terça-feira, 9 de outubro de 2012

As feridas da Igreja - XIII

José Augusto Santos

Como no número anterior não cheguei a abordar a Instrução Inaestimabile Donum, vejamos agora alguns pontos desse documento da Sagrada Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, aprovado e confirmado que fora por João Paulo II.

A começar pelo N.º 17, com grande tristeza para alguns, constata-se hoje que é impossível encontrar em muitas igrejas o silêncio que nos é recomendado nesta Instrução. Toda a gente sabe que na casa de Deus, o silêncio é obrigatório sempre, em todos os momentos, mas sobre aquele que deve ser observado na santa Missa, diz este Documento no ponto 17: «Aos fiéis, recomenda-se que não se omitam em fazer uma apropriada acção de graças depois da Comunhão.» Mas para além desse momento, prejudicado muitas vezes pelo cântico completamente desapropriado e pela qualidade das próprias vozes, diz ainda que pode ser «também depois da celebração, se possível permanecendo em oração por um considerável espaço de tempo.»

Que bom seria, de facto, podermos saborear as graças recebidas pelo Mistério Eucarístico, num encontro pessoal com a Santíssima Trindade, presente na alma daquele que acaba de receber Jesus na Eucaristia!... Quão agradável, isso seria para Deus! Quanto Ele anseia por um momento de intimidade com a nossa alma! Não porque precise de um mimo nosso, mas porque, sendo a nascente de onde brota, luminoso, o Amor, alegra-Se com aquele filho, com aquela filha que nela vai dessedentar-se. Quem d’Ela quiser beber, deve descer suave e docemente à sua consciência, pórtico de entrada da alma, e isso só é possível na ausência de tudo o que impeça o sagrado silêncio.

Só entrando completamente no interior do silêncio se chega ao espaço onde habita a quietude, a serenidade e a paz, meios pelos quais se consegue alcançar a chave que abre o portão da alma. Mas havendo mais do que uma chave, como saber qual é a certa? É muito fácil: é aquela cujo material de que é composta é a oração que fora sujeitada a um banho de amor. Não há, portanto, que confundir com nenhuma outra, porque é feita dessa liga tão primária e tão especial... Mas dado que é uma chave já muito, muito antiga, primeiro tem que se lhe ganhar o jeito. Depois disso, imaginem só, dada a sua forma e composição, é tão eficaz que com ela se consegue ter acesso mesmo ao coração de Deus...

Se estiver atento, constatará que muito dificilmente chega a ter no decorrer da própria celebração um momento que favoreça particularmente esse exultante encontro do seu ser com o Espírito Santo. Até mesmo durante a liturgia eucarística, que seria o tempo por excelência, isso se torna muito difícil, porque até lá, várias “ocupações”, que para o efeito se pode dizer distrações, nos impedem de mergulharmos no grande Mistério eucarístico.

É um encontro com o Mistério de Deus, por isso inexplicável, através do qual se vislumbram espiritualmente os alvores Celestes. Por ele desce sobre nós um gozo, cuja descrição se revela difícil até para os poetas. Nele se sente o efeito daquilo que pedimos na oração ensinada por Jesus, quando dizemos «venha a nós o Vosso reino». Abro aqui um parêntesis para dizer que essa súplica dirigida ao Pai, não é propriamente e apenas para se chegar a esse estado de elevação, mas uma vez alcançado fica-se habilitado a ver o mundo, os outros, como Deus quer que os vejamos, daí resultando o Bem no nosso agir. É esse, e não outro, o sentido do que pedimos no Pai-nosso.

Quem numa tragédia perde todos os bens, não chega a perder tanto como aquele que fica privado da brisa de amor perfumado que o Espírito Santo sopra com divina suavidade na alma que se vê envolta na luz que emana da Sua presença.

Para saborear o sagrado, não bastará, pelo menos para a maioria, essa individual oração em silêncio, mas já seria muito fácil para essa mesma maioria, se nessa desejada elevação fossemos auxiliados por uma suave, belíssima e perfeita harmonia de vozes, ou pelo som magistral do órgão...

Compare agora, caríssimo leitor, uma celebração onde o próprio ar que se respira parece estar impregnado do odor do Espírito Santo, com aquelas que de sagrado só têm o ministro celebrante e a Eucaristia.

Compreende agora o que digo anteriormente sobre a resposta dos fiéis: «ele está no meio de nós»? Se assim fosse, no final da Missa não se verificava aquilo que já parece um ritual, que é o começarem logo os sorrisos, as conversas, os cumprimentos, com respectivos beijinhos e abraços, mal o padre deixa o altar. Se de facto Ele estivesse no meio de nós, ficando cada um em seu recolhimento, todos sentiríamos a irresistível vontade de O adorar, de Lhe agradecer as Graças recebidas. Nesse momento, a única coisa permitida a quebrar o silêncio só pode ser o canto ou as notas do órgão, desde que estejam à altura de nos ajudarem a louvar o Senhor.

Tragicamente, porém, para as nossas almas, tudo acontece em sentido contrário. A casa de Deus é logo transformada num espaço de convívio, e no tocante à beleza do canto, salvo raras excepções, os cantores prestariam um melhor serviço a Deus, se se calassem. Dessa forma ficaríamos, em termos de concentração, mais disponíveis para o Essencial. Mas parece que ninguém entende que a “animação” é um mero acessório e como tal dispensável… Digo mesmo, tão dispensável, que na maioria das paróquias deveria ser proibido. O menos conhecedor sabe que é de paupérrima qualidade aquilo que damos a Deus. Urge, por isso, que as autoridades eclesiásticas tomem as necessárias medidas para que ao Senhor, e só a Ele, seja dado o que de excelso existe no homem.

Em parte isso deixou de acontecer porque, ao nos contaminarem por meio das armas biológico-espirituais que são o relativismo e o modernismo, mal por meio do qual as células do corpo têm atacado a própria cabeça, os inimigos da Igreja planearam o seu desmoronamento contando que os católicos formassem um corpo acéfalo, razão pela qual lhes seria fácil fazerem de nós burros. E a verdade é que, com a conivência de alguns membros do clero e a displicência de outros, só não nos levaram a carregarmos com eles às costas, como bons asininos, porque preferem usar automóvel, caso contrário, em nome de um falso dever de obediência, até isso conseguiriam dos néscios…

Voltando à Inaestimabile Donum, podemos ver ainda na introdução: «Aquele que oferece culto a Deus em nome da Igreja, de modo contrário» às normas estabelecidas, «é culpado de falsificação». E relativamente a isso, diz que «as consequências são o prejuízo da unidade da Fé e Culto na Igreja, incerteza doutrinária, escândalo e confusão entre o Povo de Deus, e em alguns casos, inevitáveis reacções violentas». Em suma, diz a Santa Sé o que o Povo vê e sente...

No N.º 4, determina que «o Per Ipsum (por Cristo, com Cristo…) por si mesmo é reservado somente ao sacerdote», mas há padres que fazem publicamente questão de desobedecerem…

São estas e todas as outras feridas, que impedem cada vez mais baptizados de verem resplandecente o Corpo Místico, razão pela qual a maioria se deixa atrair pelo efémero e enganoso brilho do espírito do mundo, voltando as costas à Igreja. Em graus diferentes, todos somos culpados, daí a responsabilidade de testemunharmos Cristo tanto fora como dentro da própria Igreja.

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