros das associações que se frequenta, etc., um ambiente de suspeição em torno dos elementos da "esquerda". Mas é obra de salvação pública aplicar toda a diligência para criar tal ambiente em relação aos da "direita".
4) É possível que neste ou naquele caso concreto a acção de algum entusiasta da "esquerda" tenha sido menos leal ou menos caridosa. Cumpre perdoá-lo, pois a paixão muito pode sobre a pobre humanidade decaída. Haveria juízo temerário, ou até manifesta calúnia em suspeitar das intenções de tais pessoas. É patente, porém, que a "direita" peca sempre contra a caridade, que o senso mais elementar da justiça pede que seus adeptos sejam punidos com a maior severidade, que pela energia se façam cessar suas actividades perniciosas. Quanto às suas intenções, se se as considera com muita caridade fica-se no limite de uma grave suspeita.
Qual o resultado desta formidável e feroz contradição? Não poderia ser mais claro. Os fautores do mal ficam cercados de toda a consideração, de todas as simpatias, providos em todas as posições-chave para a difusão do erro. Pelo contrário, os defensores da verdade ficam isolados, antipatizados, afastados de todas as situações estratégicas.
Em outros termos, todo o peso da influência da terceira força concorre para a vitória das ideias que - no mundo da lua pelo menos - ela condena.
Uma ideia fixa: a equidistância
Mas, dirá alguém, a virtude não está no meio? Se a direita é um extremo, se a esquerda é outro, a virtude não tem que estar a meia distância entre uma e outra? Seria preciso começar por indagar se a posição da "terceira força", dos "exageradamente moderados", realmente está no meio. Pois quando se tem todas as cóleras voltadas para um dos lados, e todas as indulgências para o outro, é muito difícil afirmar que se tem o coração a igual distância de um e de outro. Ademais, nada seria mais erróneo do que imaginar que, dadas duas opiniões contrárias, a virtude está sempre no meio-termo entre elas. Assim, se numa roda alguém é a favor da decapitação para punir o homicídio, e outra pessoa é a favor da simples prisão, não se deve deduzir daí que a verdade não consiste em cortar o homicida pelo pescoço, nem em não o cortar de modo nenhum, mas em cortá-lo pelas pernas. Do mesmo modo, em um grupo onde um católico sustenta que a Hierarquia Eclesiástica se compõe de Papa, Bispos e Párocos, e um presbiteriano nega o Papa e os Bispos e admite só os Párocos, a verdade estaria no meio-termo, isto é, no anglicanismo que admite os Bispos, não porém o Papa. Se um ladrão pretende ter direito a todo o dinheiro contido na carteira de sua vítima, e esta afirma que pelo contrário o ladrão não tem direito algum a tal, a virtude consistiria em ficar no meio-termo, e dar ao ladrão a metade do dinheiro. E entre um católico que afirma a existência das três Pessoas da Santíssima Trindade, e um herege que só admitisse em Deus uma Pessoa, a verdade estaria em ficar no meio-termo, aceitando a existência de duas Pessoas em Deus.
Num recto sentido da máxima, é certo que a verdade e a virtude estão no meio. Não porém num meio-termo qualquer, pois isto seria absurdo. O "meio" da máxima significa uma posição de equilíbrio perfeito, do qual estão excluídos todos os exageros teoricamente possíveis, todos os erros imagináveis, no qual há só verdade e bem.
A virtude está no meio
Vamos aos exemplos. Um estudante que sofre uma ou mais reprovações em primeira época é certamente um mau estudante. Outro que passe em todas as matérias com nota 5, é um estudante mediano. Outro ainda, que só alcance distinções em todo o curso, e obtenha todos os prémios, é um estudante excelente. Qual dos três está no meio-termo ideal? Se a virtude está no meio, o meio-termo está com o mais virtuoso. Ora, o mais virtuoso não é o que tirou nota 5 em todos os exames, mas o que tirou nota 10... Isto nos leva a uma formulação que melhor fará compreender a famosa máxima de que a virtude está no meio. Queremos saber onde está o meio? Está na virtude. De onde quanto mais se caminha na virtude, rumo aos píncaros da santidade, tanto mais se está no meio. "Meio" bem diverso, é claro, de mediania, mediocridade, insonsa equidistância entre o bem e o mal. Em matéria de pureza, o "meio" consiste em imitar S. Luiz de Gonzaga, que fugia de tudo quanto fosse mundanismo e tivesse a menor sombra de mal. Em matéria de ortodoxia o meio é a imitação de S. Tomás, Sto. Inácio de Loyola, S. Pio V. Em matéria de oração, é seguir Sta. Tereza de Jesus ou Sta. Terezinha. Em matéria de combatividade consiste em imitar S. Bernardo, o Santo das Cruzadas, ou Santa Joana d'Arc.
Se num extremo está o Céu e noutro o inferno, o "meio" em que a virtude se encontra não está a igual distância entre o trono de Deus e o banco de Satanás, naquela zona de réprobos que Dante viu na entrada do inferno, rejeitados igualmente pelos Anjos e pelos Demónios, isto é, os tíbios, os medíocres, os indiferentes, que passaram pela vida "sanza infâmia e sanza lodo" ( Inf. III, 21 ss. ). O meio se encontra num dos extremos, ou seja, no Céu.
Se queremos saber onde está o meio, só temos um caminho: perguntar à Igreja onde está a virtude.
Mel e vinagre
Mas, dirá por fim mais alguém, não é certo que com uma colherinha de mel se atraem mais moscas do que com um tonel de vinagre? Deixemos de lado a terceira força, e suas lamentáveis incoerências. Não seria melhor que os da "direita" abandonassem definitivamente os métodos polémicos, e procurassem convencer o "outro lado" por meios carinhosos?
Em princípio, o carinho é o que mais atrai os homens. Deve-se deduzir daí, que ele é a única atitude própria do apóstolo? Se Santa Joana d'Arc tivesse querido expulsar os ingleses à força de carícias, teria obtido resultado? S. Bernardo teria agido melhor não pregando as cruzadas, mas organizando na Cristandade um "dia da boa vontade" para com os maometanos? S. Pio V teria procedido mais cristãmente, e mais eficientemente, mandando a Lepanto, em lugar das naus de D. João d’Áustria, algum especialista em sorrisos pacifistas?
De tantos exemplos se deduz claramente que um Santo, preferindo sempre que possível meios suasórios, pode ser obrigado a usar processos muito severos. E isto por duas razões principais. Antes de tudo, no apostolado nem sempre se trata de converter. Desde que uma conversão se revele inviável pela obstinação do pecador, é preciso tirar a este os meios de perder outras almas. E isto raras vezes se obtém com o mero emprego de meios suasórios.
De outro lado, a própria conversão nem sempre se consegue por palavras suaves. A História está cheia de exemplos de almas que só foram tocadas quando ouviram palavras duras, apóstrofes terríveis, ameaças tremendas. Basta pensar no caso de Davi.
Assim, se é verdade que a suavidade atrai mais almas do que a severidade, é certo também que há almas que só a severidade pode converter, situações interiores, estados de crise que só a severidade pode resolver.
Isto posto, firma-se um princípio essencial, que haveria grave erro em esquecer ou subestimar. É que uma técnica de apostolado feita só de doçura é tão errada quanto outra que constasse exclusivamente de severidade.
Severidade ou doçura
Como agir então? Em que medida empregar cada um destes indispensáveis ingredientes da ação apostólica? Quanto de sal? Quanto de açúcar? A primeira vista, o problema parece insolúvel; na realidade é de fácil solução.
Distinga-se cuidadosamente a doçura virtuosa, da viciosa. E o mesmo se faça com a severidade.
"Por seus frutos os conhecereis", diz Nosso Senhor. Pode-se dizer isto dos homens, e também das tácticas de apostolado.
Quando a suavidade do apostolo é de molde a acender nas almas o gosto pela fé, pela pureza, pela vida mortificada, o desapego dos bens da terra, uma confiança sem limites na Igreja de Deus, um ódio inexorável ao pecado: quando a suavidade - em suma - converte e santifica, ela é reta, virtuosa, santa. Mas quando a suavidade do apostolo atola ainda mais o pecador em seu pecado, incutindo nele uma esperança presunçosa de se salvar, diminuindo nele a noção da gravidade de sua culpa, induzindo-o a considerar com indiferença a cólera de Deus, levando-o a odiar as pessoas virtuosas, a se jactar de suas máximas sensuais e mundanas, a sofismar os ditames da Fé e os ensinamentos da Igreja, tal suavidade vem do demónio.
Quando a severidade é turbulenta, irrequieta, contraditória, ora recriminando uma bagatela, ora deixando passar um fato grave; quando ela se exerce mais na defesa dos direitos reais ou supostos da pessoa severa, do que na defesa dos direitos de Deus e da Igreja; quando ela não se aplaca diante de um arrependimento sincero; quando visa desabafar e não edificar; quando não aceita pronta e mansamente os freios da obediência; quando não é de molde a despertar admiração ou atração pela virtude; quando incute um temor que desanima e não converte, não vem de Deus. Mas quando ela é inteiramente razoável mesmo em suas afirmações mais radicais; quando se funda totalmente em princípios, e não em cóleras de momento; quando tem em vista a defesa dos direitos e doutrinas da Igreja, e vê tudo "sub specie aeternitatis", em lugar de se orientar por fobias ou simpatias pessoais; quando aceita bem a obediência, anima para a virtude, afasta do pecado, atrai para Deus as almas, então é dom do Céu.
A santidade é o essencial
Isto posto, o essencial não é que se seja doce ou severo, mas que se seja santamente doce, ou santamente severo.
Severidade, doçura, dependem em grande parte de feitios de alma, e "na casa do Pai celeste há muitas moradas". Diz a Escritura que "o Espírito sopra onde quer", e Deus dá a cada qual Seus dons como entende. A uns dará o dom de atrair principalmente pela suavidade, como São Francisco de Sales. A outros, dará o dom de atrair a Ele pelo vigor de uma polémica fogosa e inflexível, como S. Jerónimo. Não ergamos Santo contra Santo, altar contra altar, virtude contra virtude. Compreendamos antes que onde está a santidade está Deus, fonte de todo o bem. Sejamos mais severos do que suaves, ou mais suaves do que severos: o essencial é que o sejamos santamente. Pois o que se quer é a santidade, isto é, a perfeita adesão à doutrina católica, à prática perfeita dos Mandamentos.
Num ou noutro caso, ainda que cheguemos a extremos estaremos agindo moderadamente, se agirmos santamente.
Repetimos: a virtude está no meio; e este famoso meio está na virtude.
E se não estivesse na virtude, onde poderia estar senão no inferno?