Eliana de Castro, Fausto Mag. 13 de Dezembro de 2015
Esqueça o trivial. Feminismo, cultura pop, cantoras mainstream, assuntos sobre os quais fala frequentemente. A filósofa americana Camille Paglia tem muito mais a oferecer, considerando que é uma das intelectuais mais interessantes em actuação no debate público mundial. A gama de assuntos que domina, sempre com uma fala enérgica e rápida, enfeitiça até os seus oponentes. Sim, porque a ensaísta, professora de humanidades e estudos dos media da Universidade das Artes de Filadélfia, não economiza nas frases viscerais – quando não ríspidas – na hora de expor os seus pensamentos. Sejam eles sobre arte de vanguarda, pintores, escritores ou cineastas, Paglia fala com eloquência e profundidade sobre tudo: de Anthony Van Dyck a George Lucas, passando por Andy Warhol e T.S. Eliot. Com exclusividade para a jornalista Eliana de Castro, Camille Paglia fala sobre a Arte na pós-modernidade, explorando a intervenção religiosa ao longo da história, a contemplação na era das tecnologias e a possível saída para uma educação com menos intolerância por parte das religiões. Simplesmente imperdível!
Tradução: Gustavo Filippi.
Camille Paglia |
Camille Paglia: A arte vanguardista de oposição, que atacou o establishment cultural, político e religioso, nasceu na insurreição do alto romantismo, no fim do século XVIII (1700s). Esse movimento dissidente contou com diversos grandes heróis, que fizeram enormes sacrifícios por ele, suportando até a fome e o ridículo. Entre eles, temos os pintores Courbet, Monet e Jackson Pollock. No entanto, na minha opinião, a vanguarda encerrou-se com Andy Warhol, que teve grande influência sobre mim nos meus tempos de faculdade. Quando a Pop Art abraçou a propaganda comercial e as estrelas de Hollywood, a fórmula oposicionista da vanguarda já estava morta e acabada. O chamado «pós-modernismo» nasceu depois da Pop Art. É um termo que rejeito com toda a força, pois considero-o totalmente desprovido de sentido. Não existe essa causa de pós-modernismo. Continuamos na era do modernismo, que começou no início do século XX, com o cubismo de Picasso, o dadaísmo de Duchamp e o expressionismo alemão. Tudo aquilo que se pretende pós-moderno já estava contido e definido em «A Terra Desolada», de T.S. Eliot, com a sua paisagem estéril e coberta de fragmentos desconexos do passado cultural.
Então porque se deu o título pós-modernismo?
Camille Paglia: O pós-modernismo como fenómeno é um subconjunto do pós-estruturalismo, que se valeu da linguística antiga e ultrapassada de Ferdinand de Saussure para postular que tudo o que sabemos (ou pensamos saber) é mediado pela linguagem. Essa alegação absurda – que pode ser facilmente rebatida com a simples observação do quotidiano de escultores, pintores e dançarinos, todos fundamentados no universo material – foi difundida nas universidades nos anos de 1970 e hoje em dia envenenou também o mundo da arte. O pós-estruturalismo é uma postura de ironia cínica, «desconstruindo», desestabilizando e alegando o tempo todo que qualquer obra de arte, em última instância, subverte a si mesma. O pós-estruturalismo nega que exista qualquer ordem ou sentido na história – o que é manifestamente falso quando examinamos a evolução dos estilos na História da Arte. Por exemplo, o neoclassicismo como reflorescimento do humanismo greco-romano constitui uma refutação óbvia dos clichés pós-estruturalistas.
Quais foram as outras influências?
Camille Paglia: O pós-modernismo também foi impactado pela Escola de Frankfurt de análise da cultura popular – outro sistema maçante e fora de moda, criado na década de 1930, antes mesmo do nascimento da televisão! A Escola de Frankfurt, baseada no marxismo, é repleta de suposições ofensivas sobre os media modernos: ela postula que a grande massa do público comum é estúpida e passiva, e, por isso, é presa fácil da lavagem cerebral operada por impérios dos media conspiradores e malignos. Essa é uma visão estúpida da cultura popular. A verdade é exactamente o oposto: as pessoas escolhem o que gostam – no cinema, na televisão e na música – e votam nisso com o seu dinheiro. Os impérios dos media são operações comerciais que buscam apenas o lucro. Assim, os próprios impérios dos media é que são passivos contra as forças externas – e não as pessoas, que detêm o poder real. Tanto a Escola de Frankfurt como o pós-estruturalismo são arrogantes e elitistas, impregnados de desprezo pela gente comum que alegam defender.
E quais são os resultados disso?
Camille Paglia: O resultado final de quatro décadas de pós-modernismo permeando o mundo da arte é que, hoje em dia, existem pouquíssimos trabalhos interessantes e importantes sendo feitos no campo das belas artes. A ironia era uma postura ousada e criativa quando Duchamp a adoptou, mas hoje é uma estratégia inteiramente banal, esgotada e tediosa. Foi ensinado aos jovens artistas que deveriam ser «cool» e «hip» e, assim, dolorosamente autoconscientes. Eles não são estimulados a serem entusiasmados, emotivos e visionários. Eles foram privados da tradição artística por um cepticismo defeituoso em relação à História, que lhes foi ensinada por pós-modernistas ignorantes e solipsistas. Em resumo, o mundo das artes não renascerá até que o pós-modernismo desapareça. O pós-modernismo é uma praga para a mente e para o coração.
Com a tecnologia transformando a vida moderna, não deveria haver mais tempo disponível para a contemplação?
Camille Paglia: A revolução industrial produziu diversos mecanismos mágicos de economia de trabalho, cruciais para o avanço das mulheres na sociedade moderna. Por exemplo, a máquina de escrever, criada no século XIX (1800s), permitiu que as mulheres trabalhassem em empresas nas quais os homens sempre haviam sido os escribas, escrevendo com pena e tinta. As mulheres, com as suas mãos pequenas e maior destreza, tornaram-se especialistas em máquinas de escrever. Num primeiro momento, o emprego de secretária – antes domínio exclusivamente masculino – foi muito libertador para as mulheres, que passaram a poder sustentar-se e deixaram de ser dependentes do seu pai ou marido. Por isso é tão irónico que na metade do século XX o emprego de secretária tenha sido denunciado como uma armadilha de baixos salários para as mulheres, que já naquele momento aspiravam a posições de chefia e de poder na empresa.
Há outros «aparelhos mágicos»?
Camille Paglia: Outros aparelhos extraordinários para economizar trabalho são a máquina de lavar e secar automática, que libertaram as mulheres da tarefa de lavar roupas manualmente, um processo muito lento e exaustivo. Mas hoje isso também se tornou uma espécie de armadilha, uma prisão no isolamento dos lares burgueses, já que que as mulheres da era agrária desfrutavam da solidariedade do grupo na hora de levar a roupa para lavar nas margens do rio. De facto, foram exactamente o alegre burburinho e a cantoria de jovens lavadeiras que acordaram o náufrago Odisseu na costa da Feácia, no poema épico de Homero.
De alguma forma, eles tornaram-se paradoxos?
Camille Paglia: Esse padrão de tecnologia moderna, que chega como um presente libertador mas acaba por se tornar uma maldição aprisionadora, é exactamente o que ocorreu no mundo digital. O computador pessoal libertou-nos da máquina de escrever, e a internet trouxe-nos o milagre da comunicação global instantânea. Contudo, em toda a parte, a classe profissional tornou-se escrava dos seus computadores e iPhones, que se intrometem constantemente na nossa vida. Em vez de ter mais tempo para a contemplação, nós temos menos. Não há pausa, descanso ou possibilidade para activação e cultivo de um ritmo interior, já que somos bombardeados por trivialidades impulsivas de todos os lados. Estamos condenados a um estado perpétuo de ansiedade nervosa e sobressaltada. As redes sociais tornaram-se um vício generalizado, especialmente entre os jovens, que precisam verificar os seus iPhones constantemente ao longo do dia. Não há dúvidas de que, sob o impacto da tecnologia digital, o cérebro humano está sendo remodelado de maneiras ainda obscuras. A informação explodiu, mas temos apenas dados puros, sem uma visão ou reflexão mais ampla. A pergunta permanece: haverá espaço para a arte no futuro digital?
O sentido religioso da humanidade está enfraquecendo? A religião ainda tem força para inspirar a arte?
Camille Paglia: Apenas os intelectuais míopes do Ocidente acreditam que a religião está perdendo força. A crença religiosa está-se intensificando no movimento evangélico do protestantismo, que se está expandindo por nações outrora inteiramente católicas, incluindo o Brasil. E o fundamentalismo islâmico, com a sua minoria jihadista e fanática, também está crescendo por todo o mundo. É certo que as denominações principais do protestantismo, como os episcopais e os presbiterianos, estão perdendo importância, consoante as suas congregações se tornam ricas e elitizadas e, portanto, «sofisticadas» demais para demonstrar fervor religioso. Mas existe uma longa história de revivalismo na religião, momentos em que uma crença apaixonada se manifesta de forma emotiva e incendeia tudo ao seu redor. Por exemplo, o «Grande Despertamento», que varreu os Estados Unidos no século XVIII e começo do século XIX (1700s e 1800s).
A verdade é que o humanismo secular, que começou com o avivamento da cultura greco-romana no renascimento italiano, tornou-se estéril e niilista. Em alguns momentos, o humanismo secular ofereceu a arte como substituta da religião ortodoxa e puritana. Mas os intelectuais de hoje, intoxicados pelo jargão distorcido e pretensioso do pós-estruturalismo e do pós-modernismo, não acreditam mais na arte. Eles não acreditam em nada e, com isso, criaram um vácuo cultural preenchido apenas pela cultura popular, que, infelizmente, ao longo das três últimas décadas, decaiu em qualidade e profundidade. Embora eu seja ateia, respeito imensamente todas as religiões e considero os símbolos e crenças religiosos tremendamente inspiradores. A religião possui uma dimensão metafísica crucial, uma visão do universo e da existência humana que não aparece de forma alguma nos conceitos políticos limitados forjados pelo marxismo, que enxerga apenas a sociedade. Uma das razões da banalidade e da mediocridade de grande parte da arte contemporânea é que a maioria dos artistas já não possui um instinto para a espiritualidade.
É possível entender a arte sem entender a religião?
Camille Paglia: Muitos dos maiores marcos culturais e artísticos da humanidade foram inspirados pela religião. É literalmente impossível para qualquer pessoa entender a totalidade da arte sem respeitar também a religião. Todavia, é difícil prever se a religião será capaz de produzir arte relevante no presente ou no futuro. Em primeiro lugar, o protestantismo é iconoclasta desde o seu início: reformadores protestantes como Martinho Lutero e João Calvino acreditavam que as pinturas e esculturas das igrejas católicas eram exemplos heréticos de idolatria e que, portanto, tinham de ser destruídas. A cristandade evangélica permanece orientada pelos cânticos congregacionais endossados por Martinho Lutero (que também escrevia hinos de louvor), mas ela não abraça ou estimula as artes visuais de maneira significativa. O Islão é ainda mais conservador, com a produção de imagens ainda tão limitada quanto era no tempo dos patriarcas hebreus do Velho Testamento. Com efeito, em 2001, os fundamentalistas talibãs destruíram os colossais Budas de Bamiyan e, no início de 2015, os jihadistas do Estado Islâmico destruíram esculturas assírias ancestrais no Iraque.
Existe uma saída?
Camille Paglia: Há vinte e cinco anos, propus que as grandes religiões do mundo (Hinduísmo, Budismo, Judaico-Cristianismo e Islão) fossem incluídas no cerne do currículo educacional de todos os países. Todo o mundo estudaria os principais textos, a arte, a arquitectura e os locais sagrados de cada religião. Essa é a única maneira de alcançar um entendimento verdadeiro da história e dos povos do mundo. No entanto, se a minha proposta algum dia for colocada em prática, ela provavelmente será derrotada em duas frentes. Os conservadores religiosos fariam forte objecção a outras religiões recebendo o mesmo status que a sua, e os esquerdistas se oporiam ao ensino de religião numa sala de aula, entendendo-o como uma violação do seu rígido dogma secular. O desdém sarcástico que tantos intelectuais seculares expressam pela religião é uma estupidez que minou a imaginação de jovens artistas aspirantes em toda a parte. Existe apenas uma solução, que permanece inalterada desde os tempos de Sócrates: cada indivíduo é responsável pela sua própria educação e instrução.
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