Nuno Serras Pereira
Algum tempo depois de, como filho pródigo, ter
regressado à Igreja, isto é a Jesus Cristo total, Cabeça e corpo, para usar uma
expressão de Santo Agostinho, comecei a ler o jornal L’ Osservatore
Romano
na sua totalidade – Pontificava então o Papa Paulo VI. Este hábito de ler tudo
o que promanava dos Santos Padres tem-se mantido até aos dias de hoje.
Provavelmente aqueles que não estão a par das coisas eclesiais não saberão que
isto significa que li e meditei muitos milhares, mas mesmo muitos, de páginas.
Já não tenho grande memória de Paulo VI, mas no que diz respeito a João Paulo
II e a Bento XVI posso testemunhar que os seus pontificados foram marcados
essencialmente pelo Amor/Misericórdia. Não me refiro somente à Encíclica de
João Paulo II sobre Deus rico em Misericórdia (tema que está presente em todos
os seus documentos e talvez de um modo mais marcante na Veritatis Splendor, na
Evangelium Vitae e na Redemptoris Missio) ou às de Bento XVI sobre a Caridade/Amor/Misericórdia. Mas esses luminosos Pontificados foram marcados por uma
proximidade, um abeiramento samaratiano de cada pessoa humana, desde o
seu início até ao seu termo. Se há verdade que o mundo e a Igreja têm escutado
até à saturação, que ninguém desconheça dentro e fora da Igreja, a não ser os
recém-nascidos, é que Deus é Misericórdia. Não há homilia que o omita, nem
catequese que só disso fale, nem artigo de opinião ou entrevista radiofónica ou
televisiva a católicos, Cardeais, Bispos, sacerdotes ou leigos que nisso não
insista. Isso é muito claro, por exemplo, quando conversando com pessoas que se
dirigem a uma «clínica» ou «maternidade» ou hospital para abortarem dizem que
não faz mal nenhum matarem a seus filhos, porque Deus é misericordioso e
perdoa: «não faz mal», asseguram com um sorriso. É mesmo em nome da
Misericórdia que catequistas ensinam as suas crianças sobre a bondade do
aborto, da contracepção, da homossexualidade e do «casamento» entre pessoas do
mesmo sexo; e também sacerdotes, até no confessionário, aconselham essas
coisas, tudo em nome da Misericórdia. Um ministro da Comunhão, só para dar um
exemplo, obrigou a sua filha abortar e, apesar de isto ser público e notório,
tanto o pároco como o Bispo acharam, em nome da misericórdia, por bem que ele
continuasse a distribuir a Sagrada Comunhão. A
mesma misericórdia serve ainda de justificação aos políticos que se intitulam
católicos, votarem favoravelmente a eutanásia, o aborto, o casamento «gay»; e
de pretexto a Bispos e Cardeais de lhes darem entusiasticamente a Sagrada
Comunhão e de os convidarem, como exemplos, para palestrarem ao povo de Deus.
Essa pastoral, da «misericórdia» e do «amor»
vazios de conteúdo, conhecemo-la aqui na Europa há muitos anos e os seus
resultados estão à vista – não podiam ser mais devastadores.
Evidentemente que nem S. João Paulo II nem Bento XVI
são responsáveis por estes abusos, pelo contrário. Mas não me venham dizer que
somente agora é que a Igreja anunciará a Misericórdia de Deus e o amor de Jesus
como Salvador como contexto para tudo o mais. Porque afirmar isso é uma
falsidade infame. Se há ícone da Misericórdia que ficará como eminente na
história da Igreja esse será sem margem para dúvida o Papa João Paulo II. Já
nos esquecemos dos milhões de pessoas que ele converteu ou aproximou da Igreja
e de Deus, das multidões inumeráveis que se abeiraram da confissão sacramental,
etc., etc.? Mas este mesmo Papa que estendeu a devoção da Divina Misericórdia
(Santa Faustina) e proclamou o Domingo depois do da Páscoa como Domingo da
Misericórdia (e Deus veio buscá-lo nessa solenidade para o levar para junto de
si) percebeu muito bem que não se podia somente insistir nessa tecla mas que
era preciso dar-lhe um conteúdo substancial e aí tinha, nos dias de hoje, uma
proeminência vital o aborto e eutanásia (Evangelium vitae – defesa da vida nos
seus momentos mais vulneráveis), os ataques à família (Familiaris consortio;
carta às famílias; direitos da família) e a contracepção (Teologia do corpo –
como comentário à Humanae vitae). As vítimas, os feridos, mutilados, desfeitos,
estilhaçados por essas violências brutais – nos dias de hoje perante a
avalanche imensa de estudos e dados empíricos, é impossível ignorá-los – são
infinitamente maiores do que as vítimas das guerras horrorosas, a que todos nos
opomos. E, no entanto, ninguém, nem mesmo eu!, na Igreja quer ou pede que se
insista somente nesses assuntos – de onde terá surgido ideia tão insólita e
abstrusa? O que espanta nos dias de hoje é o
silêncio sepulcral sobre eles ou raridade (se
tivermos em conta os documentos da Santa Sé e dos Episcopados o aborto, o «casamento»
gay e a contracepção muito provavelmente não representarão sequer 0,1 por cento
dos assuntos tratados) com que são
abordados e a insistência em outros pontos que também são morais e também
«vêm depois»: a guerra e a paz, a pobreza, os refugiados, os imigrantes, os
doentes, etc. (assuntos aliás de que todo o
mundo fala com consenso universal).
Todos os anos se celebra o dia mundial da Paz acompanhado
de oração em todas as Igrejas do mundo, com homilias, palestras, conferências;
há sempre uma longa mensagem dos Santos Padres amplamente difundida não só
pelos órgãos da Igreja mas também pelos grandes média e pela internet –
blogues, redes sociais, etc. O tema costuma reaparecer diversas vezes ao longo
do ano quer no Angelus do Santo Padre, quer nas suas Catequeses, quer nas
Dioceses, quer nas orações universais das Missas de Domingo, quer no terço
diário rezado nos grandes Santuários Marianos. E de vez em quando os Papas
convocam vigílias de oração não só em Roma como por todo o mundo, congregando
centenas de milhares de pessoas, só na praça de S. Pedro, e ali estão 3 ou 4
horas em oração. Todos os anos há o dia das migrações e a respectiva mensagem e
as peregrinações e se for preciso um Papa deitando uma coroa de flores aos
mares por causa das centenas de vítimas de traficantes sem escrúpulos. E há
ainda o dia dos doentes, também com uma mensagem papal e com preces nas Igrejas
por todo o orbe (que aliás acontecem praticamente todos os dias nas Missas e na
Liturgia das Horas e nos Terços desfiados nos Santuários Marianos). Nas
audiências os enfermos são abençoados, acariciados, abraçados; em todas as
viagens apostólicas os Papas sempre se querem encontrar com eles e dirigir-lhes
uma palavra, confortá-los. E podíamos continuar dando mais exemplos da
solicitude materna da Igreja pela grande maioria dos já nascidos.
Creio que não passará pela cabeça de ninguém
(talvez tenha ocorrido a Nietzsche, mas não se trata de uma cabeça propriamente
recomendável) dizer que se trata de uma obsessão e que a Igreja não pode estar
sempre a insistir no mesmo. Ora a verdade, como é patente a todos, é que
as pessoas na sua etapa embrionária e nascitura não têm, repito, não têm um
ínfimo da atenção, solicitude e diligência por parte da Igreja que todos estes
outros. O Santo Padre num Angelus referiu, e
muitíssimo bem, que tinha ficado com o coração ferido ao ver na TV os mil e tal
mortos, entre os quais muitas crianças, num ataque na Síria. Mas não lhe
sangra, e se sangra não poderá dizê-lo também?, os mais de mil mortos num só
dia trucidados em Itália e em França? Porque não depositar uma coroa de flores
e celebrar Missa à porta de um Hospital ou de uma clínica onde se dizimam bebés
– é impopular, não é? Mas estou
em que é de toda a justiça. Porque não convocar um dia de jejum e oração
universal pelos 50 milhões de pessoas abortadas anualmente (falo só dos
cirúrgicos)? Por que não receber sobreviventes de abortos falhados e falar
disso? e mulheres que abortaram e que publicamente dizem do seu arrependimento?
e matadores em série de embriões e nascituros que foram convertidos pelos
obcecados fanáticos? e os predadores homossexuais que foram curados? e os
casais desfeitos por causa da contracepção que em virtude da aprendizagem dos «métodos» naturais reencontraram o amor e o equilíbrio? e os estilhaçados por «tratamentos artificiais» que para conseguirem ter filhos mataram uma data
deles e não tiveram sucesso vindo depois a encontra-lo na Napro technology? Os
cristãos que se têm empenhado nesta missão evangélica são misericordiosos,
tomam a seu cargo as pessoas, acompanhando-as como o bom samaritano que lava,
limpa, unge, levanta o seu próximo com pureza evangélica sabendo que Deus é
maior que qualquer pecado. Pela Graça de Deus são capazes aquecer os corações
das pessoas, de caminhar na noite com elas, de dialogar de descer às suas
noites, nas suas trevas, sem perder-se. Não se limitam a acolher e receber as
pessoas mas procuram novos caminhos saindo de si mesmos e indo ao encontro de
quem abandonou a Igreja, ou nunca a frequentou ou lhe é indiferente ou mesmo
hostil E fazem-no com grande audácia e coragem.
Porque é que se pode falar, como uma insistência
desusada em tantos outras questões morais tais como mundanidade, carreirismo,
maledicência, cobiça, etc., e não nas outras? Qual o contexto?
Os Papas João Paulo II e Bento XVI que celebraram com
grandes festejos, incendiando os corações no amor a Jesus Cristo, os encontros mundiais
da juventude sempre consideraram que havia o contexto adequado para falar do
aborto, da defesa da vida. Hoje, pelos vistos, nega-se, apesar dos pedidos dos
jovens e casais, o que parecia adquirido e vem-se a público lamentar a
discordância e acoimá-la de obsessão. Isto sim, é uma novidade. Que se anuncie
primeiro Cristo e o Seu Amor não o é, sempre foi assim, e se alguém nos quiser
persuadir do contrário teremos de lhe dizer com toda a reverência que anda
muito enganado. E lembrar-lhe que muitos, muitíssimos por o fazerem são presos,
escorraçados, vilipendiados, agredidos e presos.
Para terminar, convirá atender a que importa
muito ter em conta as circunstâncias. Quando Hitler se propunha a invadir a
Inglaterra seria totalmente absurdo que os cristãos aliados desembarcassem na
Normandia de sorriso rasgado e olhar afectuoso conclamando amigos e irmãos,
Cristo ama-vos muito e é o vosso Salvador. Se assim tivesse sido o mundo hoje seria nazi.
Também quando Portugal esteve preste a ser dominado
inteiramente pelo comunismo, depois do 25 de Abril, o que nos valeu foi um
Cardeal, chamado Karol Woityla (futuro João Paulo II), que em Roma teve uma
conversa longa, com o então Bispo de Aveiro e ciente do perigo terrível em que
estávamos convenceu o prelado português de que só nos poderíamos salvar se a
Igreja saísse à rua liderando o povo. Essas manifestações encabeçadas em quase
todas as dioceses por Bispos não saíram propriamente com um rosto amável proclamando animadamente Jesus ama vos. O verdadeiro amor misericordioso exigiu carrancas e
urros que contivessem os portadores da ideologia intrinsecamente perversa. À
honra e glória de Cristo. Ámen.
S. João Paulo II, rogai por nós.