Historiador José
Luís Andrade, Observador, 30 de Setembro de 2018
Sem cair na propaganda, e independentemente dos
números correctos, a última guerra civil de Espanha foi um conflito terrível e
selvagem, com demasiados actos canalhas e com pouca misericórdia presente
Com a
queda do Muro de Berlim muita gente convenceu-se de que a era dos
totalitarismos tinha acabado. Na realidade, ela está cada vez mais presente,
metamorfoseada é certo, disfarçadamente escondida nos entrefolhos do softpower dominante. E muitos
dos seus agentes continuam a ser militantes políticos que se escondem sob a
respeitabilidade do profissionalismo, seja nas redes da comunicação social seja
nas do ensino ou na nebulosa de ONG financiadas pelo capital especulador, e até
por nós, os desatentos contribuintes. A pulsão orwelliana do pensamento único
obriga à necessidade de reescrever a História, retocando-a e manipulando a
narrativa por forma a apresentá-la conforme aos dogmas actuais. Já estivemos
mais longe de, num destes dias, sair um decreto a mandar que se eliminem ou
retoquem nas obras de arte quaisquer representações figurativas que possam ser
interpretadas como sexistas, homofóbicas ou politicamente desconformes à
narrativa oficial única do «presente». É tão descarada a distorção, ensarilhada
na barafunda académica com que se camufla a mentira, que quase nos sentimos
tentados a encolher os ombros e a alinhar com a esmagadora maioria das pessoas
que foi anestesiada para se estar nas tintas. Mas o amor à Verdade e à
Liberdade acaba por mandar mais e forçar-nos a sair da nossa letargia, por
indignação e repúdio à intolerância.
Vem
todo este arrazoado a propósito do que se tem vindo a passar em Espanha sobre o
local de depósito dos restos mortais dos dirigentes dos vencedores da última
guerra civil espanhola. Guindada ao poder circunstancial, a rapaziada jacobina
do Partido Socialista espanhol, e do seu particular artilugio (geringonça), assumida herdeira política dos
vencidos, lá vai procurando humilhar as famílias e a memória dos vencedores ao
mesmo que tentam espicaçar a oposição de direita para ver se alguém tem coragem
de dizer o que quer que seja. E, com a iniciativa de criminalizar a descrição
histórica imparcial do que de facto se passou, atemorizar qualquer um que se
queira atrever a negar a «narrativa oficial»… de agora. Tirando partido dos equívocos
e falsidades divulgadas ainda nos anos trinta pelo eficaz aparelho
propagandístico do Kominterne consolidado após
a vitória dos aliados e dos soviéticos na Segunda Guerra, foi concebido todo um
programa de reescrita da História que muitos crêem ser apenas revanchista mas
que, na realidade, vai muito para além disso.
A
guerra civil que resultou do pronunciamento militar falhado de 17 de Julho de
1936, como qualquer outra guerra civil, fosse ela a portuguesa, a russa, a
finlandesa ou a americana, foi brutal e gerou morticínios que enchem de
vergonha qualquer pessoa minimamente civilizada. Quase todos associam à
mortandade da guerra civil espanhola uma ordem de grandeza de um milhão de
vítimas, numa carnificina que seria identificada (erradamente, no meu entendimento)
como o prólogo do grande conflito mundial que se lhe seguiria. Temos hoje
consciência e conhecimento que, de facto, tal número é apenas mítico, tendo
sido manifestamente empolado. Talvez seja produto das bem montadas máquinas de
propaganda e contra-informação dos dois lados em disputa que, na altura, quiçá
para estimular a adesão e /ou a indignação, não hesitaram em recorrer à mentira
e ao exagero. Sobre tecidos humanos fortemente traumatizados e emocionados,
essa atitude, correlacionada com o omnipresente boato, introduziu uma distorção
na dimensão quantitativa do número das vítimas do conflito.
Alimentada
pelos ódios, essa visão persistiu durante demasiado tempo como uma obscura
cortina de fumo que tem condicionado o nosso discernimento e o acesso à
verdade, mesmo que aproximada. É óbvio que a tão característica soberba e
diminuta capacidade autocrítica dos espanhóis também não ajudou. E, mesmo hoje,
muitos dos que se reveem nas partes em guerra, persistem em acreditar
acriticamente em números arbitrários amplificados pelo trágico e doloroso
impacto que o ricochete dos acontecimentos teve na sociedade do país vizinho, e
não só. Conhecedores do futuro, são sempre levados a considerar como
importantes os acontecimentos mais alinhados com a sua visão do presente ou do
mundo, nem se preocupando com os factos reais que, na maioria dos casos, não
marcaram do mesmo modo os coevos. Perante tal limitação, fácil é cair na
tentação de substituir História por Propaganda. Mas não deixa de ser verdade
que, independentemente dos números correctos, a última guerra civil de Espanha
foi um conflito terrível e selvagem, com demasiados actos canalhas e com pouca
misericórdia presente.
Os
ataques deliberados à população não combatente, como sejam os assassinatos na
retaguarda, o extermínio de prisioneiros ou os bombardeamentos indiscriminados
sobre alvos eminentemente civis, e tudo o que se enquadra no conceito geral que
hoje se designa por crimes de guerra, foram prática vulgar. Aos atentados
terroristas, mais ou menos selectivos, dos meses que precederam o
pronunciamento militar (cerca de 280 assassinatos desde que a Frente Popular ganhara a 1.ª volta
das eleições, em Fevereiro de 1936), sucederam-se as matanças generalizadas de
prisioneiros, por linchamento ou execução sumária. Entre as cerca de 280.000
pessoas que morreram no conflito, contam-se aproximadamente 107.000 cuja vida
terminou assim: 48 mil às mãos dos sublevados e 59 mil às mãos do governo da Frente Popular, com massacres
como os de Paracuellos del Jarama ou os dos navios-prisão.
Em
ambos os lados se verificou aquilo que podemos designar por limpeza ideológica.
Ódios e rancores profundos, que haviam começado a acumular-se desde o século
XIX mas que se haviam acentuado especialmente após o processo revolucionário
que sucedeu à implantação da República, em 1931, ampliaram-se com a falhada
revolta socialista de Outubro de 1934. Com efeito, um PSOE engordado por anos
de colaboração com a ditadura de Primo de Rivera, não suportara a derrota nas
eleições de Novembro de 1933 e tratara de pôr o comboio revolucionário nos
carris, aliando-se aos independentistas catalães da Esquerra, aos comunistas de
vários matizes, e até aos anarquistas nas Astúrias. Mas a golpada
antidemocrática falhara e os ódios e frustrações foram-se acumulando, e
recrudesceram depois das eleições de 36, gerando um ambiente que levou a morte
e a desolação a muitas famílias espanholas.
Durante
a Revolução de Outubro de 34, centenas de pessoas (entre elas 33 sacerdotes)
tinham sido vítimas de linchamentos em condições de autêntica barbárie. Mas a
desintegração do regime republicano acelerou-se na Primavera trágica de 36,
após as fraudulentas eleições iniciadas em Fevereiro, como os investigadores
Manuel Álvarez e Roberto Villa recentemente demonstraram ao pormenor em 1936: Fraude y Violencia en
las elecciones del Frente Popular. De novo regressaram em força os incêndios a lugares de
culto e a perseguição aos movimentos políticos mais firmes na oposição à
revolução socialista. Segundo o insuspeito Stanley Payne, «ainda que a maioria
dos actos de violência desde a instauração da República tenha procedido sempre
da esquerda», eram os direitistas que acabavam por ir parar à prisão.
Durante
a Guerra, ditaram-se sentenças irrevogáveis com base em simples indícios e
inclusivamente sobre denúncias mais que duvidosas. As execuções eram
concretizadas de imediato e por toda a parte se buscavam mais vítimas, ditos
desafectos sobre cuja vida se decidia caprichosamente. Nas zonas ocupadas pelos
insurrectos, era suficiente exercer ou ter exercido qualquer cargo de
responsabilidade nas estruturas do regime frente populista, incluindo os
sindicatos e os partidos de esquerda, ou ter-se manifestado publicamente contra
a sublevação para ser susceptível de detenção e, com grande probabilidade, de
execução. No lado do Governo, bastava para merecer a morte ser sacerdote ou
religioso, ir à missa, ser identificado pelas suas opiniões políticas avessas
às esquerdas ou tão apenas leitor de um jornal de direita, informação obtida
pelo assalto dos milicianos às redacções.
Dos
vinte e um generais de divisão ou equiparados no activo em Espanha, apenas
quatro se associaram à rebelião de 17 de Julho de 36: Cabanellas, comandante da
divisão territorial sediada em Saragoça, Franco e Goded, comandantes dos
arquipélagos das Canárias e das Baleares, respectivamente, e Queipo de Llano,
inspector-geral dos Carabineros. Note-se que
Cabanellas e Queipo eram «heróis da República», tendo inclusivamente o último
protagonizado o golpe republicano de Cuatro Vientos, em 15 de Dezembro
de 1930, tendo-se refugiado em Portugal após o falhanço da intentona. O próprio
cérebro da conjura, Mola, era filorepublicano, filho e neto de militares
liberais que haviam feito carreira a lutar contra os carlistas. Contudo, nem
isso obstou a que também Queipo de Llano fosse agora objecto da sanha
exumatória que perpassa impunemente por Espanha sobre os diabolizados
vencedores.
O
Partido Socialista espanhol tem memória curta e confia em que a generalidade
dos fazedores de opinião olhem para o lado, indiferentes ao reescrever da
História; quando não se enlevam em catárticos aplausos para esconjurar os
espíritos dos seus fantasmas e esqueletos fechados a sete chaves. Mas foi
exactamente o fomento do ódio e da intolerância, o contínuo apertar do torno
ideológico sobre as camadas recalcitrantes, sem saída de fuga nem esperança,
que levou metade de Espanha (nas eleições de 36, mesmo com irregularidades, a Frente Popular poucos mais votos
alcançou que o outro lado) a erguer-se em armas contra o que percebia como uma
tentativa camuflada de impor um processo revolucionário à revelia do sentir do
povo espanhol. Infelizmente, mesmo em coordenadas de tempo diferentes, a
História tem uma tendência quase patológica a repetir-se. E não há maneira de
perceberem que, de facto, «não há machado que corte a raiz ao pensamento»…