Henrique Raposo
Antony Flew
(1923-2010) não foi um ateu de garagem. Flew foi o Dawkins do século XX, o líder
do ateísmo que se julgava legitimado pela ciência. É por isso que a sua
conversão foi um acontecimento tão polémico. Deus existe é a explicação dessa
polémica descoberta. O grande motor da mudança? A teoria do Big Bang. Steiner
diz, algures em Gramáticas da Criação, que a teoria do Big Bang é a tradução
científica do livro do Génesis. Flew navegou por águas similares. Para este
filósofo britânico, a teoria do Big Bang fornece a prova científica para aquilo
que São Tomás de Aquino considerava inacessível ao conceito de prova: o começo
do universo. Enquanto pensou que o universo era apenas um espaço ilimitado mas
atemporal (sem um começo), Flew encarou o dito universo como um conjunto de
factos fechado e à mercê de uma ciência toda-poderosa. Mas tudo mudou com o Big
Bang. Se o universo teve um começo, então, a pergunta é inevitável: o que
produziu esse começo? Quem deu o primeiro pontapé na bola cósmica?
O que torna Flew num
caso subversivo para o ateísmo hegemónico não é a mera conversão à ideia de Deus.
A subversão está na forma, porque Flew chegou a Deus através da ciência, e não
através da fé. Flew atingiu Deus através da física e da cosmologia. O ex-papa
dos ateus pegou nos dados científicos, e Eureka: há um Deus subjacente à
racionalidade da natureza e do universo. Tudo bem? Tudo mal. Deus não é um
assunto científico. Deus não se prova ou desprova cientificamente. Deus é um
salto de fé abraâmico, kierkegaardiano. Se Dawkins está errado, Flew também não
está certo.
Sim, Dawkins tem
direito ao seu ateísmo, mas já não tem direito a pensar que esse ateísmo tem
certificado científico. A ciência não prova a não-existência de Deus. Deus é um
assunto não-científico por excelência, porque Deus não está ao alcance do
método científico. Mais: quando afirma que o seu ateísmo darwinista é a única
resposta aceitável, Dawkins deixa de lado qualquer ceticismo em relação à sua
própria teoria, acabando por esquecer que a ciência não anda à procura da
verdade redentora. Todo o conhecimento científico assenta nesta arquitectura
céptica: só podemos ter estabilidades teóricas, e nunca certezas teóricas;
todas as teorias têm de ser falsificáveis, logo, todas as teorias são apenas
possivelmente verdadeiras. Sem este mar de dúvidas, o espírito científico não
sobrevive. Preso na fúria de negar Deus em nome da ciência, Dawkins acaba por
desrespeitar a própria ciência.
Ora, se não prova a
não-existência de Deus desejada por Dawkins, a ciência também não prova a
existência de Deus. Flew diz que esta foi uma peregrinação da razão: «segui
a razão até onde ela me levou. E ela levou-me a aceitar a existência de um Ser
auto-existente, imutável, imaterial, omnipotente e omnisciente». Problema?
Apesar das diferenças a jusante, Flew partilha com Dawkins um erro a montante:
encara Deus como um desafio científico. Sucede que Deus e a fé não são assuntos
empíricos, não são temas para o bico da ciência. Deus não se esconde na relação gravitacional entre planetas, mas na
relação moral entre homens. Deus é um salto de fé ético, e não uma
descoberta com tubos de ensaio. Flew percebeu que o ateísmo não era a resposta,
mas teve medo de atravessar o deserto.
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