«Há demasiadas mãos sujas com a iniquidade, com a exploração dos fracos ou com as conjuras de interesses. E isto acontece porque há mãos limpas e atadas pelo passivismo, pelo deixar correr, não querer comprometer-se, ter medo do que poderá acontecer. E estas mãos são também dos católicos praticantes.»
Jorge Ortiga, A. P.
Homilia na Eucaristia de Domingo de Páscoa da Ressureição de Jesus
Em tempo de risco de um grande colapso social, o testemunho do grande pensador russo Aleksandr Zinoviev proporciona-nos a verdade da Páscoa nos tempos que correm, quando afirma:
«Te suplico, meu Deus, trata de existir, ao menos um pouco para mim, abre os teus olhos, suplico-te! Esforça-te por ver: viver sem testemunhas é para nós um inferno! Por isso, eu faço um alarido e grito: meu Pai, suplico-te e choro: existe!»
Sim, o mundo hodierno, mesmo que pretenda negá-lo, necessita de Deus. Esta é a sua verdadeira necessidade! Se a história do Ocidente foi construída a partir de Deus, a minha prece, neste dia e perante a maldade humana, é o regresso de Deus ao mundo.
Como acontecerá? Pela presença de testemunhas. E se estas não existirem estamos ou caminhamos para um autêntico inferno onde tudo se torna ininteligível e perde sentido. Urge, por isso, mostrar não só que é possível ter fé, mas que é obrigatório que isso aconteça.
Deste modo, às portas do Ano da Fé, o Papa Bento XVI na Carta Apostólica Porta Fidei provoca-nos, dizendo: «precisamos de descobrir os conteúdos da fé professada, celebrada, vivida e rezada» (n.º 9). E relembra que foi pela fé que Maria aceitou ser a mãe do Messias; foi pela fé que os apóstolos deixaram tudo para seguir Mestre; foi pela fé que acreditaram na Ressurreição de Cristo; foi pela fé que foram pelo mundo inteiro a anunciar o Evangelho; foi pela fé que os discípulos formaram a primeira comunidade cristã fundada na comunhão, ensino, partilha e oração; foi pela fé que os mártires morreram outrora perante os perseguidores; foi pela fé que homens e mulheres consagraram a sua vida à acção missionária ao longo dos séculos; e é pela fé que somos chamados também a “correr”, dando testemunho na família, na profissão, na vida pública, no ensino e no lazer, para que mais gentes saboreiem a alegria da Ressurreição, como cantávamos no Salmo Responsorial.
Neste sentido, confirmo agora publicamente a realização do Átrio dos Gentios na nossa Arquidiocese, no dia 16 e 17 de Novembro, como empenho da Igreja no diálogo com o mundo da cultura e da juventude, aproveitando a realização das duas capitais europeias (Braga e Guimarães). Não quero, nem devo antecipar-me a anunciar a temática.
Uma ideia irá estar presente: o valor da vida. Serão convidados especialistas de todas as áreas do saber para um confronto entre crentes, ateus, agnósticos ou de diferentes sínteses de pensamento. A luz do diálogo fará refulgir como a vida, desde a corrupção até à morte, se reverte dum valor sublime.
Situando-me num espaço de reflexão diferente e perante a semente de Ressurreição que o cristão deve colocar no mundo, direi que o valor da vida é inestimável para a fecharmos em horizontes de egoísmo. Nascemos e vivemos para gastar a vida. Não por meras causas pessoais ou projectos de pequenos grupos. Gastar a vida, em comum, por um mundo de justiça, igualdade e fraternidade é o testemunho que é solicitado aos cristãos.
«Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10, 10). Isto não é um programa a enterrar no túmulo. Há pedras pesadas que devem ser retiradas pra que apareçam talentos, qualidades, força de vontade, energia e capacidade de entrega. Há cristãos e comunidades “envoltas em lençóis limpos» que não ousam sujar as mãos atadas com a vida real do povo e de todo o povo, e não apenas de correligionários ou de grupos de interesse.
Há demasiadas mãos sujas com a iniquidade, com a exploração dos fracos ou com as conjuras de interesses. E isto acontece porque há mãos limpas e atadas pelo passivismo, pelo deixar correr, não querer comprometer-se, ter medo do que poderá acontecer. E estas mãos são também dos católicos praticantes.
Para terminar, iniciamos agora o Tempo Pascal. Uma oportunidade para revermos a nossa missão eclesial, como propus na Mensagem para o Tempo Pascal. Pois «as novas gerações têm necessidade de ser introduzidas na Palavra de Deus através do encontro e do testemunho autêntico dos adultos, da influência positiva dos amigos e da grande companhia que é a comunidade eclesial.» (1)
Para isso, não podemos ignorar a responsabilidade de tornar as nossas comunidades em delícia da humanidade. O que significa isso? Com a responsabilidade de todos e um compromisso sério, à semelhança da corrida de Pedro e do discípulo amado, conseguiremos ser Igreja autêntica capaz de oferecer uma força transformadora do mundo.
Jorge Ortiga, A. P.
Sé Catedral de Braga, 8 de Abril de 2012.
(1) Bento XVI, Verbum Domini, 97.