Cardeal Walter Brandmüller
4. APRENDER
COM A HISTÓRIA
Se a história, e também a história da Igreja, não se contenta com o facto de aparecer como uma pequena recolha de episódios mais ou menos edificantes – e de tanto em vez também divertidos ou escandalosos – mas pelos seus resultados pretende ter relevância teológica, então é necessário perguntar-se acerca das conclusões teológicas emergentes do debate sobre o matrimónio de Lotário II acabada de narrar. No entanto não será possível desenvolver aqui um aspecto dos acontecimentos citados, ou seja a pergunta sobre o tipo e sobre a extensão do exercício da jurisdição papal por parte de Nicolau I. Limitar-nos-emos portanto às afirmações que possam ser feitas a respeito da compreensão acerca da indissolubilidade do matrimónio.
Ernst Daßmann escreve a propósito da atitude da Igreja cristã dos primórdios sobre este ponto: «Uma consequência que dificilmente pode ser desvalorizada na configuração do matrimónio e na vida familiar cristã deu-se através da proibição absoluta do adultério que valia em igual medida para homem e mulher, como também o direito à vida da criança, também esse reconhecido sem limitações. Por princípio era rejeitado também o divórcio; todavia a este respeito o juízo variava sobre o modo em que devia comportar-se a parte cristã no caso de adultério do homem ou da mulher e se ao cônjuge traído ou abandonado deveria ser permitido um novo matrimónio». Como já se disse, no entanto, o problema colocava-se só no caso de matrimónio entre baptizados e não baptizados. Esta norma autenticamente cristã não chocava apenas com a realidade da vida na sociedade antiga mediterrânica greco-romana. Uma situação análoga resultava igualmente quando a compreensão sacramental, e portanto a exigência de unidade e de indissolubilidade do matrimónio cristão, incindível daquela, era colocada em confronto com as estruturas sociais pré-cristãs do âmbito cultural germânico-céltico.
Teve assim início também um processo no curso do qual o conceito cristão de matrimónio procurou impor-se sobre as formas e sobre as normas matrimoniais pré-cristãs transmitidas pelas populações entretanto convertidas à fé em Cristo. Considerando a posição social das pessoas envolvidas no caso tomado em exame e as dimensões do conflito, que abraçava quer a política quer a Igreja, não é exagerado considerar o debate acerca do matrimónio do rei franco uma pedra milenar no longo processo de afirmação das normas matrimoniais cristãs.
Ao ensinar as diversas etapas do processo, notamos que sob o aspecto fundamental, o teológico, não havia dúvidas. Mas eram grandes as incertezas acerca da aplicação do ensinamento cristão acerca do matrimónio a casos concretos, que continuavam a apresentar-se numa situação social caracterizada pela tradição pagã.
De facto, a este propósito, encontramos, bispos e sínodos que acreditavam ter o poder de dissolver matrimónios e de consentir outros novos, exactamente como aconteceu no facto apenas descrito. Esta observação poderia levar-nos a recordar uma fórmula forjada pela canonística iluminista: «Olim non era sic», antigamente não era assim.
Aplicado ao presente: «Antigamente existia uma autorização para voltar a casar depois do divórcio». Haverá, portanto, um motivo que impede, na situação actual e perante as dificuldades pastorais do presente, determinar uma posição já tomada no passado é admitir uma práxis «mais humana» – como hoje se diria – do divórcio e de novo matrimónio?
Coloca-se deste modo uma pergunta de grande peso teológico. A sua importância emerge quando lembramos que já no âmbito da teologia ecuménica se argumentou de forma análoga. Não se poderia – esta é a questão naquele âmbito – convencer mais facilmente a Igreja ortodoxa à reunificação se se voltasse ao estado de relação entre Oriente e Ocidente antes das excomunhões de 1054?
Já em meados do século XVII, além disso, foi chamado em causa – mais precisamente pelos teólogos da assim chamada ortodoxia luterana e da escola de Helmstädt, mais próxima de Melancton – o modelo de reunificação do «consensus quinquesaecularis», ou seja, do retorno à situação da doutrina da fé é da igreja vigente nos primeiros cinco séculos a respeito da qual hoje não existiriam controvérsias.
Ideias verdadeiramente fascinantes! Mas será que oferecem uma chave para resolver o problema? Só em aparência. Não foi por acaso que a história as ignorou e a sua legitimação teológica se apoia sobre pés de barro. A tradição, no sentido técnico e teológico do termo não é uma feira de antiguidades onde se possa escolher e adquirir determinados objectos ambicionados!
A «traditio –paradosis» é, em vez disso, um processo dinâmico de desenvolvimento orgânico conforme – seja-me permitida a comparação – ao código genético ínsito na Igreja. Trata-se no entanto de um processo que não encontra correspondência adequada na história profana das formas sociais humanas, nos estados, nas dinastias e assim por diante. Exactamente como a Igreja é uma sociedade «sui generis» não objecto de analogias, também as suas escolhas de vida não são comparáveis, «sic et simpliciter», com as das comunidades puramente humanas e mundanas.
Aqui são decisivos os dados da Revelação divina. Desta resulta a indefectibilidade da Igreja, ou seja o facto de que a Igreja de Cristo, no que respeita ao seu património de fé, os seus sacramentos e a sua estrutura hierárquica fundada sobre a instituição divina, não pode ter um, desenvolvimento que coloque em perigo a sua própria identidade.
Sempre que se tome a sério na fé a acção do Espírito Santo, que habita na Igreja e que, segundo a promessa do Divino Mestre, a guiará até à verdade toda inteira, aparece como óbvio que o princípio «olim non erat sic» não pertence à estrutura da Igreja e, portanto, não pode ser determinante em relação a ela.
Mas se os sínodos acima mencionados, então, efectivamente autorizaram Lotário II a voltar a casar, não seria também aquela decisão guiada pelo Espírito Santo? Não seria talvez uma expressão da «traditio»?
A isso responde a pergunta sobre a forma concreta e a competência daqueles sínodos. É verdade que eles não tomaram decisões doutrinais, nem emanaram leis, e todavia, pretenderam julgar, e isto não em matéria puramente jurídica, mas sim sacramental. No caso examinado aqueles sínodos de facto não eram livres, e dada a pressão exercida pelo rei, deviam indubiamente ser considerados de parte ou até mesmo corruptos. A sua dependência de Lotário II levou a uma condescendência tal acerca dos desejos do rei, que levou os bispos até a violar o direito e a corromper os legados pontifícios.
Tendo em conta as circunstâncias e outras irregularidades, era evidente que aqueles sínodos tinham feito tudo menos administrar a justiça. Exactamente deste género de experiências é que derivou a norma de direito canónico que retira aos tribunais eclesiásticos territoriais a competência para as causas respeitantes aos detentores de poder máximo do Estado e indica como único foro competente o tribunal do Papa (Código de Direito Canónico, cânone 1405). No caso ilustrado, acrescenta-se como ulterior critério decisivo a valoração negativa, sem cumplicidades, do Papa sobre tais sínodos, sobre o seu modo de proceder e sobre o seu juízo final. Não se pode portanto pensar sequer remotamente que semelhantes assembleias possam ser um lugar onde colher a tradição autêntica e vinculativa da Igreja.
É certo que não só os concílios gerais mas também os sínodos particulares podem formular a «traditio» de forma vinculante. No entanto podem fazê-lo apenas na medida em que correspondam eles mesmos às exigências quer formais quer de conteúdo da tradição autêntica. Isto, no entanto, – é importante sublinhar – não era o caso no que respeita às assembleias de bispos aqui examinadas.
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