terça-feira, 20 de dezembro de 2011

UMA HISTÓRIA DE NATAL - Parte I


…E escondeu-se atrás de umas giestas
José Augusto Santos

Parte I


Nos Santos, uma vez que às Segundas-feiras apenas tem uma aula à tarde, o Fernando, ao saber que os primos e as tias também lá iam, convenceu os pais a permitirem a sua ida à terra.

Naquela Segunda-feira, que foi o último dia de Outubro, ao regressarem da feira, o Fernando sugeriu ao primo que fossem dar uma volta pelos montes, como ele muito gostava. Com um sorriso brincalhão, responde às advertências da tia: – Sim, tia, nós sabemos, os lobos podem-nos comer… –, e lá seguiram, acabando por irem até aos Picotos.

No regresso, da barragem tomaram o caminho dos Agros, e mais abaixo viram um homem a arranjar a terra a umas couves. O casaco, que tinha pendurado num carvalho junto ao caminho, deu logo ao Fernando a ideia para fazer uma maldade ao homem. Mesmo sabendo que o primo não era dessas coisas, que era certinho demais para o seu gosto e até se tornara beato ao ponto de ajudar à Missa, disse-lhe para pregarem uma partida ao velho, escondendo-lhe o casaco para verem a sua cara quando desse por falta dele.

O primo, conhecendo aquele pobre homem, a quem toda a má sorte parece ter batido à porta e por isso o ar de velho que aparentava, sabendo que a doença o impedira de garantir o sustento da família, propôs-lhe então uma outra brincadeira, dizendo-lhe: − Basta olhar para o senhor para ver que comparativamente a ele tu és rico, eu diria até que és muito rico. Se quiseres ver a sua cara de espanto, põe-lhe então nos bolsos o troco que recebeste dos nossos gelados, e escondemo-nos para ver a sua reacção.

Vendo que o homem estava a terminar o trabalho, assim fizeram, e esconderam-se atrás de umas giestas.

Quando ia a pegar no casaco, o pobre viu que as mangas tinham uma dobra na ponta, e achou estranho…

Ao desfazer uma das dobras para o vestir, vê, com grande surpresa três moedas de um euro cairem ao chão. Em seu ar de espanto, poderia ler-se a interrogação: como é isto possível? Olhando em redor, sem ver nem ouvir ninguém, a não ser uns passarinhos que cantavam um pouco mais desviado, guardou as três moedas, para ele, três preciosas moedas. Quando desfaz a dobra da outra manga, pareceu ter recebido um choque: nela estava uma nota de cinco euros.

Olhando de novo em toda a volta, acabou por concluir que por ali não havia vivalma. Esmagado pela emoção, cai de joelhos em terra, e de mãos postas e olhar voltado para o céu, diz em voz alta, enquanto as lágrimas pareciam sair-lhe de uma nascente:

− Ó meu Deus, ó meu Deus!... Vós ouvistes os meus lamentos, a minha tristeza por nem pão hoje ter para dar aos meus filhos e inspirastes uma boa alma a socorrer-me nesta aflição. Hoje já posso fazer uma canjinha à minha mulher… Fazei, Senhor, que eu seja merecedor das Vossas Graças! Obrigado, meu Deus, obrigado!

Os dois jovens pareciam nem respirar a presenciarem uma realidade que só lhes parecia possível nos filmes. Parecia que até o simples pestanejar lhes dificultaria a atenção com que estavam a receber aquela tão simples e ao mesmo tempo tão grande lição.

Depois daquele sentido agradecimento a Deus, o homem permaneceu por algum tempo naquela posição, em silêncio, de cabeça baixa, queixo encostado ao peito, enquanto as lágrimas lhe iam caindo de forma mais compassada. 

Aquele jovem que só queria pregar uma partida, esforçava-se agora por conter a emoção que pudesse denunciar a presença deles atrás das giestas. Sentindo-se completamente arrebatado pelo quadro desenrolado diante de si, parece ter sofrido um choque que fez romper a carapaça que apenas permitia ver nele um jovem sem sentimentos e que só se sentia bem a fazer algumas travessuras.

Regressado a Lisboa, os pais começaram a estranhar o seu comportamento, muito mais calmo, e a acompanhá-los à Missa ao Domingo…

Os dias foram passando e os pais do Fernando começaram a ficar algo apreensivos com o filho. Perguntavam-se a si mesmos se teria sofrido algum desgosto de amor, por algum namorico que eles mesmos nem conheciam, ao verem-no mais caseiro, sem sair com os amigos… Bem tentaram saber o que é que andava a passar-se com ele, mas o Fernando, sabendo que seria difícil os pais acreditarem na mudança que nele se estava a operar, desviava sempre a conversa.

No Domingo de Cristo Rei, lá estava ele na Missa a acompanhar os pais. As palavras que ouviu do padre, quando dizia que só se poderia celebrar verdadeiramente a festa de Cristo Rei do Universo quando Lhe abrissemos completamente as portas do nosso coração para que Ele aí reinasse em primeiro lugar, recebeu-as o Fernando como proferidas pelo próprio Jesus. E ao seu pensamento voltaram as imagens daquele episódio da aldeia, que tanto o marcaram.

Da homilia, as palavras pareciam-lhe luminosas e a luz que as acompanhava perpassava todo o seu ser, causando-lhe uma espécie de arrebatamento pelo Divino, algo difícil de descrever. Nunca ele tinha experimentado aquele género de sensações. Era uma coisa estranha, algo verdadeiramente novo. Maravilhado, perdera como que a noção do tempo, enquanto a Missa ia decorrendo.

A determinado momento, o diácono já preparava o altar. Em silêncio – como toda a assembleia –, saboreava agora aquela melodia que mais parecia estar a ser executada pelos anjos, tão belas, tão doces eram as vozes dos poucos jovens que compunham o coro, numa perfeita simbiose com o som majestoso do órgão. De olhos fechados, pensou que provavelmente estaria no céu, mas a fria razão disse-lhe que não, que estava apenas a Saborear o sagrado.

Aquela celebração, a mensagem que sentiu ser-lhe dirigida pelo novo Amigo – assim ele passou a sentir Jesus – gerou nele o desejo ardente de não mais faltar a uma Missa ao Domingo.

Consciente daquilo que com ele se estava a passar, olhando para o adolescente e jovem que fora até então, logo pensou no corte que tinha que fazer com os amigos que só pensavam em «curtir», amigos para quem um fim-de-semana sem bares e discotecas seria pior do que estar doente. Foi nesse momento que viu, com tristeza e muita vergonha, que também ele fazia parte desse estilo de vida… Mas como estava decidido a não perder aquela tão serena quão exultante alegria, centrou a sua atenção apenas no que tinha de positivo naquele momento.

Alegrou-se, por isso, ao pensar na feliz consequência que veio a ter aquela que seria uma brincadeira de mau gosto, quando propôs ao primo esconderem o casaco do pobre homem, havia três semanas atrás.

Na cabeça dele, se por um lado a calma passou a ter parte no domínio das suas atitudes, por outro havia como que um frenezim de pensamentos novos, de vontades, de ideias. A lúz que parece te-lo invadido na Missa do dia de Cristo Rei, trouxera-lhe também um sério desconforto, ao lhe permitir ver com clareza tudo o que em si tinha acumulado. E como o Mal não perde uma única oportunidade, aproveitou essa nova e clara visão que ele passou a ter de si mesmo para tentar garantir a continuidade do domínio sobre a sua alma, incutindo-lhe pensamentos negativos, através dos quais lhe eram insistentemente lembradas todas as suas grandes misérias, simples estratégia do Mal para o levar a não acreditar que poderia ser bom.

Percebia agora claramente que tinha contra si uma força que se opunha à vontade adquirida de se emendar definitivamente. Sentindo que precisava de algum tipo de apoio para lidar positivamente com estas novas realidades, ao ouvir falar na catequese de adultos na paróquia, dirigiu-se à igreja para saber se ainda poderia inscrever-se, vendo nisso a oportunidade de retomar o caminho deixado em criança, logo que fez a primeira comunhão.

Por coincidência, soube que um dos grupos ia ter catequese naquele mesmo dia, às 21h30, e que seria uma questão de lá voltar a essa hora e falar com o catequista. Regressou a casa com o pensamento num dado novo: o de que bastava estar mais atento aos sinais para ver que estava no bom caminho. E um desses sinais viu-o na forma como foi acolhido pela senhora que o atendeu, a Fernanda, com uma simpatia que não está acostumado a ver nas pessoas.

À noite, ao se apresentar na sala para falar com o catequista, foi de imediato integrado no grupo. A forma tão afectuosa como foi recebido, viu-a como sendo mais um sinal…

Se os pais já andavam tão positivamente surpreendidos pela sua grande mudança, mais surpreendidos ficaram ao ouvirem do filho o relato da sua entrada na catequese de adultos e do quanto lhe agradou o grupo e o próprio tema tratado. O que eles não souberam foi da ideia com que saiu dessa primeira catequese, nem do momento de sofrimento que ainda iriam viver por causa da forma como o filho faria as coisas.


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