quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

UMA HISTÓRIA DE NATAL - Parte II


…E escondeu-se atrás de umas giestas
José Augusto Santos

Parte II

Não obstante, aproveitando o momento favorável, disse aos pais que este ano, para o Natal, preferia que lhe dessem em dinheiro o valor das prendas que pudessem vir a oferecer-lhe. Tivesse sido tal ideia apresentada noutras alturas e teria como resposta um rotundo não, dado saberem que o mais certo seria o estourá-lo pelos maus caminhos com os amigos. Mas agora estavam, por uma vez na vida, confiantes, predispondo-se a ajuda-lo a convencer os avós e os tios a fazerem o mesmo.

Apesar de para elas ser o seu menino, uma das tias e a avó muito resistiram em abdicarem da alegria que queriam ter ao verem o espanto dele quando lhe dissessem para ir com elas buscar a prenda onde a deixaram encomendada. Tratava-se de uma prenda que há muito lhe viam ser negada pelos pais, e que agora elas estavam dispostas a oferecer-lhe, por, apesar de tudo, terem notado nele a vontade de mudar, desde que fora com elas a Fátima num fim-de-semana de Setembro. É que a prenda era só uma moto-quatro… Porém, depois de ouvirem as últimas sobre ele, crendo que desta vez ele iria dar mais valor ao dinheiro e quereria agora começar a fazer o mealheiro que nunca teve, acabaram por concordar.

Aos pais caberia porem-lhe num envelope 425 euros, que era o valor da guitarra que já tinham visto numa loja de instrumentos musicais, com a qual o pretendiam surpreender, agora que viam nele o menino capaz de se integrar no Grupo de Jovens da paróquia, onde aprenderia a tocar, satisfazendo ao mesmo tempo aquela sua vontade há muito manifestada.

Uma vez obtida a concordância para que lhe dessem em dinheiro o valor das prendas, pediu para que lhe fosse dado com a maior antecedência possível. Crendo que seria para aproveitar alguma boa oportunidade à sua aplicação, todos acabaram por corresponder ao pedido.

Uma secreta alegria interior criou nele sinais que levaram os pais a aguçarem ainda mais a sua curiosidade. Tentaram por isso descortinar a eventual razão daquele seu estado, que agora se podia dizer de uma serena mas notória felicidade, mas em vão.

Dias depois, pondo os familiares tão curiosos quão baralhados por não conseguirem perceber de que forma ele poderia manter a surpresa para si mesmo se só iria abrir um dos envelopes no dia de Natal e ao mesmo tempo pedia para que lhos dessem antes, disse-lhes para colocarem o dinheiro respeitante a cada prenda em envelopes individuais e sem a indicação do valor contido, e num segundo envelope um cartão ou um bilhetinho a dizer qual seria a prenda que cada um pretendia oferecer-lhe. Ainda que nada ficassem a perceber daquilo que mais parecia um jogo de detectives, assim prometeram fazer.

Mas ainda havia mais… Ao pai pediu expressamente que fosse ele a oferecer-lhe outra prenda, uma caneta, que podia muito bem ser a esferográfica mais barata, desde que escrevesse bem, e que gostaria de a ter quanto antes, se possível no dia seguinte.

Todos estavam muito expectantes, dado que atrás de uma vinha sempre outra surpresa, chegando mesmo a perguntarem-se se aquela seria a última. Mas algo lhes dizia que não. Isto da caneta ainda os intrigava mais; devia ter outra história associada.

Recebida a caneta no dia seguinte, apresenta à mãe outro pedido: que reunisse a família num almoço no primeiro Domingo de Dezembro, dia em que muito agradecia que lhe dessem os tais envelopes.

Cada vez mais confusos, os pais começavam a sentir-se como personagens de um filme de Agatha Christie. «Mas como podia este “aprendiz de detective” criar um tal enredo, se aquela série não chegou a ser do tempo dele?», questionou sorridente o pai.

Chegara o dia de desvendar todas as surpresas. Ao receber a tia que participava com a avó na mesma prenda, lá teve que fazer um esforço para permitir que ela o cumulasse de miminhos, ele que não era nada de beijinhos…

Dado o «filme» criado, à maioria tanto lhes dava que o almoço fosse ricamente composto, com caviar e tudo, como se na mesa apenas houvesse pão com uma cebola salgada, tal era a expectativa.

Com os envelopes em sua posse, foi guardar na gaveta da secretária os que apenas continham o bilhetinho escrito. Os que continham o dinheiro, meteu-os no bolso interior do blusão, puxando o fecho para maior segurança.

Mal terminara o almoço, garantindo a todos que não demoraria a revelar tudo, pediu que aguardassem um pouco, porque tinha que ir rápido a casa de um colega devolver-lhe um livro e uns apontamentos de que estava a precisar. E para não demorar, porque naquela rua não havia estacionamento possível, pediu à prima que fosse com ele. Pegando na mochila, saíram sem demora.

Uns vinte minutos depois, regressa só a prima. Pasmados, ouviram-na dizer que o levara ao Parque das Nações, onde ele lhe disse que afinal ia demorar mais do que o previsto e que por isso ela deveria regressar, uma vez que não sabia que tempo poderia demorar.
Pelo semblante, a noite parece ter caído escura e abruptamente no interior da mãe, sabendo ela que um dos colegas da má vida morava no Parque das Nações. Um outro tipo de filme começava agora a desenrolar-se em seu pensamento. Nele via que todos acabaram sendo ludibriados. E logo nesta altura em que, depois de terem pago as propinas da faculdade, se excederam num esforço de generosidade para com ele no tocante à prenda, por terem acreditado que agora a merecia…

A pesada atmosfera adensou-se ainda mais quando a Catarina disse ao tio que fosse à gaveta da sua mesa-de-cabeceira, onde o filho lhe deixou uma carta, e a lesse diante de todos, conforme ele pedira.

Como que num grito sufocado, banhada em lágrimas e amparada pela cunhada que a tentava consolar, a pobre mãe não conteve o desabafo que parecia sair-lhe das entranhas:

– Este filho vai ser o meu fim…
O pai, não fosse a presença dos restantes familiares a quem o conteúdo da carta também se destinava, tê-la-ia rasgado sem mais, tão farto que estava de tantas promessas e tantas mentiras. O controlo que procurava manter, mais pelos presentes do que por ele mesmo, não era o suficiente para não denunciar o que no seu interior se passava, uma vez que era bem visível o tremor das mãos enquanto abria a carta.
Um silêncio que magoava apoderou-se de todos. Para melhor resistirem à última machadada que a mensagem lhes traria, sentaram-se, seguindo-se um respirar fundo da parte de alguns.
A carta era longa, de várias páginas. Começava por dizer que tinha sido escrita com a caneta que pedira ao pai como prenda, justificando a razão pela qual lhe fez a ele aquele pedido. A todos pedia desculpa pela sua ausência não anunciada, dizendo que assim procedeu para evitar a oposição que teria que enfrentar, por isso decidiu meter-se no expresso para ir ao encontro de uma pessoa que fugazmente conhecera no último dia de Outubro. E dado que às Segundas apenas tem uma aula de Engenharia Sísmica Geotécnica, só regressaria no dia seguinte à noite.
A partir daquele parágrafo, começou a descrever pormenorizadamente como tudo acontecera nesse último dia de Outubro: a caminhada com o primo pelos montes e a maldade que queria fazer àquele homem, bem como o impacto que nele teve a sua postura, o sentir-se imensamente grato por tão pouco…
À medida que iam tendo esse tão detalhado conhecimento dos acontecimentos, o estado de espírito dos ouvintes passou da noite escura para a manhã exuberante de primavera, em que o sol se apresenta pela manhã com suas potências de alegria, exultando com ele toda a natureza.
Como os lenços de papel já se tinham esgotado, até a toalha da mesa teve que servir à avó para ir limpando as lágrimas, que irromperam até no pouco emotivo tio do Fernando. E este, sequioso como os demais por ouvir o que era dito nas páginas que ainda faltavam, tirou das mãos do irmão as folhas, uma vez que a emoção o obrigava a algumas pausas, para passar ele a ler.
Aquela interrogação que os pais se chegaram a colocar sobre algum namorico, estava agora a ser respondida: o seu filho tinha-se enamorado por Deus. Isso ficou bem claro pela forma tão linda como ele descreveu tudo o que sentiu naquela Missa de Cristo Rei. O brilho nos olhos com que chegou a casa depois da primeira catequese, só agora estavam a compreende-lo, bem como o que dissera sobre uma grande ideia que trouxera dessa catequese.
Todo o jogo por ele criado estava de facto a ser desvendado como prometera, e por uma vez nesse jogo, todos acertaram no que diria a seguir sobre o destino a dar ao dinheiro, mesmo antes de o tio chegar a esse ponto da leitura.
Neste momento, o segundo leitor já se mostrava tão vencido pela emoção como o primeiro, e depois de ler a parte final, onde o sobrinho reconhecia todo o sofrimento que tinha acusado a todos, mas principalmente aos pais, rogando o seu perdão e pedindo ao mesmo tempo que continuassem a rezar por ele, como sempre fizeram, depois de uma pausa acompanhada de uma respiração profunda, pergunta ao irmão e à cunhada se ali também havia Missa aos Domingos à tarde… Ele que há 16 anos não põe os pés na igreja, desde a primeira comunhão da filha… Apesar de todos os presentes já terem cumprido esse piedoso dever de manhã, sem qualquer palavra, trocando apenas um olhar e um sorriso de cumplicidade, anuíram irem todos àquela Missa que seria para os pais do Fernando a Missa mais emotiva pela imensa gratidão que sentiam para com Nossa Senhora, a quem suplicaram durante anos e anos a conversão daquele filho…
Que grande Natal estavam já a viver! Que grande lição receberam por meio de quem não julgavam ser possível! Que efeitos viram no tio, que depois da Missa disse que no Domingo seguinte cá estariam de novo para falar com o padre no sentido de saber de alguma maior necessidade que lhe permitisse também a ele viver o verdadeiro Natal de Jesus.
Sua mãe, a avó do Fernando, estava a sentir-se como o ferro que sai da forja, que é malhado, submergido na água e volta novamente à forja, tal era a diferença e a intensidade de sentimentos a que foi sujeita. Depois da emocionante história do neto, estava a suceder-se o início da do filho… Pensando agora em todos os Natais passados, dava-se conta que, verdadeiramente, nunca o tinham vivido. Em seu lugar sempre colocaram o que fora criado pela sociedade, que nada tem a ver com o festejar o nascimento do Salvador.  
A Catarina, que já tinha comprado algumas prendas, mas para os meninos da Casa do Gaiato, voltando-se para a avó, diz-lhe, com os olhos a brilharem: − Vês, avó, como eu te dizia que não te ralasses tanto com o meu pai, porque, sendo bom, um dia haveria de mudar?
E parecendo falar mais para si própria do que para a avó, diz, sorridente e com um ar pensativo: − Agora tenho uma história real que me vai ajudar a falar aos meus meninos da catequese no Natal que Jesus quer que festejemos. E se o primo e os tios não se importarem, servir-me-ei de algumas partes da carta para «postar» no meu blogue, a ver se a mensagem do verdadeiro Natal chega a muita gente.

Sem comentários: