segunda-feira, 8 de outubro de 2018

A HISTÓRIA DE ESPANHA QUE A ESQUERDA ESCONDE

Historiador José Luís Andrade, Observador, 30 de Setembro de 2018

Sem cair na propaganda, e independentemente dos números correctos, a última guerra civil de Espanha foi um conflito terrível e selvagem, com demasiados actos canalhas e com pouca misericórdia presente

Com a queda do Muro de Berlim muita gente convenceu-se de que a era dos totalitarismos tinha acabado. Na realidade, ela está cada vez mais presente, metamorfoseada é certo, disfarçadamente escondida nos entrefolhos do softpower dominante. E muitos dos seus agentes continuam a ser militantes políticos que se escondem sob a respeitabilidade do profissionalismo, seja nas redes da comunicação social seja nas do ensino ou na nebulosa de ONG financiadas pelo capital especulador, e até por nós, os desatentos contribuintes. A pulsão orwelliana do pensamento único obriga à necessidade de reescrever a História, retocando-a e manipulando a narrativa por forma a apresentá-la conforme aos dogmas actuais. Já estivemos mais longe de, num destes dias, sair um decreto a mandar que se eliminem ou retoquem nas obras de arte quaisquer representações figurativas que possam ser interpretadas como sexistas, homofóbicas ou politicamente desconformes à narrativa oficial única do «presente». É tão descarada a distorção, ensarilhada na barafunda académica com que se camufla a mentira, que quase nos sentimos tentados a encolher os ombros e a alinhar com a esmagadora maioria das pessoas que foi anestesiada para se estar nas tintas. Mas o amor à Verdade e à Liberdade acaba por mandar mais e forçar-nos a sair da nossa letargia, por indignação e repúdio à intolerância.

Vem todo este arrazoado a propósito do que se tem vindo a passar em Espanha sobre o local de depósito dos restos mortais dos dirigentes dos vencedores da última guerra civil espanhola. Guindada ao poder circunstancial, a rapaziada jacobina do Partido Socialista espanhol, e do seu particular artilugio (geringonça), assumida herdeira política dos vencidos, lá vai procurando humilhar as famílias e a memória dos vencedores ao mesmo que tentam espicaçar a oposição de direita para ver se alguém tem coragem de dizer o que quer que seja. E, com a iniciativa de criminalizar a descrição histórica imparcial do que de facto se passou, atemorizar qualquer um que se queira atrever a negar a «narrativa oficial»… de agora. Tirando partido dos equívocos e falsidades divulgadas ainda nos anos trinta pelo eficaz aparelho propagandístico do Kominterne consolidado após a vitória dos aliados e dos soviéticos na Segunda Guerra, foi concebido todo um programa de reescrita da História que muitos crêem ser apenas revanchista mas que, na realidade, vai muito para além disso.

A guerra civil que resultou do pronunciamento militar falhado de 17 de Julho de 1936, como qualquer outra guerra civil, fosse ela a portuguesa, a russa, a finlandesa ou a americana, foi brutal e gerou morticínios que enchem de vergonha qualquer pessoa minimamente civilizada. Quase todos associam à mortandade da guerra civil espanhola uma ordem de grandeza de um milhão de vítimas, numa carnificina que seria identificada (erradamente, no meu entendimento) como o prólogo do grande conflito mundial que se lhe seguiria. Temos hoje consciência e conhecimento que, de facto, tal número é apenas mítico, tendo sido manifestamente empolado. Talvez seja produto das bem montadas máquinas de propaganda e contra-informação dos dois lados em disputa que, na altura, quiçá para estimular a adesão e /ou a indignação, não hesitaram em recorrer à mentira e ao exagero. Sobre tecidos humanos fortemente traumatizados e emocionados, essa atitude, correlacionada com o omnipresente boato, introduziu uma distorção na dimensão quantitativa do número das vítimas do conflito.

Alimentada pelos ódios, essa visão persistiu durante demasiado tempo como uma obscura cortina de fumo que tem condicionado o nosso discernimento e o acesso à verdade, mesmo que aproximada. É óbvio que a tão característica soberba e diminuta capacidade autocrítica dos espanhóis também não ajudou. E, mesmo hoje, muitos dos que se reveem nas partes em guerra, persistem em acreditar acriticamente em números arbitrários amplificados pelo trágico e doloroso impacto que o ricochete dos acontecimentos teve na sociedade do país vizinho, e não só. Conhecedores do futuro, são sempre levados a considerar como importantes os acontecimentos mais alinhados com a sua visão do presente ou do mundo, nem se preocupando com os factos reais que, na maioria dos casos, não marcaram do mesmo modo os coevos. Perante tal limitação, fácil é cair na tentação de substituir História por Propaganda. Mas não deixa de ser verdade que, independentemente dos números correctos, a última guerra civil de Espanha foi um conflito terrível e selvagem, com demasiados actos canalhas e com pouca misericórdia presente.

Os ataques deliberados à população não combatente, como sejam os assassinatos na retaguarda, o extermínio de prisioneiros ou os bombardeamentos indiscriminados sobre alvos eminentemente civis, e tudo o que se enquadra no conceito geral que hoje se designa por crimes de guerra, foram prática vulgar. Aos atentados terroristas, mais ou menos selectivos, dos meses que precederam o pronunciamento militar (cerca de 280 assassinatos desde que a Frente Popular ganhara a 1.ª volta das eleições, em Fevereiro de 1936), sucederam-se as matanças generalizadas de prisioneiros, por linchamento ou execução sumária. Entre as cerca de 280.000 pessoas que morreram no conflito, contam-se aproximadamente 107.000 cuja vida terminou assim: 48 mil às mãos dos sublevados e 59 mil às mãos do governo da Frente Popular, com massacres como os de Paracuellos del Jarama ou os dos navios-prisão.

Em ambos os lados se verificou aquilo que podemos designar por limpeza ideológica. Ódios e rancores profundos, que haviam começado a acumular-se desde o século XIX mas que se haviam acentuado especialmente após o processo revolucionário que sucedeu à implantação da República, em 1931, ampliaram-se com a falhada revolta socialista de Outubro de 1934. Com efeito, um PSOE engordado por anos de colaboração com a ditadura de Primo de Rivera, não suportara a derrota nas eleições de Novembro de 1933 e tratara de pôr o comboio revolucionário nos carris, aliando-se aos independentistas catalães da Esquerra, aos comunistas de vários matizes, e até aos anarquistas nas Astúrias. Mas a golpada antidemocrática falhara e os ódios e frustrações foram-se acumulando, e recrudesceram depois das eleições de 36, gerando um ambiente que levou a morte e a desolação a muitas famílias espanholas.

Durante a Revolução de Outubro de 34, centenas de pessoas (entre elas 33 sacerdotes) tinham sido vítimas de linchamentos em condições de autêntica barbárie. Mas a desintegração do regime republicano acelerou-se na Primavera trágica de 36, após as fraudulentas eleições iniciadas em Fevereiro, como os investigadores Manuel Álvarez e Roberto Villa recentemente demonstraram ao pormenor em 1936: Fraude y Violencia en las elecciones del Frente Popular. De novo regressaram em força os incêndios a lugares de culto e a perseguição aos movimentos políticos mais firmes na oposição à revolução socialista. Segundo o insuspeito Stanley Payne, «ainda que a maioria dos actos de violência desde a instauração da República tenha procedido sempre da esquerda», eram os direitistas que acabavam por ir parar à prisão.

Durante a Guerra, ditaram-se sentenças irrevogáveis com base em simples indícios e inclusivamente sobre denúncias mais que duvidosas. As execuções eram concretizadas de imediato e por toda a parte se buscavam mais vítimas, ditos desafectos sobre cuja vida se decidia caprichosamente. Nas zonas ocupadas pelos insurrectos, era suficiente exercer ou ter exercido qualquer cargo de responsabilidade nas estruturas do regime frente populista, incluindo os sindicatos e os partidos de esquerda, ou ter-se manifestado publicamente contra a sublevação para ser susceptível de detenção e, com grande probabilidade, de execução. No lado do Governo, bastava para merecer a morte ser sacerdote ou religioso, ir à missa, ser identificado pelas suas opiniões políticas avessas às esquerdas ou tão apenas leitor de um jornal de direita, informação obtida pelo assalto dos milicianos às redacções.

Dos vinte e um generais de divisão ou equiparados no activo em Espanha, apenas quatro se associaram à rebelião de 17 de Julho de 36: Cabanellas, comandante da divisão territorial sediada em Saragoça, Franco e Goded, comandantes dos arquipélagos das Canárias e das Baleares, respectivamente, e Queipo de Llano, inspector-geral dos Carabineros. Note-se que Cabanellas e Queipo eram «heróis da República», tendo inclusivamente o último protagonizado o golpe republicano de Cuatro Vientos, em 15 de Dezembro de 1930, tendo-se refugiado em Portugal após o falhanço da intentona. O próprio cérebro da conjura, Mola, era filorepublicano, filho e neto de militares liberais que haviam feito carreira a lutar contra os carlistas. Contudo, nem isso obstou a que também Queipo de Llano fosse agora objecto da sanha exumatória que perpassa impunemente por Espanha sobre os diabolizados vencedores.

O Partido Socialista espanhol tem memória curta e confia em que a generalidade dos fazedores de opinião olhem para o lado, indiferentes ao reescrever da História; quando não se enlevam em catárticos aplausos para esconjurar os espíritos dos seus fantasmas e esqueletos fechados a sete chaves. Mas foi exactamente o fomento do ódio e da intolerância, o contínuo apertar do torno ideológico sobre as camadas recalcitrantes, sem saída de fuga nem esperança, que levou metade de Espanha (nas eleições de 36, mesmo com irregularidades, a Frente Popular poucos mais votos alcançou que o outro lado) a erguer-se em armas contra o que percebia como uma tentativa camuflada de impor um processo revolucionário à revelia do sentir do povo espanhol. Infelizmente, mesmo em coordenadas de tempo diferentes, a História tem uma tendência quase patológica a repetir-se. E não há maneira de perceberem que, de facto, «não há machado que corte a raiz ao pensamento»…