P. Gonçalo
Portocarrero de Almada
Num artigo publicado
recentemente num jornal de referência, diz-se que Deus não merece maiúscula,
porque mais não é do que um substantivo masculino. Salvo melhor opinião, Deus
é, na realidade, um nome próprio, como Moisés, Jesus ou Maomé. O correspondente
substantivo abstracto é «divindade» que, esse sim, se pode grafar com
minúscula. Mas não Deus, que é alguém e não alguma coisa, uma entidade real
subjectiva e não um objecto, nem muito menos uma mera ideia ou vaga suposição.
Não obstante a
despromoção divina, admite-se nesse mesmo texto o uso da maiúscula quando o
contexto o exija, ou seja, quando se citam crentes ou para eles se destina o
texto, mas não quando quem escreve é assumidamente ateu ou escreve para
não-crentes, em cujo caso deve prevalecer a minúscula. De adoptar este
relativismo, a grafia deverá corresponder ao grau de adesão à realidade
significada. Poder-se-ia assim enriquecer a sabedoria popular com mais um
provérbio: diz-me que maiúsculas escreves e dir-te-ei quem és!
Se a descrença do
jornalista justifica o uso da minúscula no santo nome de Deus, é óbvio que se o
dito não acreditar no Butão, nem no Burkina Faso, países que suponho que nunca
terá visto, como nunca viu Deus, também deverá escrever com minúsculas as
iniciais desses países, não menos abstractos para o seu entendimento do que a
sua muito abstracta noção de Deus.
Se pega a moda de
uma escrita personalizada à medida dos caprichos do freguês, os monárquicos
deverão escrever em minúsculas as iniciais dos nomes dos presidentes da
República; os ateus deverão fazer o mesmo com os nomes dos santos; etc., o que
permitirá a milagrosa multiplicação da nossa língua: português-republicano,
português-monárquico, português-cristão, português-pagão, português-comunista,
português-fascista, etc.
A favor desta
esquizofrenia ortográfica, invoca-se muito despropositadamente um poeta.
Esquece-se, contudo, que não colhe aplicar ao jornalismo as regras que são
próprias da escrita literária pois, caso contrário, as crónicas dos jornais
deveriam também rimar e cumprir os outros cânones da poética. O jornalista está
para o facto relatado como o fotógrafo para a realidade retratada: comparar-se
aquele com o literato é tão absurdo como permitir ao retratista as geniais
divagações de um Picasso.
Como convém a um
texto muito politicamente correcto, apela-se à laicidade para fundamentar um
pretenso direito a não acreditar em Deus. É evidente que qualquer cidadão tem
todo o direito de acreditar, ou não, em quem quiser, mas não de impor as suas
crenças ou descrenças.
Ou seja, mesmo não
concordando com quem subscreve tão peregrinas teses, não me é lícito
desrespeitar o seu nome, nomeadamente grafando-o com minúsculas, porque uma tal
atitude não releva uma legítima expressão de são pluralismo, mas um insulto à
dignidade da pessoa referida. O mesmo se diga, por maioria de razão, do nome de
Deus: o desrespeito ortográfico não é mais do que uma gratuita ofensa ao
próprio e a quantos n’Ele crêem. Essa opção gráfica não se funda na laicidade,
mas na intolerância de quem impõe aos outros as suas próprias opiniões
ideológicas, porque é incapaz de aceitar e respeitar a diferença. O dogmatismo
deste laicismo, que mais não é do que a expressão de uma ignorância – pois a
descrença é um não-conhecimento – não é apenas uma ofensa a Deus e à religião,
mas também à democracia e à liberdade.
Segundo o Dicionário
da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, um
jornalista é uma «pessoa que trabalha no domínio da informação […] e cuja
actividade consiste em redigir artigos, fazer entrevistas, moderar debates,
participar na elaboração dos jornais». Ao jornalista pede-se, portanto, que
informe com verdade e objectividade sobre a realidade social, política,
religiosa, etc., mas que não se disfarce de improvisado teólogo ou
pseudo-filósofo de miudezas, sob pena de ofender o Deus maiúsculo e de se converter
num jornalista minúsculo.