Austin Ruse
Sam Casey estava sentado à cabeceira da maior mesa de reuniões em
Washington, a observar, de boca aberta, o esvaziar de metade da sala e o
ferimento grave da liberdade religiosa. Passou-se de repente num dia de Julho
em 1999, mas na verdade o esventramento da mais poderosa coligação
transpartidária do País estava a ser preparado há semanas.
A história legislativa da liberdade religiosa na América pode ser
descrita de muitas formas, mas uma delas é como um jogo de ping-pong.
A Constituição proíbe o Governo Federal de estabelecer uma religião
oficial, mas também impede o Governo de colocar obstáculos ao livre exercício
da religião. Precisamente o que significa o livre exercício, quem pode ser
impedido e como, é um dos assuntos mais melindrosos.
Os casos judiciais modernos começaram nos anos 60 quando uma
trabalhadora têxtil chamada Adell Sherbert se converteu aos Adventistas do
Sétimo Dia. A fábrica onde trabalhava passou a operar seis dias por semana,
obrigando-a a trabalhar ao Sábado, algo que a sua fé não permitia. Foi
despedida. O Estado recusou-lhe subsídio de desemprego e ela processou-o,
invocando a liberdade religiosa. O Supremo Tribunal deu-lhe razão.
Com esse caso o Tribunal criou o Teste Sherbert, com critérios para
determinar se o Governo estava a violar a liberdade religiosa de alguém ou não.
A pessoa devia ter uma crença religiosa sincera, sobre cuja prática o Tribunal
tivesse colocado um fardo substancial. O Governo devia mostrar a existência de
um «interesse constrangedor do Estado» para colocar esse fardo sobre o crente e
ainda dar provas de o ter feito da forma menos restritiva possível.
É uma fasquia alta.
Nos anos 80 houve o caso de Alfred Smith e Galen Black, que trabalhavam
numa clínica de reabilitação mas fumavam peiote como parte da sua religião
nativa-americana. Quando a clínica descobriu, foram os dois despedidos. O
Estado recusou-lhes os subsídios. No caso Employment Division v. Smith, o Tribunal
acabou com o Teste Sherbert que tinha protegido a liberdade religiosa. A
decisão acabou por prender-se com o facto de os homens estarem a cometer um
acto ilegal e argumentou que a lei contra o uso de peiote não era dirigida
estritamente contra o uso religioso do narcótico, mas contra o seu uso em
geral.
Esta decisão, alcançada em 1990, conduziu a uma reacção enorme da
comunidade religiosa e dos defensores das liberdades civis. Cristãos de direita
e de esquerda, bem como a esquerda secular, galvanizaram-se. A coligação única,
que incluía a ACLU, o Congresso Mundial Judaico, a Christian Legal Society e a
Coligação pelos Valores Tradicionais, exigiu mudanças.
Tenham em conta que estas associações estavam em lados opostos da
discussão sobre o aborto há anos. Ainda assim, estavam de acordo no que diz
respeito à liberdade religiosa. Em apenas três anos conseguiram que o Congresso
passasse a Lei de Restauração da Liberdade Religiosa, que trouxe de volta o
Teste Sherbert. Passou na Câmara dos Representantes por unanimidade e no Senado
por 97 votos contra 3, tendo sido assinado pelo presidente Clinton.
Quatro anos mais tarde foi largamente revogada. No caso City of Boerne
v. Flores, em que a cidade de Boerne, no Texas, recusou-se a deixar o bispo
católico demolir um edifício histórico para alargar os serviços da Igreja, o
Supremo Tribunal determinou que, ao criar a lei, o Congresso tinha ultrapassado
os seus poderes ao abrigo da quinta secção da 14.ª emenda. Decidiram que a lei
obrigava o Governo Federal, mas não os Estados.
A coligação pela liberdade religiosa começou então a preparar a Lei de
Protecção da Liberdade Religiosa, com vista a ultrapassar algumas das objecções
do Supremo Tribunal, nomeadamente demonstrando a existência de uma necessidade
concreta de protecção, por haver pessoas lesadas.
A coligação apresentou no Congresso volumes de provas de discriminação
religiosa contra igrejas e pessoas em todo o País, uma «elenco completo», nas
palavras de Casey. A lei passou na Câmara de Representantes por 306-118, uma
maioria mais pequena, mas ainda substancial, que incluiu 107 democratas.
Mas depois embateu num obstáculo conhecido como Teddy Kennedy e um mais
pequeno conhecido como Joe Biden.
Just killed religious freedom...
No espaço de poucos anos, algo tinha mudado.
A coligação convocou uma reunião para o dia 22 de Julho de 1999. Mais de
60 pessoas juntaram-se à volta daquela mesa de reuniões na sede dos Veteranos
de Guerras Estrangeiras. Sam Casey, que na altura estava na Christian Legal
Society e actualmente trabalha na Jubilee Campaign, presidiu.
Segundo Casey: «Estavam lá todos, esquerda, direita e centro. Há anos
que lutávamos juntos, com sucesso. Tínhamos ganho na Câmara dos Representantes
e agora estávamos presos no Senado, precisávamos de decidir quais os próximos
passos».
Mas a reunião começou com uma intervenção de Oliver «Buzz» Thomas, do
Comité Baptista Conjunto, a anunciar que tinha chegado à conclusão que a Lei de
Restauração da Liberdade Religiosa, que estavam precisamente a tentar salvar,
era, na verdade inconstitucional. Isto apesar de ele ter ajudado a formulá-la e
de ter testemunhado a seu favor. Então anunciou que o seu grupo estava a
abandonar a coligação e saiu porta fora.
Metade da sala foi atrás.
Foi nesse instante que Casey e os outros perceberam o quão forte se
tinha tornado o lobby gay. A nova
objecção da esquerda era de que a liberdade religiosa seria usada para impedir
o avanço dos direitos dos homossexuais. Estas objecções nem faziam parte do
debate poucos anos antes, mas agora estavam a destroçar a mais potente
coligação transpartidária da história dos Estados Unidos e a impedir a criação
de legislação que servia para proteger crentes.
Os restantes grupos, exclusivamente da direita cristã, chegaram a um
acordo sobre uma lei para proteger a prática religiosa de reclusos, mais nada.
Casey tinha entrado naquela sala convicto de que a sua posição era
maioritária mas saiu consciente de que fazia parte de uma minoria remanescente,
a tentar preservar o que fosse possível.
Uma das tristes ironias de tudo isto é a questão de animosidade. A
decisão no caso Smith obriga o queixoso a provar a existência de animosidade
contra si por causa das suas crenças religiosas. No caso dos homossexuais,
contudo, os juízes federais e o juiz Kennedy, do Supremo, mantiveram
recentemente que a oposição ao casamento homossexual é, por si, prova de
animosidade contra os homossexuais e por isso é inadmissível.
Parece que o mundo está de pernas para o ar, e que os homossexuais estão
por cima.
Austin Ruse é presidente do Catholic Family & Human Rights Institute
(C-FAM), sedeado em Nova Iorque e em Washington D.C., uma instituição de
pesquisa que se concentra unicamente nas políticas sociais internacionais. As
opiniões aqui expressas são apenas as dele e não reflectem necessariamente as
políticas ou as posições da C-FAM.
(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing na Sexta-feira, 10 de
Janeiro de 2014. Tradução de Actualidade Religiosa)
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