segunda-feira, 1 de abril de 2013

PEN Internacional condena
por unanimidade
o Acordo Ortográfico


Teresa Salema Maria do Sameiro Barroso

Foi aprovada por unanimidade no 78.º Congresso do PEN Internacional, que reuniu na Coreia delegações de 87 Centros de todo o mundo entre 9 e 15 de Setembro de 2012, uma resolução do Comité de Tradução e Direitos Linguísticos (CTDL) que manifesta uma evidente preocupação pela ameaça à língua portuguesa representada pelo Acordo Ortográfico de 1990 (AO/90). Tal resolução, traduzida na íntegra a seguir, inclui anexos explicativos de todo o processo. A incredulidade manifestada pela maioria dos escritores presentes, que se interrogavam como se teria chegado a tal situação, justificou a posteriori tal inclusão.

O processo que conduziu à redacção da mesma Declaração teve início no inquérito realizado pelo PEN Clube Português entre os seus sócios, tendo a esmagadora maioria rejeitado o AO 90 e declarado expressamente a conveniência de uma actuação por parte da actual direcção. No encontro de Barcelona do CTDL, de 4 a 6 de Junho de 2012, os resultados desse inquérito foram relatados pela Vice-Presidente, Maria do Sameiro Barroso. Na sequência de tal partilha de preocupações por uma situação que contraria os princípios do Manifesto de Girona do CTDL, foi redigida pelo PEN Internacional a subsequente Declaração.

Durante a Assembleia Geral na Coreia, a discussão deste tema foi introduzida por uma declaração da Presidente do PEN Clube Português, Teresa Salema (delegada oficial ao Congresso com Maria do Sameiro Barroso), manifestando uma preocupação pela situação com que um número crescente de escritores e tradutores se vê confrontado. A alternativa que se coloca aos primeiros, na medida em que não se identifiquem com o AO/90, ou de deixarem que os seus textos sejam convertidos para uma ortografia que lhes é alheia, ou de não verem as suas obras publicadas, foi por todos sentida como um problema complexo. Também os tradutores que em princípio não pretendam seguir o AO/90 se vêem submetidos às imposições administrativas e comerciais, como sublinha a resolução do PEN Internacional.

Na discussão houve intervenções de colegas de vários Centros, nomeadamente por parte do Centro PEN galego, manifestando a sua afinidade na diferença linguística e reiterando o seu apoio incondicional à Declaração. Também o Centro PEN alemão repudiou firmemente a ingerência de autoridades governamentais em assuntos linguísticos de reconhecida complexidade. O presidente do Comité de Escritores para a Paz sublinhou a sua preocupação pela divisão – e possível aumento de conflitualidade – que tais medidas estão a causar entre os cidadãos portugueses. Todos sentiram ainda o carácter nocivo e desestabilizador de uma medida que fere os princípios pedagógicos da democracia, nomeadamente a intenção de contribuir para um aprofundado contacto de amplas camadas das populações com a diversidade linguística e a herança cultural.

O PEN Internacional, como sublinhou o presidente John Ralston Saul, reeleito no Congresso para um segundo mandato de 3 anos, é o único fórum mundial de escritores existente. Neste espírito compete ao PEN Clube Português, como membro do PEN Internacional, defender os princípios e as práticas da liberdade de expressão, bem como do debate esclarecido e empenhado, sobretudo quando está em causa o nosso principal instrumento de trabalho, a língua portuguesa.



domingo, 31 de março de 2013

O Manifesto de Girona
e os «fatos com-seus-medos»

Teresa R. Cadete, Público, 21.2.2013

Em Maio de 2011, os participantes do encontro anual do Comité de Tradução e Direitos Linguísticos do PEN Internacional, reunidos na cidade catalã de Girona, terminavam de redigir um pequeno manifesto que sintetizava em 10 pontos o documento muito mais extenso, até então em vigor, de defesa dos direitos das línguas, sobretudo minoritárias, em particular daquelas que estavam – e estão – ameaçadas de extinção. Pela sua importância, transcrevemos aqui este texto, que condensa as preocupações de todos os que cuidam do tecido que nos conecta quando pensamos, comunicamos, criamos, sonhamos:

1.º A diversidade linguística é um património da humanidade que deve ser valorizado e protegido.

2.º O respeito por todas as línguas e culturas é fundamental no processo de construção e manutenção do diálogo e da paz no mundo.

3.º Cada pessoa aprende a falar no seio de uma comunidade que lhe dá vida, língua, cultura e identidade.

4.º As diversas línguas e os diversos falares não são só instrumentos de comunicação; são também o meio em que os seres humanos crescem e as culturas se constroem.

5.º Qualquer comunidade linguística tem direito a que a sua língua seja utilizada oficialmente no seu território.

6.º O ensino escolar deve contribuir para prestigiar a língua falada pela comunidade linguística do território.

7.º O conhecimento generalizado de diversas línguas por parte dos cidadãos é um objectivo desejável, porque favorece a empatia e a abertura intelectual, ao mesmo tempo que contribui para um conhecimento profundo da língua própria.

8.º A tradução de textos – particularmente dos grandes textos das diversas culturas – representa um elemento muito importante no necessário processo de maior conhecimento e respeito entre os homens.

9.º Os meios de comunicação são amplificadores privilegiados quando se trata de tornar efectiva a diversidade linguística e de prestigiá-la com competência e rigor.

10.º O direito ao uso e protecção da língua própria deve ser reconhecido pelas Nações Unidas como um dos direitos humanos fundamentais.

Este Manifesto encontra-se traduzido em numerosas línguas e foi ratificado na Assembleia Geral anual do PEN Internacional, que ocorreu em Belgrado no mês de Setembro desse mesmo ano. Como vemos, não se trata apenas de uma defesa da integridade das línguas, na sua qualidade de organismos vivos, que não só palpitam mas fluem como rios. Note-se de passagem que a defesa do método directo de aprendizagem das línguas começou por ir a par da ideia de falar fluentemente uma língua. Num primeiro momento, tal método terá contribuído para libertar muitas pessoas do espartilho gramatical a que obrigava uma aprendizagem obsessivamente fixada em regras.

Se a valorização da comunicabilidade imediata é importante num primeiro momento, porém o caminho para uma aprendizagem aprofundada – sustentada – passa pela interiorização de regras. Isso pode ser feito de numerosas maneiras e sempre com o suporte da leitura em voz alta de autores consagrados, da poesia musicada (sim, sim, vivam essas lyrics que nos acompanham no dia-a-dia, graças às novas tecnologias: e experimente-se cantar ao volante sobre as palavras de um dos nossos autores de culto, também como meio seguro para evitar o cansaço). Ora tal interiorização torna-se numa verdadeira descoberta quando se cria esse tecido, essa ponte imediata, sobretudo num registo de musicalidade. Não o advogavam já os teóricos clássicos da linguagem, de Rousseau a Herder e Humboldt?

O mais profundo prazer com a língua materna, ou com outra língua que se aprende, ousaria afirmá-lo, pode sentir-se quando a sabemos integrada numa família de história e geografia específicas. E essa família é grande e antiga. Dou um exemplo da aprendizagem do alemão, língua cuja dificuldade (mas nenhuma língua é «fácil» como mascar pastilha elástica) é sentida por quem não aprendeu latim e não treinou a suspensão da respiração até chegar, nas orações subordinadas, ao fio condutor da frase e do pensamento: o verbo que exprime a acção. Aqui chegamos, quase sem nos apercebermos, ao domínio da filosofia da linguagem: toda a narrativa conseguida culmina num desfecho que terá entretanto mantido preso o ouvinte ou o leitor.

Foi precisamente Wilhelm von Humboldt (1767-1835) que se opôs ao positivismo nascente que tratava a língua como um produto reversível (ergon) e não como «um ser individual, com carácter e configuração definidos, dotado de uma força que age sobre o ânimo, e que não é destituído da faculdade de se reproduzir» (Introdução ao Agamemnon, 1816, trad. de José Miranda Justo) – ou seja, uma forma de energeia que se vai moldando nesse fluir da aprendizagem e da prática da descoberta que é sempre uma forma de tradução, de auto-recriação, mesmo dentro da mesma língua e sobretudo dentro da língua materna.

Hoje, dia mundial da língua materna, é uma data que podemos celebrar de forma serena, reflectindo, questionando. Quererá, poderá um professor privar os seus alunos de descobrir a familiaridade dessas percePções – e isso porque a terão perceBido nesse entrosamento encantatório de intuição, mnemónica, ritmo e reflexão? Quererá, poderá um tradutor – sobretudo numa edição bilingue de texto – decepar a raiz indo-europeia CT e colocar, numa linha paralela ao inglês a Ct, um mísero ato que nem sequer tem a graça explosiva que ficámos a conhecer do filme de Almodovar? Quem poderá censurar aqueles que porventura, munidos de uma caneta correctora (de preferência para escrever em acetatos), tentam reparar um mal que contudo é remediável, bastando que deputados e governantes tenham a humildade de reconhecer um erro que ficou à vista de todos o mais tardar desde o adiamento da entrada em vigor de um recorte ortográfico (sim, porque «acordo» é pura ficção)? E sabemos que os brasileiros, a fazerem um «acordo», fá-lo-ão uma vez mais à sua maneira, como em 1955?

Em Setembro de 2012, no Congresso do PEN Internacional na Coreia do Sul, os delegados dos 89 Centros presentes aprovaram por unanimidade a resolução redigida pelo Comité de Tradução e Direitos Linguísticos. Devo sublinhar que o Centro português não tomou parte na redacção da mesma – apenas apresentou o problema, sobre o qual os redactores se debruçaram, e traduziu o texto. Este pode ser lido através do link http://proximidade.penclubeportugues.org. Interessante foi, neste contexto, a incredulidade dos presentes – anglófonos, francófonos, hispanófonos e outros – e a veemência com que afirmaram que tal ocorrência seria impossível nos seus países.

Vamos acreditar que estamos num regime totalitário, como um discurso acordista fundamentalista, usando tortamente o programa Lince já em si uma máquina de produzir erros? Tratando a língua como um ergon, alega-se «factos consumados» quando na realidade se joga com receios atávicos, com «fatos com-seus-medos» por parte de pessoas que não gostam «daquilo» mas acham que têm de aplicar «aquilo» no quotidiano, sem saberem os seus direitos constitucionais? Não existirão razões de sobra, expostas por especialistas qualificados, que provam a barbaridade imposta pelo desacordo ortográfico? Não estará aberta a possibilidade de usar meios jurídicos para o travar, mas não seria preferível uma corajosa vontade política que o revogasse?