terça-feira, 17 de março de 2015


Cardeal Müller:

Subtil heresia: separar doutrina e práxis



Esta foi sempre a convicção dos padres da Igreja: que a teologia inicia e, em certo sentido, nasce e se faz na liturgia, na adoração do mistério de Deus e na contemplação do Verbo feito carne. Começando por São Basílio de Cesaréia que no seu memorável tratado sobre o Espírito Santo vê exactamente na liturgia a ocasião e o lugar propício da autêntica reflexão humana sobre incompreensível teologia
economia da nossa salvação. Se nós, teólogos e teólogas, todos os dias temos, ao serviço dos mistérios da fé, a nossa inteligência, as qualidades próprias e o fatigante trabalho, temos, na verdade, antes de tudo isso, necessidade do seu Espírito, da sua inteligência divina que fortifica as nossas pobres buscas humanas. Na liturgia compreendemos melhor como a teologia é fundamentalmente a contemplação do Deus do amor.

Devemos, porém, tomar consciência da exigência e da responsabilidade da inteligência da fé, que de modo especial é confiada aos teólogos e às teólogas, que trabalham na Igreja, pela Igreja e em nome da Igreja. Na Igreja, com o seu trabalho intelectual, realizam uma vocação bem precisa e uma exigente missão eclesial.

A fé cristã, de facto, não é uma experiência irracional. Somos chamados a acolher o convite e o dever, que exprime Pedro, de estarmos «sempre prontos a dar uma resposta a quem vos pede a razão da vossa esperança» (1Pd 3, 15). A teologia perscruta, num discurso racional sobre a fé, a harmonia e a coerência intrínseca das várias verdades da fé que surgem do único fundamento da revelação de Deus uno e trino. O mistério imperscrutável de Deus, na economia da salvação e por meio desta economia do Verbo encarnado se oferece também à nossa inteligência. Nós, teólogos, somos os guardiões e promotores desta inteligência da fé.

Na mediação cristológica Deus se oferece à nossa razão também na inteligibilidade da sua auto-revelação. A Comissão, com os seus debates e discussões, por meio dos estudos e das reflexões, é um lugar privilegiado de empenho comunitário no dar razão da nossa esperança.

A especificidade da Comissão Teológica Internacional consiste no facto de que ela é chamada a perscrutar as importantes questões teológicas ao serviço do Magistério da Igreja, em particular da Congregação para a Doutrina da Fé. Nesta dimensão, penso que podemos extrair uma indicação para o nosso «fazer teologia». A teologia não é nunca uma pura especulação ou uma teoria isolada da vida dos crentes. Com efeito, na autêntica teologia não existe nunca um isolamento ou uma contraposição entre inteligência da fé e a pastoral ou a práxis vivida da fé. Pode-se afirmar que tudo é pensamento teológico, todas as nossas investigações científicas tem sempre uma profunda dimensão pastoral, seja a dogmática, a moral ou as outras disciplinas teológicas, tem sempre uma dimensão pastoralmente própria. Como ensina o Concílio Vaticano II, todo o conhecimento de Deus é bom se é feito em referência ao fim último do homem, para a sua salvação. A sagrada doutrina não é uma página morta, mas, especialmente na especulação dogmática toca sempre aquilo que é decisivo para o caminho da Igreja, que é o caminho da salvação.

Toda divisão entre a «teoria» e a «práxis» da fé seria, no fundo, o reflexo de uma subtil «heresia» cristológica; seria fruto de uma divisão no mistério do Verbo eterno do Pai que se fez carne; seria a omissão da dinâmica encarnacionista de toda a sã teologia e de toda a missão evangelizadora da Igreja. Cristo, que pode ser chamado o primeiro teólogo da Escritura, o teólogo por excelência, nos diz: «eu sou o caminho, a verdade e a vida». Não existe verdade sem vida, não existe vida sem verdade. Nele está o caminho para compreender sempre melhor a verdade que se oferece a nós e se faz a nossa vida.

Podemos afirmar que o trabalho da Comissão, o seu estilo de trabalhar, é sempre caracterizado por um profundo espírito comunitário, de fraterno respeito e amizade, de uma verdadeira colegialidade nas colaborações, de troca e de diálogo. Da Comissão espera-se exemplarmente um debate teológico sereno e construtivo, no respeito do carisma do Magistério eclesial e na consciência da alta responsabilidade à qual é redireccionada a vocação dos teólogos e teólogas na Igreja.

Somos chamados a guardar o verdadeiro rosto da teologia católica constituído da mediação cristológica e eclesial da fé. O seu verdadeiro objecto a teologia não pode encontrar noutro lugar senão na fé testemunhada pela Igreja na auto-revelação de Deus na pessoa e na história de Jesus de Nazaré. Esta auto-revelação visa assegurar que «os homens, por meio de Cristo, Verbo encarnado, tenham acesso ao Pai no Espírito Santo e se tornam participantes da natureza divina» (Constituição Dogmática Dei Verbum, 2).

A relação particular da ciência teológica com a Igreja não pode reduzir-se a uma realidade meramente externa. A teologia deve antes, por sua essência, levar o contributo da problemática especificamente teológica na forma e na mediação eclesial da fé e pressupor, por outro lado, como princípios próprios, os artigos da fé testemunhados pela Igreja.





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