Alexandre Martins, Público, 15 de Setembro de 2015
Funcionária judicial de um condado norte-americano
recusa-se a autorizar casamentos entre pessoas do mesmo género, desafiando a
decisão do Supremo Tribunal dos EUA
A funcionária quer ser uma excepção por causa das suas
crenças religiosas
A nova heroína dos mais conservadores dos conservadores
norte-americanos regressou esta semana ao trabalho, depois de ter passado
quatro dias na prisão por se ter recusado a pôr a sua assinatura nos papéis de
casamentos entre pessoas do mesmo género. Kim Davis, uma funcionária judicial
do estado do Kentucky, garante que vai continuar a desobedecer à decisão do
Supremo Tribunal dos EUA, mas diz que não vai impedir os seus adjuntos de
validarem os casamentos – ainda que tenha levantado outro problema para os
tribunais resolverem nos próximos tempos.
Davis, de 44 anos, regressou na segunda-feira ao seu
gabinete no tribunal do condado de Rowan, no estado do Kentucky, onde é a
principal responsável pela validação de vários actos públicos – de casamentos a licenças de veículos automóveis,
passando pela organização das listas eleitorais. Foi eleita para essa função no
ano passado e assumiu o cargo em Janeiro deste ano, ao fim de duas décadas como
braço direito da antiga responsável – a sua mãe.
Mal chegou ao tribunal depois de quatro dias na cadeia e
de uma semana de descanso, leu uma declaração perante jornalistas e
manifestantes a favor e contra o casamento gay,
que se acotovelavam à porta do tribunal do condado de Rowan: «Amo os meus adjuntos
e odeio o facto de eles terem sido apanhados no meio disto. Se algum deles
sentir que deve emitir uma licença não autorizada, não farei nada contra eles.»
No tribunal onde manda Kim Davis só há um funcionário que
tem obedecido ao Supremo, que em finais de Junho legalizou o casamento gay em todos os estados do país. Chama-se Brian Mason, e no
mesmo dia em que Davis regressou ao trabalho, pôs a sua assinatura nos papéis
que selaram o casamento entre Shannon e Carmen, duas mulheres que mantêm uma
relação há 23 anos.
Enquanto o casal recebia os papéis das mãos do
funcionário, perante as câmaras de televisão, os aplausos dos amigos e os
assobios dos que se opõem ao casamento gay,
Kim Davis estava fechada no seu gabinete, com as cortinas corridas.
O único problema é que o documento entregue por Brian
Mason a Shannon e Carmen não tem a assinatura de Kim Davis, que é a principal
responsável pelo tribunal do condado. Para contornar essa questão, as
autoridades do Kentucky alteraram o texto, retirando o nome de Davis e
sublinhando que o casamento é válido em cumprimento de uma ordem judicial
federal.
Mas, como Davis fez questão de frisar na sua declaração,
esse remendo federal pode estar longe de ser uma solução pacífica: «Qualquer
licença sem autorização que eles emitam não terá o meu nome, o meu título nem a
minha autoridade.»
E reforçou o seu apelo a que lhe seja concedido um
estatuto de excepção, devido às suas crenças religiosas: «Será que o nosso
Estado não é suficientemente grande, compassivo e tolerante para encontrar uma
forma de acomodar as minhas profundas convicções religiosas?»
Até agora, todos os tribunais a que Davis recorreu têm
respondido de forma inequívoca a essa pergunta com um rotundo «não».
No dia 3 de Setembro, o juiz do Kentucky David Bunning,
filho de um antigo senador do Partido Republicano e nomeado para o cargo pelo
ex-Presidente George W. Bush, deixou bem claro que Kim Davis só tem duas
opções: ou cumpre a ordem do tribunal, ou terá de procurar outro emprego.
«A nossa forma de governo não sobreviverá a não ser que
nós, como sociedade, concordemos em respeitar as decisões do Supremo Tribunal
dos EUA, independentemente das nossas opiniões pessoais. Não há dúvidas de que
Davis é livre para discordar da opinião do tribunal, tal como muitos outros
americanos discordarão, mas isso não a isenta de cumpri-la. Admitir o contrário
equivaleria a estabelecer um precedente perigoso.»
Antes da decisão do juiz Bunning, já o tribunal de
recurso do Sexto Circuito tinha dito a Kim Davis que uma coisa é a sua crença,
outra coisa é a sua responsabilidade enquanto representante do governo: «Não é
defensável que o titular do cargo no condado de Rowan, independentemente da
pessoa que o ocupa, possa negar-se a agir em conformidade com a Constituição
dos Estados Unidos.»
O caso de Kim Davis tem sido aproveitado por alguns
candidatos à nomeação pelo Partido Republicano na corrida à presidência dos
EUA, mas as sondagens nacionais indicam que uma larga maioria da população
concorda com as decisões dos tribunais. Segundo a sondagem mais recente, do
jornal Washington Post e da estação ABC, 63% dos inquiridos
consideram que Davis deve assinar as autorizações apesar das suas crenças
religiosas; outros 16% concordam, mas dizem que a funcionária não deve ser
presa por se opor ao Supremo.
A mesma sondagem indica também que o caso de Kim Davis
pode não ser suficiente para relançar o debate sobre o casamento gay nos EUA, apesar da visibilidade
mediática e do apoio manifestado por alguns dos candidatos Republicanos, como
Mike Huckabee e Ted Cruz.
Para além da natural oposição entre os eleitores do
Partido Democrata, a sondagem do Washington
Post e da ABC revela um
indicador curioso: a maioria dos Republicanos que apoiam a funcionária do
tribunal do condado de Rowan dizem que vão votar em Donald Trump, um candidato
que se pôs ao lado da decisão do Supremo Tribunal.