Pedro Vaz Patto
Alcance do projecto-lei em
discussão
Foi aprovado na
generalidade o projecto-lei n.º 278/XII, que permite a co-adopção em uniões
homossexuais, ou seja, a adopção por uma pessoa casada com outra do mesmo sexo
(ou a ela unida de facto) quando em relação a esta já esteja estabelecida a
filiação, natural ou adoptiva.
Deve,
desde já, salientar-se que a alteração legislativa proposta permitirá tornear
facilmente a actual proibição da adopção conjunta por pares do mesmo sexo,
deixando «entrar pela janela aquilo a que se fechou a porta»: basta que
uma das pessoas adopte singularmente, ou (os casos mais frequentes na prática)
que uma mulher recorra à procriação artificial num país que não a proíba, e
depois o seu cônjuge, companheira ou companheiro, solicite a co-adopção.
Dizem os apoiantes do projecto que se trata apenas de proteger situações já
existentes. Mas a função de uma qualquer lei não é reconhecer factos consumados
ou regular situações já existentes, ela vigora para o futuro e abre (ou não) as
portas a novas situações. Aqui, trata-se da possibilidade de alcançar, pela via
indicada, alguns dos resultados a que chegaria através da legalização da
adopção conjunta por pares homossexuais. É bom ter presente este facto para não
cair na ilusão de que o projecto aprovado difere substancialmente de outros que
foram rejeitados e que admitiam a adopção conjunta por pares do mesmo sexo.
Trata-se de uma opção estratégica de alcançar o mesmo resultado de forma gradual
e menos ostensiva.
Isso mesmo (que se trata de um passo a que logicamente se seguirá outro)
resulta com clareza da exposição de motivos do projecto-lei em discussão, onde
se afirma:
«Não se trata, portanto, para já, de revisitar temas como o do
alargamento do instituto da adopção a todas as pessoas, solução que, a
bem da verdade, tudo incluiria, mas de …» (sublinhado meu).
E nessa exposição de motivos também se faz referência explícita às duas
situações acima referidas (a adopção singular e o recurso à procriação
artificial), em relação às quais a co-adopção permitirá contornar a proibição
da adopção conjunta. Um objectivo que nem está muito escondido, pois.
Deve também sublinhar-se, na mesma linha, que o projecto-lei serve, sobretudo,
um propósito de afirmação ideológica de uma nova configuração da família (de
acordo com a chamada ideologia do género), mais do que o de
resolução pragmática de situações concretas de desprotecção jurídica.
A eventual desprotecção tem sido grandemente exagerada pelos proponentes e
partidários da alteração legislativa proposta. Ao contrário do que por vezes
quase se dá a entender, as crianças em questão, tendo já estabelecida a
filiação quanto a um dos progenitores, em nada ficam limitadas nos seus
direitos de acesso à saúde ou educação (a diferença que a este respeito pode
verificar-se com a co-adopção é apenas a de que as decisões tomadas nesses
âmbitos passam a ser partilhadas pelos dois progenitores). Tanto assim é que,
actualmente, na maior parte dos casos de segundo casamento de uma pessoa viúva
com filhos menores não se verifica a co-adopção pelo cônjuge.
Em caso de morte do progenitor, a criança não será certamente abandonada ou
entregue a uma instituição (como parecem dar a entender os proponentes e
partidários do projecto em discussão). O companheiro ou cônjuge do falecido
poderá adoptar singularmente, ou poderá ser-lhe confiada a criança a outro
título.
Não pode esquecer-se que há muitas formas de protecção da criança que não
passam pela adopção, a qual supõe a ruptura do vínculo com o progenitor natural
e a criação de um vínculo o mais possível semelhante ao da filiação natural.
Não pode esquecer-se que, de acordo com o artigo 1986º do Código Civil, a
co-adopção supõe a ruptura com o progenitor natural, eventualmente já falecido,
e com a sua família (os avós e tios, eventualmente ainda vivos), o que acentua
o absoluto cancelamento da figura do progenitor natural (pai ou mãe), situação
particularmente problemática quando o adoptante não for do mesmo sexo do falecido
(não podendo, pois, substitui-lo simbolicamente).
A possibilidade de co-adopção proposta não é, pois, necessária para resolver
questões concretas de desprotecção (há outras formas de o fazer) e, sobretudo,
cria outros problemas, como veremos de seguida.
Abre a porta a situações em tudo equiparáveis às de adopção conjunta nos casos
de adopção singular por parte de uma pessoa homossexual (não excluída pela
legislação vigente) seguida da co-adopção pelo cônjuge, companheiro ou
companheira, ou de recurso por uma mulher homossexual à procriação artificial
num país estrangeiro, seguida da co-adopção pela companheira.
Neste último caso, a fraude à lei (a obtenção de um efeito não querido pelo
legislador sem violação directa da lei, deixando que «entre pela janela
aquilo a que se fechou a porta») é dupla: obtém-se o que o legislador não
quis ao proibir a adopção conjunta por pares do mesmo sexo, e ao proibir a
procriação artificial fora do âmbito patológico da infertilidade. Porque assim
é, e porque é evidente que outro passo da estratégia global a que assistimos
também passa pela abolição desta proibição, justifica-se que adiante se faça
uma referência a esta outra proposta.
As objecções à adopção conjunta por pares homossexuais estendem-se, pois, ao
projecto-lei em discussão (relativo à co-adopção) e, por isso, serão, de
seguida, expostas tais objecções.
Por outro lado, mesmo para as situações de crianças filhas naturais de uma
pessoa que vive numa união homossexual, a co-adopção causa sérios danos à
construção da sua identidade psíquica, como veremos de seguida. Não é o mesmo,
por um lado, ser reconhecido como filho de uma pessoa (pai ou mãe) que pode
viver com outra do mesmo sexo e, por outro lado, ser reconhecido (com toda a
força social e simbólica da lei) como filho de dois pais (e nenhuma mãe), ou de
duas mães (e nenhum pai). Também analisaremos de seguida esta questão mais em
profundidade.
As finalidades e o espírito
do instituto da adopção
O superior interesse da criança
Afirma-se recorrentemente que a legalização da adopção por pares do mesmo sexo
é uma exigência do princípio da igualdade e não discriminação em função da
orientação sexual.
No entanto, a adopção não pode ser encarada como direito dos candidatos, mas
como direito da criança. Não são os candidatos à adopção que têm direito a
adoptar, são as crianças órfãs ou abandonadas que têm o direito a ser adoptadas.
Estas não podem ser objecto ou instrumento de direitos ou de reivindicações dos
candidatos à adopção. São sujeitos de direitos, não objecto de direitos de
outrem. O bem das crianças prevalece sempre sobre os interesses dos candidatos
à adopção, mesmo que daí decorra um tratamento diferenciado desses candidatos
(porque não é um direito destes que está em causa), seja em razão da saúde, das
capacidades económicas ou da orientação sexual.
É esse bem que justifica a inadmissibilidade da adopção por pares do mesmo
sexo, porque essa adopção priva as crianças da figura paterna ou materna,
quando ambas são imprescindíveis e insubstituíveis para o seu crescimento
harmonioso.
O princípio da igualdade supõe o tratamento igual do que é igual e o tratamento
diferente do que é diferente. E, na perspectiva do bem da criança, é diferente
que seja educada por um pai e uma mãe ou por dois pais ou duas mães.
Sempre presidiu ao regime da adopção a ideia de que esta visa criar entre
adoptantes e adoptado não quaisquer laços de afecto, mas aqueles que mais se
aproximam dos que são próprios da filiação natural (ver artigo 1974º, n.º 1,
b), do Código Civil). Por isso, exige-se um certo desnível etário entre
adoptantes e adoptado, por exemplo. Entre avós e netos haverá o mais intenso
dos afectos, mas não o relacionamento que é próprio da filiação (e, por isso,
não podem aqueles adoptar estes). Entre duas pessoas de idades próximas poderá
certamente haver relações de afecto, mas não o relacionamento próprio da
filiação (e, por isso, não poderá uma delas adoptar a outra). A adopção visa,
pois, criar entre adoptantes e adoptado laços que se aproximam o mais possível
da filiação natural (de acordo com um velho brocardo: adoptio imitat natura). Ora, a
filiação natural supõe sempre um pai e uma mãe.
Para além disso, qualquer criança adoptada enfrenta a problemática da aceitação
da adopção («de onde venho?»; «quem são os meus pais?»), uma
prova muito mais difícil de superar quando os adoptantes têm características
radicalmente diferentes das dos pais naturais e habituais.
Criar «novas formas de família», suscitar experimentalismos sociais é o
que há de mais contrário às finalidades da adopção. Esta pretende (na medida do
possível) que a criança adoptada em nada se distinga da que vive com os
progenitores naturais. É compreensível que muitos pais adoptantes procuram que
seja pouco divulgado (designadamente junto de outras crianças) que o seu filho
é adoptado: porque este não deve sentir-se diferente dos outros por isso. Ora,
isso nunca será possível em caso de adopção por pares do mesmo sexo.
A importância das figuras materna e paterna, a imprescindibilidade e insubstituibilidade
de uma e outra, sempre foi salientada pelos estudos de psicologia do
desenvolvimento infantil e só a polémica em torno da adopção por pares
homossexuais deu origem a afirmações contrárias a tal ideia. O que sempre se
afirmou em estudos de desenvolvimento da psicologia infantil (em «tempo não
suspeito», sem qualquer relação com a polémica em causa) não pode agora ser
ignorado. De resto, essas conclusões são confirmadas pela intuição e bom senso
de qualquer pessoa.
Sempre se reconheceram os danos que podem acarretar a ausência da mãe e a
ausência do pai no desenvolvimento de uma criança e um jovem. Sempre se
salientou a necessidade de filhos de pais separados não perderem a ligação com
o pai, porque a mãe, por muito competente que seja, nunca substitui o pai (e,
por isso, se vem generalizando o regime de guarda conjunta).
Afirma, por exemplo, Trayce Hansen, psicóloga com prática cínica e forense na
Califórnia:[1]
«O amor materno e o amor paterno, ainda que igualmente importantes, são
qualitativamente distintos e dão lugar a relações paterno-filiais diferentes.
Especificamente, a combinação do amor de mãe, que mostra uma devoção
incondicional, e o amor de pai, que põe condições, resulta essencial para o
crescimento de um filho. Qualquer destas formas de amor pode ser problemática
sem a outra. Porque aquilo de que um filho necessita é de um equilíbrio
complementar que proporcionam ambos os tipos de amor e relação».
Só os pais heterossexuais oferecem aos filhos a oportunidade de estabelecer
relações com o progenitor do mesmo sexo e o de sexo contrário. As relações com
ambos os sexos, na etapa inicial da vida fazem com que se torne mais fácil para
um filho relacionar-se com ambos os sexos mais tarde. Para uma menina, isso
significa que entenderá melhor e interagirá de forma mais adequada com o mundo
masculino, e que se sentirá mais confortável no mundo das mulheres. E para o
rapaz, a inversa será verdadeira. Ter uma relação com «o outro» (o progenitor
do outro sexo) também incrementa a probabilidade de que um filho seja mais
empático e menos narcisista. (…)
Um progenitor do sexo oposto ajuda o seu filho ou filha, conforme os casos, a
controlar as sua próprias inclinações naturais, ensinando-lhe, com a palavra e
de forma não verbal, o valor das tendências contrárias. Este ensino não só
facilita a moderação, como amplia também o mundo de cada filho, ajudando-o a
ver mais além do seu próprio e limitado ponto de vista.»
O crescimento da criança faz-se por etapas e essas etapas exigem umas mais da
mãe e outras mais do pai.
A relação da criança com a mãe é essencial nos primeiros anos de vida (quem o
poderá negar, e com base em que estudos?). A mãe tem uma maior sintonia com as
delicadas necessidades dos seus filhos e entende melhor as suas emoções, sendo,
por isso, mais adequada a sua capacidade de resposta a tais necessidades e
emoções. A ausência da mãe nessa fase é traumática e pode gerar comportamentos
anti-sociais no futuro.
Mas, da mesma forma que a relação com a mãe é essencial nos primeiros anos de vida,
é essencial mais tarde a relação com o pai, para que a criança se «desapegue»
da mãe e assim cresça como pessoa autónoma. Não bastam os afectos para
crescer, para tal são necessárias regras e autoridade (correctamente entendida,
esta significa isso mesmo: ajudar a crescer). O papel da figura paterna acentua
este aspecto. Em relação aos rapazes, o papel do pai ajuda-os a controlar os
impulsos agressivos e sexuais (o que a mãe não pode fazer, porque não os
experimenta da mesma forma). Não é por acaso que a ausência do pai está na origem
de muitos dos problemas de delinquência juvenil, por exemplo.
A importância dos papéis materno e paterno não decorre de uma rígida,
tradicional e ultrapassada divisão de tarefas entre homem e mulher. A dualidade
das dimensões masculina e feminina da realidade humana vai muito para além
dessa divisão tradicional, não se confunde com ela, mas existe e representa uma
riqueza.
Dois pais ou duas mães não é, pois, o mesmo que um pai e uma mãe. Se assim,
fosse, se fosse suficiente o afecto, porque deveriam ser dois (e não um), ou só
dois, os progenitores? São dois porque um é diferente em relação ao outro, não
é uma fotocópia do outro, completa e enriquece, com a sua especificidade, a
pessoa e a tarefa do outro. Um dá uma riqueza que o outro não tem.
Afirma, nesta linha, o filósofo francês Xavier Lacroix[2] que
«todos crescemos num duplo jogo de
identificação e diferenciação, todos recebemos o amor segundo estas duas cores
e estas duas vozes, masculina e feminina», pois nenhuma delas esgota a riqueza
do humano. Assumir legalmente a filiação por duas pessoas do mesmo sexo é, de
acordo com a filósofa francesa Sylviane Agacinsky[3] «negar violentamente a incompletude e
finitude de cada um do sexos em relação ao outro, é simbolizar, aos olhos dos
visados e de toda a sociedade, a negação da limitação de cada um dos sexos» e,
consequentemente, a negação da riqueza da dualidade sexual.
Diz-se que interessa apenas a competência parental, e não o sexo
dos progenitores, e que as pessoas homossexuais não são, nesse aspecto,
inferiores às pessoas heterossexuais. Mas a mais competente das mães nunca
poderá substituir um pai, tal como o mais competente dos pais nunca poderá
substituir a mãe.
Nenhum de nós tem como referência dois progenitores indiferenciados (o progenitor
A e o progenitor B, como passou a constar de documentos
oficiais em países que legalizaram a adopção por pares do mesmo sexo), mas a
sua mãe (que é única, não uma de entre uma série de mães A e B)
e o seu pai (que é único, não um de entre uma série de pais A e B).
E quem foi privado de alguma dessas referências não deixa de lamentar
profundamente esse facto.
Também há quem alegue que a criança educada por dois pais ou duas mães não
deixa de manter relacionamentos com pessoas de sexo diferente do dos
progenitores (avós, tios, professores, etc.). Mas o relacionamento
com o pai e a mãe é único e insubstituível (sabe-o bem quem passa pela trágica
experiência da perda de um deles). Traduz-se numa presença constante e marcante
no plano da construção da identidade. De modo algum a ausência da mãe
(designadamente na fase inicial da vida) pode ser suprida pelo relacionamento
com outras mulheres. De modo algum a ausência do pai (designadamente em caso de
separação dos progenitores, ou na fase da adolescência) pode ser suprida pelo
relacionamento com outros homens. Se assim fosse, poucos danos teria a
institucionalização de crianças (danos tantas vezes invocados pelos partidários
da adopção por pares do mesmo sexo), quando esta a priva do relacionamento com
um pai e uma mãe únicos e irrepetíveis, sem a privar necessariamente do
relacionamento com pessoas de ambos os sexos.
Também se alega com frequência que há crianças educadas (e bem educadas) por um
só progenitor. É verdade que muitas crianças são educadas por um só progenitor.
Mas essa não é a situação ideal, como, mais do que quaisquer outras pessoas,
sabem os progenitores que involuntariamente se veem nessa situação. De qualquer
modo, também serão diferentes a situação de uma criança educada só por uma mãe
e a situação de uma criança educada por duas mães, com o que isto significa de
quebra da relação única e irrepetível com a mãe («mãe só há uma»).
Isso mesmo pode responder-se à alegação de que se a lei vigente não obsta à
adopção singular por uma pessoa homossexual, não se vê por que deverá obstar à
adopção conjunta por pares homossexuais (ou à co-adopção). Na perspectiva do
bem da criança, pode sempre dizer-se que a adopção conjunta (por um pai e uma
mãe) é preferível à adopção singular (independentemente da orientação sexual do
adoptante). E, por outro lado, é diferente ser reconhecido como filho de um pai
ou de uma mãe (independentemente da orientação sexual destes) e ser reconhecido
como filho de dois pais ou duas mães. Esta é uma questão que não se coloca na
adopção singular, mas se coloca na adopção conjunta e na co-adopção (como
veremos melhor de seguida).
Uma última questão deve ser salientada.
Independentemente do dado objectivo da necessidade de um pai e uma mãe para o
crescimento harmonioso da criança adoptada, se esta for adoptada por pares do mesmo sexo poderá ser encarada com
estranheza pelas outras crianças e pela sociedade em geral, poderá ser
marginalizada ou estigmatizada. As pessoas que assumem publicamente a sua homossexualidade
assumem as consequências negativas (eventualmente injustas) que daí possam
advir no plano da sua imagem social. Estão no seu direito de o fazer. Mas não
têm o direito de forçar crianças a sofrer consequências desse tipo. As crianças
não podem ser transformadas em bandeiras de reivindicações das pessoas
homossexuais. Seria uma forma de as instrumentalizar, e o instituto da adopção
não pode servir para isso.
Pessoas que justamente denunciam a homofobia (no sentido do
desrespeito, discriminação e marginalização das pessoas homossexuais) ainda
presente na nossa sociedade parecem esquecer-se desse fenómeno quando
reivindicam o pretenso direito de adopção por pares homossexuais. E muitas
vezes até invocam a naturalidade com que são encaradas nas escolas e outros
ambientes crianças educadas em uniões homossexuais, que a todos se apresentam
como tendo dois pais ou duas mães. Mas isso significaria que a homofobia já
tinha desaparecido da nossa sociedade, o que essas mesmas pessoas recusam
categoricamente para outros efeitos.
Este dano para a criança também é agravado com a co-adopção. Apresentar-se como
filho de uma pessoa que vive com outra do mesmo sexo (num relacionamento cuja
natureza homossexual até poderá ser deixada ao âmbito da privacidade) é uma
coisa, apresentar-se (com a dimensão pública do registo civil) como filho de
dois pais ou duas mães é, no plano do eventual estigma social (que agora
analisamos, mas também de outros, que adiante analisaremos), outra.
Também se diz, a este respeito, que é a criança que, nestes casos, já considera
ter duas mães, ou dois pais, limitando-se o registo a consagrar isso mesmo, uma
realidade já existente. No entanto, e como é óbvio, nunca é a criança que
espontaneamente passa a considerar como mãe a companheira da mãe biológica (ou
adoptiva), ou como pai o companheiro do pai biológico (ou adoptivo). Ela fá-lo,
obviamente, porque assim foi ensinada. Ninguém lhe perguntou a opinião e
ninguém lhe deu alternativa.
Aliás, o particular cuidado com o bem da criança que exige qualquer decisão
(legislativa ou judicial) em matéria de adopção, a sempre aconselhável
precaução, e o objectivo de proporcionar à criança uma família igual às outras
(fora de qualquer experimentalismo social), tudo isso tem especial justificação
precisamente porque se trata de uma decisão de adultos em regra (salvo o caso
de crianças maiores de catorze anos, de acordo como disposto no artigo 1981º,
n.º 1, a), do Código Civil) sem o consentimento da criança visada.
Em suma, e regressando à questão inicial da exigência da igualdade, não pode em
nome da igualdade dos adultos candidatos à adopção (igualdade em função da
orientação sexual) originar-se uma desigualdade das crianças adoptadas (em
função das quais é concebido o instituto da adopção): desigualdade entre, por
um lado, as crianças que são educadas por um pai e uma mãe, e, por outro lado,
as crianças que, deliberada e intencionalmente, são privadas de uma dessas
insubstituíveis figuras.
Os danos da co-adopção
em uniões homossexuais
na perspectiva do bem da
criança
Já acima se salientou que o projecto-lei em discussão permitirá contornar,
também numa perspectiva de futuro, a proibição da adopção conjunta por pares
homossexuais. Não se trata, pois, e apenas, ao contrário do que vem sendo salientado
por proponentes e partidários desse projecto, de dar protecção jurídica a
situações já existentes (até porque, como já vimos, essa protecção nem sempre é
necessária, ou pode ser obtida de outra forma).
Mas mesmo para situações já existentes de crianças filhas naturais de uma pessoa que vive numa
união homossexual, a co-adopção causa sérios danos à construção da sua
identidade psíquica. Não é o mesmo ser reconhecido como filho de uma pessoa
(pai ou mãe) que pode viver com outra do mesmo sexo e ser reconhecido (com toda
a força social e simbólica da lei e do registo civil) como filho de dois pais
(e nenhuma mãe), ou de duas mães (e nenhum pai).
Para a construção dessa identidade, a criança necessita sempre de um pai e de
uma mãe, mesmo que algum destes exista apenas na sua memória ou na sua
imaginação, exista apenas no plano da sua representação mental. Mas a
eliminação legal de uma dessas duas figuras, com o reconhecimento de dois pais
ou duas mães, vem obstaculizar, artificial e violentamente, a possibilidade
dessa representação mental.
O pedopsiquiatra e psicanalista françês Christian Flavigny (ouvido pela
Assembleia Nacional francesa a propósito da legalização do casamento e adopção
homossexuais) salienta (em Je veux papa et maman – «père-et-mère»
congédiés par la loi, Salvator, 2013) como a identidade da criança se
constrói a partir da noção de que foi gerada pela união entre o pai e a mãe.
Isso é possível quando ela é adoptada por um homem e uma mulher, que sempre
poderiam ser seus pais biológicos, mas nunca quando é adoptada por duas pessoas
do mesmo sexo, ou co-adoptada por uma pessoa do mesmo sexo do progenitor, que
nunca poderiam ser seus pais biológicos, como ela sabe. Neste caso, a adopção
serve de ficção legal falsificadora e geradora de uma confusão prejudicial à
construção dessa identidade. Convenhamos que será difícil explicar a essa
criança (numa nova versão da «história da cegonha») como é que na sua origem
pode estar uma relação entre pessoas do mesmo sexo…
Vejamos mais em profundidade o que afirma Christian Flavigny
na obra referida:
A questão da sua origem inquieta a criança desde muito cedo, não como questão
técnica, mas como questão existencial. «Porque é que eu estou aqui? Será que
eu sou uma boa resposta àqueles que me trouxeram ao mundo? Ele orienta a sua
busca para a diferença de sexos dos seus progenitores, em relação à qual ele
sabe ser a chave. É a chave afectiva que lhe interessa; como é que a diferença
dos sexos suscitou a atracção entre eles? Esta atracção explica a sua vinda ao
mundo; a questão agita o seu despertar afectivo (…) (pg. 48)
Quando a criança vive num ambiente homossexual o sentimento dos adultos e a
vida afectiva da criança separam-se; separam-se porque a vida afectiva
homossexual é alheia à geração. A criança sabe bem que a geração entre pessoas
do mesmo sexo é inconcebível (ao contrário da geração entre pais adoptivos de
sexo diferente). «É, então, pedido ao progenitor um esforço de clarificação
afectiva no interesse do seu filho; se o seu companheiro, ou companheira, de
vida homossexual não embarcam no estatuto de segundo progenitor, mesmo que
desempenhem o mais precioso dos papéis educativos, então a criança pode
orientar-se na sua situação e não a considerar consequência de um erro por si
cometido, ou um defeito que o tenha atingido. Aí reside o essencial para a sua
vida psíquica; se assim não for, se o progenitor mistura a ligação ao filho com
a sua vida afectiva homossexual, essa orientação complica-se, a situação da
criança baralha-se. E deve acrescentar-se o seguinte: o carácter desastroso
para a criança decorrerá sobretudo da pretensão das leis de descarregar sobre
ela esta baralhação, esta confusão deliberada da vida afectiva dos adultos que
não está na origem da geração e da ligação filial da criança; assim se opera
uma acção funesta para com ela» (pg. 65)
«Toda a criança focaliza a vinda ao mundo das crianças na união pai-mãe,
toda a criança sabe que a união homem-mulher conduz à vinda ao mundo das
crianças, que a geração é menos uma noção biológica do que psicológica e
afectiva. Reclamar a integração do companheiro ou companheira de vida
homossexual enquanto segundo progenitor, é, portanto, forçar pela via jurídica
o que não deriva da vida afectiva.» (pg. 87)
«Se as leis tentam fazer avalizar o inconcebível, elas frustram a reflexão
da criança através de uma legalização artificial: isso é uma placagem
filiativa. Legalizar o segundo progenitor em união homossexual, é um truque
legislativo para satisfazer os adultos; a criança em questão terá, por causa
disso, a sua vida psíquica complicada. É impor-lhe que acredite no
inconcebível; a legalização de uma falsidade que há-de ser uma armadilha para
essa criança.» (pg. 90)
«A questão não é que uma pessoa homossexual eduque uma ou mais crianças, é
impedir qualquer confusão para a criança envolvida; que um companheiro ou uma
companheira homossexual sejam considerados como um segundo progenitor,
reclamação das associações, falsificaria o vínculo de filiação. É fundamental
para a criança envolvida numa vida relacional dos adultos sem a união pai-mãe,
que permaneçam distintos a sua vida afectiva (homossexual, ou ausente, etc.) e
o vínculo filial com a sua mãe; mais raramente é o seu pai, mas a questão é a
mesma. Infringir isso através de novas leis introduziria uma modificação da
natureza da adopção; ela é concebida como uma forma de geração credível, que
permite à criança estabelecer a sua razão de ser a partir da sua família
adoptiva. Abri-la àqueles e àquelas cuja união coloca num beco sem saída a
geração é alterar esse seu princípio básico.» (pg. 96).
Assim, e em conclusão, independentemente de o projecto-lei em discussão abrir
as portas a resultados equiparáveis aos que resultariam da eliminação da
proibição da adopção conjunta, mesmo para as situações já existentes de
crianças com filiação estabelecida em relação a um dos progenitores que vive
numa união homossexual, a co-adopção, longe de beneficiar essas crianças, para
elas acarreta graves danos. Danos que afectam o núcleo essencial do seu direito
à identidade pessoal (artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República).
Consenso científico?
Já acima se salientou que a importância de uma mãe e de um pai sempre foi
afirmada pelos estudos de psicologia do desenvolvimento infantil e só a
polémica em torno da adopção por pares homossexuais deu origem a afirmações
contrárias a tal ideia.
Mas não pode ignorar-se a recorrente alusão a estudos
que alegadamente comprovam que as crianças educadas por pares homossexuais não
revelam diferenças ou danos psicológicos particulares em relação a outras
crianças. A American Psychological Association assumiu tal posição com base numa compilação desses
estudos efectuada em 2005. Há quem fale, por isso, em «consenso científico» a
respeito desta questão.
Pode, porém, e antes de mais, ser contestada a metodologia usada em muitos
desses estudos, tal como a conclusão que deles se retira.
As razões dessa contestação têm a ver com a pouca representatividade dos
números; o facto de os estudos em causa incidirem, sobretudo, em crianças com
laços de filiação biológica a um dos membros do «casal» (o que não deixa de
ser, nalguns aspectos, diferente de uma adopção conjunta); o facto de se
basearem na comparação entre crianças educadas por pares de lésbicas, por um
lado, e crianças a cargo de mães celibatárias heterossexuais, mas sempre na
ausência do pai, por outro lado; o facto de se fazer a comparação entre, por um
lado, um grupo de pessoas homossexuais de nível social e cultural
predominantemente superior ao da população em geral e, por outro lado, um grupo
de pessoas heterossexuais representativo da população em geral; o facto de as
consequências a mais largo prazo ainda não terem sido estudadas; o facto de os
casos serem seleccionados entre militantes dos direitos dos homossexuais, e não
de forma aleatória, e de os dados recolhidos assentarem, em grande medida, nas
declarações destes;[4] e o facto de os entrevistados homossexuais
conhecerem a agenda política subjacente ao estudo.[5]
Vários desses estudos, baseados nas declarações dos «progenitores»
homossexuais, concluem, até, pela vantagem para as crianças, do comportamento
homossexual por eles assumido, o que naturalmente suscita suspeitas a respeito
da objectividade e imparcialidade desses estudos.
Um estudo que não enferma desses vícios (pela sua extensão, por não conter
distorções de níveis sociais e culturais dos entrevistados, por se basear em
declarações de jovens adultos educados por pares homossexuais, por comparar
estas situações com as de famílias heterossexuais compostas por um pai e uma
mãe não separados), dirigido pelo professor da Universidade do Texas Mark
Regnerous,[6] demonstra
o contrário. Em quinze de entre quarenta parâmetros de bem-estar emotivo e
relacional, os filhos educados por casais heterossexuais compostos por um pai e
uma mãe não separados apresentam vantagens em relação a crianças educadas por
pares homossexuais.
Que não se verifica alguma espécie de «consenso científico» resulta bem
evidente, por exemplo, da discussão desta questão ocorrida recentemente em
França. Na Assembleia Nacional foram ouvidos psiquiatras, psicólogos e
psicanalistas com opiniões radicalmente diferentes.[7] Vários especialistas nas áreas da
pediatria, da psicologia e da pedopsiquiatria subscreveram o manifesto Ne
touchez pas papa et maman, publicado no Le Monde, de
oposição à adopção por pares homossexuais.[8]
Numa situação em que se dividem os peritos, deve reger o princípio da
precaução («mais vale prevenir do que remediar»; há que «jogar
pelo seguro»): porque há-de prevalecer sempre o bem das crianças candidatas
à adopção e porque estas (que muitas vezes já sofreram suficientes traumas e
privações) não podem ser «cobaias» e objectos de experiências de resultados
incertos e arriscados.
Não pode esquecer-se que temos em confronto, de um lado, uma experiência de
milénios no âmbito das culturas mais variadas (uma experiência que demonstra
que o pai e a mãe biológicos são, em regra, quem de forma mais adequada educa
os filhos) e, do outro lado, uma experiência limitada no número de pessoas
envolvidas, no espaço e no tempo.
Uma última observação se impõe.
Quando se invoca o pretenso «consenso científico», parece que se quer, em nome
de um cientismo dogmático, encerrar o debate, como se a Americam
Psychologial Association impedisse as sociedades e os parlamentos de
todo o mundo, de divergir da sua opinião. Ora, não podem ser canceladas as
dimensões antropológica, ética, política e jurídica da questão. Afirma, a este
respeito, Xavier Lacroix (in La confusion…, cit, pg. 117 e
118): «Os desafios da paternidade, como os da maternidade, tal como a noção
de saúde e de bem-estar, não relevam apenas do âmbito da verificação; relevam
da ética, isto é, da preocupação pelo crescimento do humano. É, de qualquer
modo, paradoxal, aplicar métodos médicos a questões fundamentais. Refugiar-se
por detrás da aparente objectividade do quantitativo é evitar colocar as
questões do sentido e do valor. Há aí uma opção deliberada segundo a qual
qualquer avaliação moral, qualquer julgamento normativo, surgem como literalmente
insuportáveis».
A adopção e a institucionalização das crianças
É também recorrente a alegação de que a adopção por pares homossexuais será
preferível à institucionalização de crianças, desta forma privadas do precioso
afecto de uma família.
É enganoso apresentar a adopção por pares homossexuais como uma solução para a
institucionalização de crianças, como se fosse essa possibilidade a solução
para «esvaziar» as instituições que recolhem crianças abandonadas ou
maltratadas. Não há falta de casais heterossexuais candidatos à adopção e os
pares homossexuais candidatos à adopção são em número muito pouco significativo
(bastante inferior ao do próprio universo dos pares homossexuais).
O problema da institucionalização de crianças poderia ser debelado, não com a
abertura à adopção por pares homossexuais, mas com o esforço de superar a
selectividade revelada pelas intenções de muitos dos candidatos a adoptantes,
que pretendem apenas a adopção de crianças recém-nascidas, saudáveis e da mesma
raça que eles. Esse esforço passa por uma maior generosidade dos candidatos,
mas também por mais apoios a estes. Nada tem a ver com a adopção por pares
homossexuais.
A necessidade de evitar a institucionalização de crianças não pode levar a
prescindir da exigência dos requisitos da adopção, como se a adopção em
quaisquer condições fosse sempre preferível à institucionalização de crianças.
A adopção não pode ser apenas um mal menor para a criança, tem
de ser um bem para ela. As crianças mais problemáticas, que mais
privações sofreram e sofrem, carecem, ainda mais do que as outras, de um
crescimento harmonioso e equilibrado, para o que são importantes um pai e uma
mãe.
De qualquer modo, a reivindicação da possibilidade de adopção por pares
homossexuais nunca é apresentada como um último recurso para evitar a
institucionalização de crianças, a considerar apenas quando a adopção por
casais heterossexuais não fosse possível. É sempre apresentada como um direito
das pessoas em uniões homossexuais em pé de igualdade com os casais
heterossexuais. Assim, de acordo com essa reivindicação, nunca seria possível,
na adopção de uma criança, com o fundamento de que tal seria por si só melhor
para ela, dar preferência a um casal formado por um pai e uma mãe em relação a
uma união formada por dois pais ou duas mães.
Jurisprudência do Tribunal Europeu
dos Direitos do Homem
Tem sido recentemente invocado, com insistência, em apoio da possibilidade de
co-adopção em uniões homossexuais, o acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do
Homem proferido no caso X e outros contra a Áustria (1901/07)[9], onde se
considerou contrário à Convenção Europeia dos Direitos do Homem o regime
austríaco que, em matéria de co-adopção, distingue as situações de uniões de
sexo diferente e uniões do mesmo sexo, e em cuja fundamentação se faz uma
referência expressa a Portugal como um dos países onde vigora o mesmo tipo de
discriminação alegadamente contrária a tal Convenção.
Deve, porém considerar-se o seguinte.
O acórdão em questão produz efeitos apenas no caso concreto nele apreciado e
não corresponde a uma jurisprudência uniforme. Contém sete votos de vencido
(contra nove favoráveis), sendo particular motivo de divergência o facto de a
co-adopção aí em causa, pela companheira da mãe biológica, fazer cessar os
vínculos com o pai biológico, que está vivo e nunca deixou de cumprir os seus
deveres de alimentos para com o filho (situação que não encontraria cobertura
no regime proposto pelo projecto-lei em apreço, que exclui a co-adopção quando
estão vivos ambos os progenitores naturais).
O acórdão não corresponde a uma jurisprudência uniforme porque podem ser
invocados outros em sentido contrário. Assim, o acórdão, também recente (de 15
de Março de 2012) proferido no caso Gas Dubois contra a França (25951/07).[10] Neste, o Tribunal não considerou contrário à Convenção
Europeia dos Direitos do Homem o regime, então vigente em França, que negou a
possibilidade de co-adopção à companheira de uma mulher que havia recorrido à
procriação artificial na Bélgica (sendo que tal recurso não era admitido pela
lei francesa). Uma situação semelhante a outras, já acima referidas, não
permitidas pela lei portuguesa vigente e a que o projecto-lei em apreço abre as
portas, como vimos.
Em suma, também não foi o acórdão proferido no caso X e outros contra
Áustria que encerrou este debate.
O regime da procriação artificial,
o próximo passo?
Com acima se salientou, o projecto-lei em apreço abre a porta à possibilidade
de recurso por uma mulher homossexual à procriação artificial num país
estrangeiro onde tal seja legal, seguido da co-adopção pela companheira. Neste
caso, a fraude à lei (a obtenção de um efeito não querido pelo legislador sem
violação directa da lei, deixando que «entre pela janela aquilo a que se
fechou a porta») é dupla: obtém-se o que o legislador não quis ao proibir a
adopção conjunta por pares do mesmo sexo, e ao proibir a procriação artificial
fora do âmbito patológico da infertilidade. Porque assim é, e porque é evidente
que outro passo da estratégia global a que assistimos também passa pela
abolição desta proibição, justifica-se que se faça uma referência a esta
proposta.
Já foram apresentados entre nós projectos-lei de alteração da regulação da
procriação medicamente assistida, no sentido de garantir o acesso a essa
técnica a mulheres sós ou numa relação homossexual, independente do diagnóstico
de infertilidade. Essa proposta chegou a ser saudada por representar uma quebra
da «desigualdade ancestral que reduz as mulheres a apêndices dos homens»,[11] isto é, a que exige necessariamente o contributo
destes para a procriação.
O alcance antropológico e ético da alteração proposta merece atenção e
aprofundamento.
Na verdade, não se verifica uma desigualdade a este respeito. A natureza
colocou, neste aspecto, homens e mulheres em estrito pé de igualdade: as
mulheres não procriam sem os homens, mas os homens também não procriam sem as
mulheres. Ninguém é mãe sozinha e ninguém é pai sozinho. Não se trata de um
desígnio a corrigir ou anular, como se não tivesse sentido. Cada um dos sexos
não pode deixar de reconhecer, assim, a importância do outro. Assim se exprime
a estrutural relacionalidade da pessoa humana, que se realiza na comunhão com o
outro. Essa comunhão está na origem da vida a partir da unidade da diversidade
mais elementar: a que distingue homens e mulheres. Da riqueza da dualidade
sexual nasce a vida. Associar a geração da vida à comunhão e ao amor (a vida é
fruto do amor e o do amor nasce a vida), e à riqueza da dualidade sexual, não é
um «engano» da natureza, mas um desígnio maravilhoso a aceitar e acolher.
A alteração proposta pretende consagrar uma visão radicalmente diferente: a
procriação como instrumento de realização de um projecto individual, e não
relacional. O filho tende, assim, muito mais, a ser encarado como espelho do
único progenitor, e já não como dom a acolher na sua alteridade e unicidade.
Passa a ser visto como objecto de um direito que se reivindica. É o «direito
à parentalidade» que está em jogo – afirma-se em defesa da proposta em
questão.
A procriação medicamente assistida tem sido encarada, à luz da lei vigente (que
não deixa de ser também merecedora de críticas, por outras razões) como forma
de suprir a infertilidade, não como simples alternativa à procriação natural
(ver artigo 4.º da Lei n.º 32/2006, de 26 de Julho). Não é (como, num plano
semelhante, não o é a adopção) um instrumento de «experimentalismo social» ou
de «engenharia social» ao
serviço de «novas formas de família». A criança gerada através de
procriação medicamente assistida, como a criança adoptada, tem o direito a uma
família como as outras, a uma família tanto quanto possível próxima da que tem
origem na procriação natural.
Não se trata de impor um modelo de família ou uma forma de encarar a
maternidade. Trata-se de dar primazia ao bem do filho, que não pode ser coisificado como
objecto de um direito. Não há um direito ao filho; o filho é
um dom. O bem do filho
exige que ele seja fruto de uma relação, e não de um projecto individual. E
exige que ele não seja intencionalmente privado de uma mãe ou de um pai. É ele
que tem direito, não tanto a um progenitor indiferenciado (como pretende
a ideologia do género, ao pretender que se fale em «parentalidade»),
mas a uma mãe e a um pai, por todas as razões acima indicadas.
O que se propõe é que da procriação artificial nasçam crianças sem pai (sempre
haverá um pai genético, necessariamente anónimo, mas apenas isso), já não por
acidente inevitável, mas de forma intencional e programada.
O projecto-lei em apreço, não sendo relativo ao regime da procriação
artificial, vem, por via indireta e como vimos, facilitar e incentivar o
recurso, (ainda) proibido à face da legislação portuguesa, a tais técnicas fora
do âmbito do objectivo de suprimento de situações patológicas de infertilidade.
Tais técnicas deixam de ser (contra o que pretende a lei vigente – ver o
referido artigo 4.º da Lei n.º 32/2006) um método subsidiário de procriação e
passam a ser um método alternativo de procriação.
Numa fase seguinte, pretender-se-á que homens homossexuais possam recorrer à
maternidade de substituição para que nasçam crianças sem mãe (ou com uma mãe a
quem é, de forma violenta e desumana, negada a maternidade por imposição
contratual e legal). Ainda não foram apresentados em Portugal projectos nesse
sentido (foram apenas no sentido de por essa via ser suprida uma situação
patológica de infertilidade), mas tal passo já foi dado noutros países.
Todos estes passos vão no sentido da instrumentalização do filho como objecto
de um pretenso «direito à parentalidade». O que contraria o princípio da
dignidade da pessoa humana em que assenta a República portuguesa (artigo 1.º da
Constituição).
[1] In
www. mercatornet.com, 2/6/2009.
[2] In Nouvelle Cité,
n.º 560, Março-Abril 2013, pg. 25.
[3] In L´Osservatore Romano, 4-5/2/2013.
[4] Afirma a propósito Xavier Lacroix (in
La confusion des genres – Réponses à certaines demandes homosexuelles sur le
mariage et l´adoption; Bayard, Paris, 2005, pg 111),
citando Caroline Eliacheff in «Malaise dans la
psychanalyse», Esprit n.º 273, Março-Abril 2001, pg. 74, que
quando se sabe que um médico não pode emitir um certificado de aptidão para a
prática desportiva sem ter examinado a criança, «é de espantar a liberdade
que tomam os investigadores norte-americanos de dizer o que quer que seja sobre
crianças que nunca viram».
[5] Ver,
a respeito destas falhas metodológicas, Loren Marks, «Same sex parenting and
children´s outcomes: a closer examination of the Americam Psychological
Association´s brief on lesbian and gay parenting», in Social Science
Research, vol. 41, 4, Julho de 2012, pgs. 735-751 (especificamente sobre os
estudos invocados pela American Psychological Association); Richard
Fitzgibbons, «Same sex adoption is not a game», in www.mercatornet.com,
18/11/2011; e Xavier Lacroix, La confusion…, cit., pgs 109 a 118.
[6] «How
different are the adult children of parents who have same-sex
relationships. Findings from the
New Family Structures» in Study Social Science Research vol
41, 4, Julho 2012, pgs, 752-770, acessível em http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0049
089 X12000610).
[7] Ver www.la-croix.com,
16/11/2012.
[8] Ver www.avvenire.it., 26/4/2013.
[9] Acessível em in http://hudoc.echr.coe.int.
[10] Também acessível em in http://hudoc.echr.coe.int.
[11] São
José Almeida in Público de 24/12/2011.