terça-feira, 9 de outubro de 2012

Passa a palavra

Pedro Santos Guerreiro, Jornal Negócios

(Ler o nosso comentário no fim)

Há momentos de descontinuidade na percepção da realidade. Como a perda de gravidade acima de uma certa altitude ou o silêncio sepulcral quando se passa a velocidade do som. O "enorme aumento de impostos" de ontem parece um desses momentos. O momento em que se pára. O momento em que já nada se percebe. O momento em que as mil perguntas já não atravessam a barreira dos dentes. Pedem-nos tudo, explicam-nos pouco, prometem-nos nada. E nós, vamos à luta?

É uma ironia cruel: Portugal está a vencer a batalha dos mercados no mesmo passo em que perde a batalha do país. Somos louvados, ganhámos um ano, temos as taxas de juro mais baixas desde o início da intervenção externa. E no entanto, estamos sobre um abismo em cima de cordões de sapatos.

O "aumento brutal de impostos" é uma resposta desesperada de um Governo cuja estratégia falhou e que não teve criatividade nem se preparou para outras medidas. Perante a derrapagem do défice, Passos Coelho perdeu o tino e anunciou a medida estupidamente inteligente da taxa social única, que aniquilou a paz política e arruinou a paz social. Agora, o País está na esquina perigosa entre ser sucesso ou fracasso, Irlanda ou Grécia, singrar ou afundar-se na espiral recessiva. Perante o abismo, o Governo abriu a gaveta das possibilidades e tirou tudo de lá de dentro. Tudo. Caça com cão, com gato, com gão e com cato.

Este aumento de impostos é um grito. Não tem lógica, não tem política, não tem justiça, não tem estudos, não tem regras, não tem sequer coerência ideológica. É uma arma que metralha contra uma selva escura. Impostos, impostos, impostos. E é também uma súplica. Aos portugueses. Porque se as hipóteses de salvação são exíguas, elas serão nulas se o país estiver indisponível. Está o País disponível? Vamos "manter a coesão", como pede Vítor Gaspar?

Eis a grande questão. Saber se estamos para isto. Mais que na falta de criatividade nas medidas, mais que na falta de negociação externa, o Governo falha quando propõe um contrato aos portugueses com base numa única premissa: porque o País é deles. Nosso.

O Governo destratou os portugueses quando criou uma tropa de elite para tratar dos mercados e deixou vazia a cadeira da política, onde se fala ao povo. Agora, o Governo precisa do povo. Mas falha-lhe, não lhe dá o que povo exige. Merece. Precisa.

A mobilização do povo exige premissas simples. Exige que além dos aumentos de impostos haja cortes de despesa no funcionamento do Estado - e o Governo está um ano e meio atrasado nisso. Exige equidade nos cortes, mas as medidas contra os lóbis são tíbias e tardias. Sobretudo: exige um propósito, luz no fundo do túnel, exige confiança. Exige verdade.

Não basta tocar o clarim para que os portugueses voltem para dentro do barco de que foram expulsos com a TSU. Não é possível fazer uma convocatória de um povo mantendo-o na insegurança perpétua e na ignorância permanente.

Como se faz a convocatória de um povo mantendo-o desinformado quanto à vida do seu País e de cada uma das vidas que o habitam? Vítor Gaspar fez anúncios negros repletos de espaços em branco. É preciso preencher esses espaços em branco, há dados fundamentais desconhecidos. Quais são os novos escalões de IRS? Quem vai pagar mais e quanto mais? O que é preciso poupar hoje para compensar mais tarde? Acima de que valor um trabalhador da iniciativa privada perde mais do que um salário em 2013? Qual é o máximo que um funcionário público pode perder? E o mínimo que um pensionista pagará? Quanto se vai pagar de IMI? Que valor de salário vai sobejar depois do fim das deduções fiscais? Em Maio de 2014, quando chegar o acerto do IRS, que surpresas haverá? Como podemos acreditar que há equidade sem dados para percebê-lo? Quanto vão pagar as concessionárias de PPP, se é que vão? Qual é a taxa sobre transacções financeiras? Que "grandes lucros" de empresas vão ser tributados? Qual a dimensão da economia paralela? Como será cortada despesa do Estado em quatro mil milhões de euros, como a troika obriga? Vão despedir militares, polícias? Vão cortar prestações sociais, subsídio de desemprego? Quanto? A quem? Não é uma falácia dizer que os portugueses vão ficar melhor em 2013 do que ficariam com a TSU, quando muitos vão ficar pior que em 2012? Como havemos de acreditar que a economia "só" decresce 1% no próximo ano? O que nos garante que não entramos em espiral recessiva? Por que razão a receita fiscal não quebrará no próximo ano se quebrou neste? Quando acaba afinal esta crise? Em 2014? Em 2018? Em dois mil e nunca? Que ambição podemos ter? Que gerações têm esperança? Que legado deixaremos? Sem respostas, os portugueses não sabem sequer quanto dinheiro vão ter daqui a três meses, quanto mais se acreditam no País.

Faltam cortes de despesa. Não há medidas de incentivo ao crescimento. O aumento do IRS é enorme. A julgar pela incidência, é preciso ganhar cada vez menos dinheiro para ter um "rendimento alto" para o fisco. Estamos mais pobres, mas há cada vez mais ricos.

Há um batalhão de gente neste momento a lutar pelo País mesmo que parte dele não saiba fazê-lo. Cada português tem de decidir se acredita nisto. Se desiste, se se rebela. Ou se acredita, tira o sangue das pedras, paga impostos, luta pela sua vida e pela dos outros. Sim, é uma decisão cada vez mais individual. Porque está a tornar-se uma decisão de fé. Para ocupar com palavras os milhões de espaços em branco.


O NOSSO COMENTÁRIO

Tudo certo. Mas o que poderão os Portugueses fazer se não estiverem organizados?

O derrube do sistema exige organização.

Mas não apenas organização. Para que ao sistema não suceda o mesmo, com outras moscas, é preciso que a organização se estabeleça em torno de princípios da Civilização cristã e de um programa que procure o bem comum.

Se, antes de estarem reunidas as condições para a verdadeira mudança, a classe política dominante for substituída por outra igualmente medíocre, tratar-se-á de mais uma nova mascarada e um novo adiamento da verdadeira solução para Portugal.

As feridas da Igreja - XIII

José Augusto Santos

Como no número anterior não cheguei a abordar a Instrução Inaestimabile Donum, vejamos agora alguns pontos desse documento da Sagrada Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, aprovado e confirmado que fora por João Paulo II.

A começar pelo N.º 17, com grande tristeza para alguns, constata-se hoje que é impossível encontrar em muitas igrejas o silêncio que nos é recomendado nesta Instrução. Toda a gente sabe que na casa de Deus, o silêncio é obrigatório sempre, em todos os momentos, mas sobre aquele que deve ser observado na santa Missa, diz este Documento no ponto 17: «Aos fiéis, recomenda-se que não se omitam em fazer uma apropriada acção de graças depois da Comunhão.» Mas para além desse momento, prejudicado muitas vezes pelo cântico completamente desapropriado e pela qualidade das próprias vozes, diz ainda que pode ser «também depois da celebração, se possível permanecendo em oração por um considerável espaço de tempo.»

Que bom seria, de facto, podermos saborear as graças recebidas pelo Mistério Eucarístico, num encontro pessoal com a Santíssima Trindade, presente na alma daquele que acaba de receber Jesus na Eucaristia!... Quão agradável, isso seria para Deus! Quanto Ele anseia por um momento de intimidade com a nossa alma! Não porque precise de um mimo nosso, mas porque, sendo a nascente de onde brota, luminoso, o Amor, alegra-Se com aquele filho, com aquela filha que nela vai dessedentar-se. Quem d’Ela quiser beber, deve descer suave e docemente à sua consciência, pórtico de entrada da alma, e isso só é possível na ausência de tudo o que impeça o sagrado silêncio.

Só entrando completamente no interior do silêncio se chega ao espaço onde habita a quietude, a serenidade e a paz, meios pelos quais se consegue alcançar a chave que abre o portão da alma. Mas havendo mais do que uma chave, como saber qual é a certa? É muito fácil: é aquela cujo material de que é composta é a oração que fora sujeitada a um banho de amor. Não há, portanto, que confundir com nenhuma outra, porque é feita dessa liga tão primária e tão especial... Mas dado que é uma chave já muito, muito antiga, primeiro tem que se lhe ganhar o jeito. Depois disso, imaginem só, dada a sua forma e composição, é tão eficaz que com ela se consegue ter acesso mesmo ao coração de Deus...

Se estiver atento, constatará que muito dificilmente chega a ter no decorrer da própria celebração um momento que favoreça particularmente esse exultante encontro do seu ser com o Espírito Santo. Até mesmo durante a liturgia eucarística, que seria o tempo por excelência, isso se torna muito difícil, porque até lá, várias “ocupações”, que para o efeito se pode dizer distrações, nos impedem de mergulharmos no grande Mistério eucarístico.

É um encontro com o Mistério de Deus, por isso inexplicável, através do qual se vislumbram espiritualmente os alvores Celestes. Por ele desce sobre nós um gozo, cuja descrição se revela difícil até para os poetas. Nele se sente o efeito daquilo que pedimos na oração ensinada por Jesus, quando dizemos «venha a nós o Vosso reino». Abro aqui um parêntesis para dizer que essa súplica dirigida ao Pai, não é propriamente e apenas para se chegar a esse estado de elevação, mas uma vez alcançado fica-se habilitado a ver o mundo, os outros, como Deus quer que os vejamos, daí resultando o Bem no nosso agir. É esse, e não outro, o sentido do que pedimos no Pai-nosso.

Quem numa tragédia perde todos os bens, não chega a perder tanto como aquele que fica privado da brisa de amor perfumado que o Espírito Santo sopra com divina suavidade na alma que se vê envolta na luz que emana da Sua presença.

Para saborear o sagrado, não bastará, pelo menos para a maioria, essa individual oração em silêncio, mas já seria muito fácil para essa mesma maioria, se nessa desejada elevação fossemos auxiliados por uma suave, belíssima e perfeita harmonia de vozes, ou pelo som magistral do órgão...

Compare agora, caríssimo leitor, uma celebração onde o próprio ar que se respira parece estar impregnado do odor do Espírito Santo, com aquelas que de sagrado só têm o ministro celebrante e a Eucaristia.

Compreende agora o que digo anteriormente sobre a resposta dos fiéis: «ele está no meio de nós»? Se assim fosse, no final da Missa não se verificava aquilo que já parece um ritual, que é o começarem logo os sorrisos, as conversas, os cumprimentos, com respectivos beijinhos e abraços, mal o padre deixa o altar. Se de facto Ele estivesse no meio de nós, ficando cada um em seu recolhimento, todos sentiríamos a irresistível vontade de O adorar, de Lhe agradecer as Graças recebidas. Nesse momento, a única coisa permitida a quebrar o silêncio só pode ser o canto ou as notas do órgão, desde que estejam à altura de nos ajudarem a louvar o Senhor.

Tragicamente, porém, para as nossas almas, tudo acontece em sentido contrário. A casa de Deus é logo transformada num espaço de convívio, e no tocante à beleza do canto, salvo raras excepções, os cantores prestariam um melhor serviço a Deus, se se calassem. Dessa forma ficaríamos, em termos de concentração, mais disponíveis para o Essencial. Mas parece que ninguém entende que a “animação” é um mero acessório e como tal dispensável… Digo mesmo, tão dispensável, que na maioria das paróquias deveria ser proibido. O menos conhecedor sabe que é de paupérrima qualidade aquilo que damos a Deus. Urge, por isso, que as autoridades eclesiásticas tomem as necessárias medidas para que ao Senhor, e só a Ele, seja dado o que de excelso existe no homem.

Em parte isso deixou de acontecer porque, ao nos contaminarem por meio das armas biológico-espirituais que são o relativismo e o modernismo, mal por meio do qual as células do corpo têm atacado a própria cabeça, os inimigos da Igreja planearam o seu desmoronamento contando que os católicos formassem um corpo acéfalo, razão pela qual lhes seria fácil fazerem de nós burros. E a verdade é que, com a conivência de alguns membros do clero e a displicência de outros, só não nos levaram a carregarmos com eles às costas, como bons asininos, porque preferem usar automóvel, caso contrário, em nome de um falso dever de obediência, até isso conseguiriam dos néscios…

Voltando à Inaestimabile Donum, podemos ver ainda na introdução: «Aquele que oferece culto a Deus em nome da Igreja, de modo contrário» às normas estabelecidas, «é culpado de falsificação». E relativamente a isso, diz que «as consequências são o prejuízo da unidade da Fé e Culto na Igreja, incerteza doutrinária, escândalo e confusão entre o Povo de Deus, e em alguns casos, inevitáveis reacções violentas». Em suma, diz a Santa Sé o que o Povo vê e sente...

No N.º 4, determina que «o Per Ipsum (por Cristo, com Cristo…) por si mesmo é reservado somente ao sacerdote», mas há padres que fazem publicamente questão de desobedecerem…

São estas e todas as outras feridas, que impedem cada vez mais baptizados de verem resplandecente o Corpo Místico, razão pela qual a maioria se deixa atrair pelo efémero e enganoso brilho do espírito do mundo, voltando as costas à Igreja. Em graus diferentes, todos somos culpados, daí a responsabilidade de testemunharmos Cristo tanto fora como dentro da própria Igreja.

domingo, 7 de outubro de 2012

De pernas para o ar

Fernanda Leitão

Os dias que desembocaram no 5 de Outubro de 2012 foram um verdadeiro fim de festa, com acontecimentos e pormenores que por muito tempo ficarão na memória do povo.

Começou com António Borges, um homem de mão do Goldman Sachs, a passar rodas de “ignorantes” aos empresários, com a desfaçatez de quem considera Miguel de Vasconcelos um menino de coro se comparado com a sua pessoa. Logo depois Victor Gaspar anunciou medidas de austeridade tais que pulverizam a classe média e empurram Portugal para o abismo. E fê-lo raivosamente, como quem atira pedras aos governados, a dar-se ares de pimpão, respaldado pelo Moedas do Goldman Sachs. Logo depois, no debate parlamentar, quando um deputado do PC lia a carta do líder do CDS aos seus militantes condenando a austeridade excessiva, Passos Coelho e Relvas, ao lado de um Paulo Portas calado e cabisbaixo, e de um Álvaro amarrotado como um papel sem préstimo, riam-se sem pudor nem maneiras. Foi uma cena de inacreditável baixeza.

Chegado o país à última celebração estadual da República, por decisão do governo bota-abaixo que o PSD e o CDS ofereceram a Portugal, a opinião pública ficou a saber que o primeiro-ministro trocava a celebração caseira por uma daquelas reuniões no estrangeiro onde é sempre um verbo de encher. E que o Presidente da República não queria a cerimónia no largo da Câmara de Lisboa, como sempre foi desde 1910, preferindo o escondido recato do Pátio da Galé, e mesmo ali só para convidados. Ao comprimento e à largura de Portugal, foi dito alto e bom som pelo “melhor povo do mundo” que o PR e o governo fugiam às garantidas vaias e apupos.

Umas imagens televisivas da Eslováquia mostraram Passos Coelho e Paulo Portas, caminhando apressados como quem foge da própria sombra, com o dirigente do CDS a declarar que a coligação está firme, “claro”. Não há que ter dúvidas: o país está entregue a uns garotões que mascaram a incompetência e o medo com a tosca desenvoltura da insolência.

Na varanda do município, o PR hasteou a bandeira de pernas para o ar. Pouca sorte a da bandeira verde-rubra: já foi pisada em Londres (1), numa manifestação contra a presença de Marcelo Caetano, já foi arrastada pelo chão em África, na hora derradeira da presença secular de Portugal. E agora, o azar quis que desse ao mundo a imagem de Portugal: virado do avesso. No Pátio da Galé, aconteceu o ponto final: António Costa fez um discurso de PR e o PR fez um discurso descolorido de representante de um governo partidário a desfazer-se em bocados. E, apesar da horda de seguranças, o “melhor povo do mundo”, na pessoa de duas bravas mulheres, deixou os convidados em silêncio atordoado e o PR a engolir em seco: uma senhora de meia -dade que gritava o seu desespero pelo desemprego e uma pensão de 200 euros, que era ali a voz de milhões, e uma jovem cantora lírica que entoou um cântico de resistência e foi ali o prolongamento de toda uma juventude prestes a explodir.

Haverá quem, não se revendo neste regime, se regozije com este descalabro. Eu não me regozijo. Amo demasiado Portugal para não sofrer com toda esta lama que o salpica e com a tremenda desgraça que atinge o povo a que pertenço.

Mas acredito que o “melhor povo do mundo” se levantará como uma só pessoa e salvará Portugal desta vergonha e de uma ditadura. Não há União Europeia nem Merkel, nem o grande raio que parta os que vivem da desgraça alheia, que possa impedir um povo de tomar em mãos o seu futuro.
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(1) Refere-se a um suposto e divulgado acto de Mário Soares em Londres. Isto não corresponde à realidade. Corresponde sim a «críticas» de quem não tem capacidade política para mais nem honestidade intelectual. É daquelas mentiras postas a circular por uma direita estúpida (sim, não é só a esquerda que é estupida!) que, repetidas que são, acabam por fazer fé. E muitas pessoas repetem a mesma história como se fosse verdade, como aqui neste artigo é o caso.
A uma direita consequente não será preciso inventar para criticar Mário Soares. Ou será? A verdade não será suficiente para criticar os socialistas?
É como aquela história de uma suposta carta de Rosa Coutinho a Agostinho Neto, que andou a circular na net. Para criticar esse traste seria preciso inventar? Só a direita estúpida o faria, e ainda por cima com o rabo de fora.
Mais uma vez, sobre o caso, é pena que um bom artigo contenha tal «voz corrente» que já enjoa ouvir.
(Nota da Redacção)