sexta-feira, 24 de setembro de 2010

A Primeira República e Fátima

Ecclesia

“Os eventos de Fátima adquirem a sua particular relevância – embora transcendam a situação concreta em que ocorrem – no contexto das transformações em curso em Portugal e na Europa da época (…). Assistia-se, por toda a parte, a profundas transformações de ordem existencial. Estava em curso a revolução industrial, dando origem a burguesias bem diferenciadas (…). Como a história é o lugar da criação dos contextos de sentido, as visões do mundo desses segmentos da população, em correspondência com a sua concreta existencial, tendem a afirmar-se como dominantes, com vontade de apagar todas as demais mentalidades que se lhes opunham ou se revelem contrárias (...).

Numa primeira fase, a república trava uma batalha aberta contra a Igreja no campo político e jurídico. A luta centrou-se à volta de duas principais questões: a criação das “associações cultuais” e as pensões a conceder ao clero. O afrontamento entre o Estado e a Igreja foi aqui aberto e directo. Se o Estado afrontou a Igreja, a Igreja afrontou o Estado1 (…).

A questão não era, todavia, unicamente política, mas sócio-cultural. Não se tratava apenas de substituir as estruturas políticas, mas de operar uma verdadeira mudança de mentalidades. O Estado que pretendia separar-se da Igreja, procurava a laicidade, mas para vencer as resistências que encontrava pela frente, entregava-se ao laicismo. A laicidade é um conceito que tem a ver com o Estado e não com a Igreja nem com a sociedade civil (…). É neste novo plano sócio-cultural que Fátima aparece como o principal teatro de guerra desencadeado pela Primeira República (…). A luta configura-se e a campanha desenrola-se contra Fátima no quadro destas diversas coordenadas.

Realizada a primeira “Aparição”, em 13 de Maio de 1917, logo os meios de comunicação social afectos à maçonaria, ao livre pensamento e ao republicanismo entram em acção para denunciarem o fanatismo em marcha e para alertarem os poderes políticos. Mostram-se atentos e extremamente vigilantes.

Em 13 de Agosto de 1917, segundo o jornal Liberdade (18-8-1917), o Administrador de Vila Nova de Ourém, acompanhado de um oficial da Administração, dirigiu-se a casa dos pais dos pastorinhos, procede ao seu sequestro, seguido da sua detenção na sede do concelho (…). A Aparição de 13 de Outubro de 1917 veio tornar relativamente irreversível a questão. (…) Além disso, tudo se realizava em obediência a um calendário previamente definido por Nossa Senhora (…).

Na noite de 23 de Outubro desse ano de 1917, alguns carbonários ou livres pensadores de Santarém procederam à transferência da Cova da Iria para Santarém do tronco da azinheira sobre a qual Nossa Senhora aparecera e de alguns objectos aí colocados pelos peregrinos (…)

Fátima emergia igualmente como o espaço onde se exprimia, por excelência, o conflito entre a razão e a crença, entre a ciência e a fé. Este conflito vinha já de trás (…). O argumento usado recorrentemente pelas correntes ideológicas era a lei da separação e a necessidade da sua aplicação (…).

Entre sobretudo 1920 e finais de 1924, a acção dos actores políticos torna-se mais directa, intensa e violenta. O Governador Civil de Santarém ordena a proibição da peregrinação de 13 de Maio de 1920, por ordem do ministro do interior. Entra então em acção a força armada, nomeadamente a Guarda Nacional Republicana, ocupando as estradas, de modo a impedir o acesso à Cova da Iria (…).

A capelinha das Aparições é dinamitada em 6 de Março de 1922. O Governo, nessa altura, procura investigar os autores de tão hediondo crime. A série de atentados ocorridos na sociedade, ao tempo, criava grande insatisfação entre a população (…).

O recrudescimento das medidas persecutórias dos católicos e nomeadamente impeditivas da peregrinação à Cova da Iria davam entretanto origem a algumas expressões de medo. Não obstante a afluência maciça – ou talvez por causa disso –, os poderes constituídos procuram opor-lhe um dique que cortasse o acesso, colocando um aparato policial à volta de Fátima. Certo temor se terá infiltrado nos espíritos de alguns, paralisando os seus movimentos (…).

A repressão exercida sobre os católicos parece atingir, por ocasião do 13 de Outubro desse ano de 1924, um dos seus pontos mais intensos e violentos. Se para os republicanos se tratava de impedir a perturbação da ordem pública, cujo receio desejavam afastar, para os católicos em causa estava, segundo as Novidades (13-10-1924), a defesa de uma Igreja livre do ódio e da sombra blasfema dos seus inimigos. Mas enquanto a repressão era anunciada, agia-se depois discretamente (…).

Assiste-se, nessa altura, a uma autêntica arrancada não contra o regime, mas contra as suas arbitrariedades. O movimento desenvolve-se a partir do Centro Católico. Terá chegado a hora de não se consentir mais a brutalidade do poder, tida como “mais uma afronta à consciência do país” (…).

As manifestações de protesto eram de molde a conduzir à proposta de uma de duas possíveis hipóteses de resolução do conflito, a contestação directa do regime político vigente ou o recurso à desobediência civil. A primeira via de saída foi adoptada pelo jornal O Dia (13-10-1924). Contesta, todavia, a posição seguida por este jornal a generalidade da imprensa católica, aconselhando antes a desobediência civil, no estrito campo da luta pela substituição da legislação (…).

A Igreja mostrava-se, nessa altura, disposta a submeter-se à lei comum, liberta de leis opressoras, fossem elas de separação, fossem elas concordatárias, nomeadamente quando celebradas em liberdade diminuída ou interpretadas arbitrariamente pelo Estado. O grande desígnio a alcançar seria o da liberdade da Igreja, desígnio que a mesma Igreja não alvejava tanto como quando se sentia aprisionada (…).

O Estado desenvolvia uma política anti-religiosa, permeada de agressividade e de violência (…). Três presidentes do Governo mostraram-se particularmente activos na repressão dos eventos de Fátima, com intervenções directas, António Maria Baptista, António Maria da Silva, que durante algum tempo sobraçou igualmente a pasta do Interior, e Alfredo Rodrigues Gaspar (…).

Portugal conheceu, de facto, nos inícios do século XX, um dos combates mais acesos travados na Europa contra o Catolicismo.

Excertos de uma conferência proferida em Coimbra por António Teixeira Fernandes
__________
(1) António Teixeira Fernandes, Afrontamento Político-Religioso na Primeira República, Porto, Estratégias Criativas, 2009.


Entrevista do Professor António Teixeira Fernandes
à Agência Ecclesia (Extractos)


FÁTIMA E A I REPÚBLICA

António Teixeira Fernandes aborda o «combate travado pelo Estado, contra a Igreja, durante a Primeira República». Na época em análise, Fátima «serve de palco e de detonador do despertar da consciência católica».
Segundo António Teixeira Fernandes, autor da introdução ao terceiro tomo do quarto volume da Documentação Crítica de Fátima (DCF), Fátima foi “o maior teatro de guerra” deste combate. O terceiro tomo abrange o período de 13 de Outubro de 1924 a 31 de Dezembro de 1925.
“O Estado desenvolvia uma política anti-religiosa, permeada de agressividade e violência”, aponta. Na época em análise, “Fátima serve de palco e de detonador do despertar da consciência católica”, assinala Teixeira Fernandes.

Agência ECCLESIA – No início do século XX, em Portugal, houve uma tentativa de laicização do Estado ou de secularização da Igreja?
António Teixeira Fernandes (ATF) – Em meu entender, houve fundamentalmente uma tentativa de laicização da Igreja. O Estado que se apresenta na I República não tinha atingido a maturidade política, é um Estado que ainda se sente frágil e, portanto, tem necessidade, de forma paradoxal, da religião para poder sobreviver, embora combatendo-a para a subordinar.
Nessa medida, é um Estado não secularizado, um Estado que se arvora em igreja anti-Igreja, que não pretende verdadeiramente uma separação, porque a Lei da Separação (1911) não é, em rigor, de uma separação que conduzisse à liberdade, mas uma lei de separação hostil, pondo a Igreja em estado de total sujeição. O objectivo não consistia, no fundo, somente em secularizar a própria Igreja como ainda em laicizar a própria sociedade civil.

AE – Este é um processo que começou na Monarquia Constitucional ou estamos perante uma ruptura total?
ATF – O problema vem já de longe, diria mesmo que dos finais do século XVIII, mas desenvolve-se sobretudo ao longo do século XIX. O Liberalismo viu sempre com alguma suspeição a intervenção da Igreja no poder político, só que a primeira fase do Liberalismo – expresso, por exemplo, em Alexandre Herculano e em Almeida Garrett - não promove nenhuma guerra contra a Igreja, deseja somente o seu afastamento das questões políticas. Deseja uma Igreja destemporalizada, reduzida ao espiritual, deixando exclusivamente aos homens o que diz respeito às coisas seculares.
A partir de meados do século XIX, sobretudo com a “Geração de Setenta”, há uma certa alteração da orientação liberal, porque se a primeira fase foi mais voltada para a defesa da liberdade, esta segunda geração está mais interessada num projecto de igualdade social e de democracia. É a geração de Antero de Quental e Eça de Queiroz.
Estão aqui presentes os ideais da Revolução Francesa, mas também o socialismo utópico francês, com a influência nomeadamente de Proudhon. Por outro lado, há uma reorientação do próprio Republicanismo, que aceita e transfere para Portugal o positivismo comteano, empenhando-se na criação de uma sociedade dessacralizada, secularizada e laicizada.
Nesta altura, aparece já fortemente a tendência para secularizar todos os actos centrais da vida humana: o nascimento, o casamento, o funeral, etc.
Na parte final da Monarquia Constitucional, os republicanos e não só – influenciados nomeadamente pela Maçonaria e pelo livre pensamento – pretendem essa secularização total. Aquilo que acontece a 5 de Outubro (1910) não será mais do que o culminar de tendências anunciadas e inclusive muito afirmadas em congressos anteriores.

AE – Há aqui um jogo de forças entre Maçonaria e Igreja?
ATF – Sem dúvida alguma, só que a Maçonaria nunca aparece como organização: influencia toda a acção legislativa, a actividade partidária e os próprios actores políticos, sobretudo os republicanos, mas actua somente através de personalidades concretas. Obviamente que também existe a Carbonária… Essa teve a sua influência, de outro tipo, e desempenhou papel diferente, embora complementar.

AE – O braço armado da Maçonaria?
ATF – Não será propriamente o braço armado da Maçonaria, embora, na prática o possa ter sido. Na década de 90, a Maçonaria Académica deu origem à Carbonária que é diferente da Maçonaria. Esta é de tendência bastante elitista. A Carbonária é a Maçonaria popular que pretende a revolução no campo de batalha, através da força das armas e não unicamente das ideias.

AE – No contexto da I República temos também as aparições de Fátima…
ATF – A República instituída, querendo secularizar a vida social, mostrou-se contrária a todo o Cristianismo de feição popular. Por outro lado, em vez desse cristianismo queria a ilustração do povo, contrapondo à actividade da Igreja a acção de uma escola laica. Por esta via, se pretendia criar um homem novo para uma sociedade nova, entrando por uma via que não podia deixar de ser autoritária. A Primeira República não teve em vista um projecto democrático…
Alguns dias antes da aprovação da Lei da Separação, Afonso Costa – na sede do Grande Oriente Lusitano – afirmou que «em duas gerações, Portugal terá eliminado completamente o Catolicismo, que foi a maior causa da desgraçada situação em que caiu». (como se afirma no jornal Tempo - 27 de Março de 1911). A afirmação aparece repetida inúmeras vezes pelos jornais católicos durante a perseguição que foi movida pela República a Fátima.

Esta é uma República politicamente frágil e a partir do momento em que se deram as aparições, desde 13 de Maio de 1917, o governo sentiu-se um pouco perturbado, porque viu que esse movimento poderia pôr em causa o próprio regime político, para além da sua carga ideológica.

AE – As pessoas ansiavam por algo melhor, mas a República não lhes deu isso?
ATF – Para além de tudo o mais, a República lançou o país numa crise enorme, em especial a partir da entrada na I Guerra Mundial. A ida dos nossos militares para o estrangeiro, onde de forma inglória perdiam a via, criou uma grande insatisfação. Por outro lado, a carestia de bens de todo o género estava na origem de algumas sublevações populares por todo o país, em especial nos anos 20. A situação do ponto de vista social era difícil para o próprio governo.
Neste contexto, os ataques às aparições de Fátima tinham um duplo objectivo: por um lado, temia-se que esse fenómeno, considerado como fanatismo, contrariasse, a certa altura, o projecto da I República, que era o de ilustrar o povo, mas dentro de uma escola racionalista; por outro lado, como todo o republicanismo era gerido e movimentado por uma burguesia que, apesar de tudo, não passava de uma minoria na sociedade portuguesa (embora ganhasse as eleições), tinha-se receio de que isso pusesse em causa a estabilidade do regime.

AE – E havia motivos para temer que as aparições colocassem em causa os fundamentos ideológicos do regime?
ATF – Não digo que os pusessem em causa de forma directa, haveria que esclarecer e saber se, como intenção, as aparições teriam ou não directamente esse objectivo. Em sede de princípios, tratava-se de algo contraditório em relação à situação vigente, mas a mensagem de Fátima possui obviamente um alcance mais vasto.
Para um poder político que se sentia fragilizado, qualquer movimentação popular, qualquer perturbação desta natureza – não podemos esquecer que se deslocavam a Fátima milhares e milhares de pessoas – seria grandemente perturbadora.
Até à peregrinação de 13 de Outubro de 1917, o poder político central não teve, no entanto, nenhuma intervenção directa, que se conheça. Ali estiveram presentes, segundo os jornais, entre 50 a 75 mil pessoas, o que constituía um fenómeno em relação ao qual o próprio governo não podia sentir-se indiferente. Sabe-se que a população católica ultrapassava os 99,00, segundo os dados dos Censos de 1900.
A Carta Pastoral publicada pelos bispos a 24 de Dezembro de 1910 apela para a grande maioria portuguesa que é católica. Em Março seguinte, 1911, os bispos começaram a ser perseguidos. Deu-se primeiro a expulsão do bispo de Porto, D. António Barroso. Posteriormente, foram atingidos os restantes prelados, com a sua expulsão das respectivas dioceses. O que aconteceu é que as pessoas não se levantaram para defenderem os seus bispos…

AE – Perante estes factos, onde estavam os 99% dos católicos?
ATF – Eram, na sua grande maioria, católicos anónimos e anémicos, sem grande vitalidade religiosa. Tinham uma crença mais devocional do que doutrinal ou teológica. Não havia, por parte dos bispos, uma grande preocupação na formação do clero e do laicado. Os católicos ficaram alheados e serenos nas suas casas perante a perseguição, e não tomaram qualquer posição, com excepção de algumas pequenas e breves manifestações à chegada ou partida, sem qualquer efeito prático.

AE – A catequese praticamente não existia
ATF – Os bispos não tiveram, de facto, o apoio dos católicos, mas parece que colhiam o que haviam semeado. A situação portuguesa foi muito diferente da francesa. Em 1905, com a lei da separação em França, o governo «caiu» devido à mobilização dos católicos. Em Portugal, os bispos partiram todos para o exílio – onde permaneceram cerca de dois anos - e nenhum governo caiu. Após estes factos, os bispos começaram a apelar – através de tomadas sucessivas de posição - para a unidade dos católicos, divididos nas suas comodidades e nos seus interesses de índole política. Os prelados sentiram então a necessidade de uma maior catequização.
Por volta de 1917, começou-se a chamar a atenção aos leigos para lutarem no interior do Centro Católico, o núcleo a partir do qual se devia desenvolver uma acção unificada contra a legislação anticatólica da República. Defendeu-se sempre o princípio de que o poder vem de Deus.

AE – Ainda no âmbito das aparições de Fátima, a Comunicação Social estava dividida.
ATF – A divisão era bastante clara. Havia, por um lado, os jornais de orientação católica e, por outro, os jornais de inspiração da Maçonaria, do Livre Pensamento e do Republicanismo. Dois ou três jornais entram na luta muito directamente. Um deles era o jornal «Mundo» (órgão oficial do Partido Democrático de Afonso Costa) e o outro era o Livre Pensamento (órgão oficial do próprio Livre Pensamento). As duas organizações que entram na luta de forma directa contra Fátima são: «Associação do Registo Civil» e a «Federação do Livre Pensamento». Actua também a Maçonaria, mas de forma discreta ou encoberta. No campo da imprensa católica, surgiam também algumas discordâncias no que concerne a interpretação do fenómeno das Aparições.

AE – Chegam a fazer comícios na Cova da Iria
ATF – Em Novembro de 1917, poucos dias depois das aparições, realizou-se um comício na própria Cova da Iria e outros em localidades próximas de Fátima. Os jornais católicos usam de uma grande prudência. Esta advém do facto da Igreja não aceitar, logo à partida, a existência das aparições, sem possuir acerca delas suficiente fundamentação. Era necessário garantir e provar que eram autênticas. Esse trabalho estava por fazer. Entretanto, as forças que lhes eram adversas aproveitavam para fazerem a sua campanha.
Apesar daquela prudência, alguns jornais católicos entram, entre si, em alguma disputa. O jornal A Ordem, que era um órgão católico – onde trabalhava Domingos Pinto Coelho, que estava também ligado a um Partido Monárquico – deu origem a uma certa controvérsia, lançando-se alguma dúvida sobre as aparições de Fátima. Mas a polémica, aberta ou subentendida, travou-se principalmente entre jornais católicos e outros que lhes eram contrários.
É curioso verificar que o grande eco das aparições foi dado pelos jornais contrários à Igreja porque criticavam abertamente Fátima e possuíam um alargado raio de difusão.

AE – A Igreja só reconhece as aparições na década seguinte. Há alguma explicação para esta demora?
ATF – Foi entretanto criada a diocese de Leiria e nomeado D. José Alves Correia como seu bispo. Após a entrada deste, no início da década de 20, o prelado constituiu, de imediato, uma comissão presidida pelo Pe. Manuel Formigão. A partir de 1926-1927, D. José Alves Correia começou a insistir para que se ultimasse o processo. O povo havia já “confirmado”, com a sua permanente presença, a sua veracidade.

AE – As notícias negativas despertaram a atenção
ATF – Os jornais Republicanos, da Maçonaria e do Livre Pensamento, foram aqueles que fizeram o eco maior – ainda que pela via negativa - das aparições de Fátima. No entanto, quem fez vingar as aparições foi a fé e a perseverança do povo. Este nem sequer esteve à espera e atendeu à prudência da Igreja. Entre 1920 e 1924, houve uma tentativa, por parte do governo, de impedir, com recurso à Guarda Nacional Republicana, as peregrinações ao local. Os jornais católicos vêm-se mesmo forçados a fazer o convite à desobediência civil. Alguns, por exemplo O Dia, dizem mesmo: «vamos lutar contra o governo», mas, na sua generalidade, esses jornais limitam-se a defender: «Não vamos lutar contra o regime, mas contra a legislação». Mesmo quando as peregrinações eram proibidas, o povo não deixava de ir a Fátima, arrostando com todos os sacrifícios e perigos. Foi o sentimento de fé do povo que impôs Fátima. D. José Alves Correia entendeu bem esse sentimento do povo e, com base nas provas que lhe foram apresentadas acerca do carácter sobrenatural do fenómeno, autenticou as aparições.

AE – As aparições de Fátima ajudaram a derrubar a República?
ATF – Essa relação causal não se poderá fazer. Não foram, possivelmente, os republicanos que fizeram cair a monarquia, terão sido os próprios monárquicos. Talvez fossem os próprios republicanos que fizeram cair a República, pela sua incapacidade de governação e de desenvolverem a democracia. Quem faz tal crítica é o próprio Raul Proença.

AE – A rapidez do pacote legislativo foi prejudicial.
ATF – Contrariou o povo e não foi ao encontro da sua sensibilidade, num completo desconhecimento das preocupações que o afligiam e das aspirações que o animavam. A governação terá conduzido ainda o país para uma situação que era bastante insustentável (Bancarrota, carência de bens de primeira necessidade, atentados por toda a parte, uma guerra que não terminava…). O desgoverno encaminhava o país para a derrocada da própria República. Quem saiu vencedor de tudo isto foi o projecto de Fátima… Não era certamente um projecto humano.

AE – Apesar da Capelinha das Aparições ter sido dinamitada.
ATF – É verdade. Foi dinamitada a 6 de Março de 1922. Numa situação de grande perturbação social, Fátima aparece como um suplemento de alma, como um sol radioso, dando esperança ao povo português. Não existem bombas que destruam as verdadeiras esperanças de um povo…

AE – Uma esperança que surgiu depois da dúvida inicial
ATF – Acredito que alguns tenham sido influenciados por alguns jornais bem tendenciosos. No entanto, é necessário dizer que para se ser católico não é indispensável admitir a autenticidade das aparições. A Revelação de Cristo está completa em si mesma. Para além disso, a própria Igreja não as reconheceu logo. Houve uma prudência enorme por parte dos bispos. Havia, além disso, um espaço alargado onde se podia exprimir o juízo de cada um, desde que aceite o que é central ou essencial na Revelação, que permitia às pessoas um grau enorme de liberdade para acreditar, duvidar ou negar. Essa era a situação vivida na altura e, possivelmente, não será diferente a situação que existe ainda hoje.

AE – De um «altar duvidoso» passou-se para um «altar do mundo»?
ATF – Verificou-se isso mesmo. Há um jornal dos inícios dos anos 20 que diz: «Fátima é o altar erguido no coração das multidões». Primeiro, começou por ser um altar erguido no coração das pessoas. Depois passou a ser um altar erguido no coração de Portugal. O Cardeal Gonçalves dirá mais tarde que não foi a Igreja que impôs Fátima, mas foi Fátima que se impôs à Igreja. É curioso verificar a ligação que muitos estabelecem, na década de 20, entre a mensagem de Fátima e a concreta situação portuguesa, não tendo esses verdadeiramente em conta o alcance universal da mensagem.

AE – Fátima já é consagrada antes da consagração, em 1930, pelo bispo de Leiria?
ATF – Ainda na década de 20, já o governo tem preocupações urbanísticas e em relação ao bom acolhimento a dar aos peregrinos. Em 1927, os jornais criticam o crescimento urbano desordenado em Fátima. O Ministro das Obras Públicas criou então uma comissão para apresentar um plano de urbanização daquele espaço. Tratava-se de uma resposta à manifestação de fé da população.

AE – A visita do Papa Paulo VI ao Santuário de Fátima foi o culminar deste processo ascendente de credibilidade?
ATF – A credibilidade foi acentuada também pelos Papas anteriores. A visita do Papa Paulo VI a Fátima, essa teve um impacto enorme. O próprio Papa, antes de sair de Roma, vinha com alguma apreensão, mas regressou completamente transformado. Ele nunca terá presenciado uma explosão de fé popular como na Cova da Iria. Nem na Praça de S. Pedro, em Roma… Quando chegou ao Vaticano veio imediatamente à janela, onde falou aos fiéis, de modo exuberante.
(...)

AE – A capelinha das aparições, a azinheira e a fé do povo é o que resta de 1917?
ATF – A capelinha e uma azinheira, mas não aquela sobre a qual Nossa Senhora apareceu aos pastorinhos. A fé do povo, essa foi-se transformando e rejuvenescendo. O peregrino actual, embora escasseiem os estudos, será completamente diferente do daquela época. Começa a parecer, com grande relevância, o peregrino em busca de paz interior e de sentido para a sua existência, face a uma vida que em si mesma carece de significação. O perfil do peregrino tem-se vindo a alterar, mas não existem estudos a seu respeito.

AE – A capelinha foi dinamitada. Os republicanos não pensaram cortar a azinheira?
ATF – Nossa Senhora não apareceu naquela azinheira que se encontra actualmente no recinto. Na noite de 23 de Outubro de 1917, os carbonários de Santarém foram a Fátima e cortaram o tronco da azinheira onde Nossa Senhora de facto aparecera. Só restava o tronco, porque os peregrinos haviam cortado todos os ramos para levarem consigo. Transportaram-no, assim como os elementos religiosos ali existentes, para Santarém e aí fizeram uma “procissão” ou cortejo mais ou menos macabro com esses elementos. No atentado de 6 de Março de 1922, lançaram bombas nos quatro cantos da capelinha e também nesse tronco. Nem todas as bombas rebentaram.

AE – Nem todos os republicanos eram radicais. Não existiam republicanos defensores das aparições de Fátima?
ATF – Não posso responder afirmativamente. Não tenho elementos que permitam dizer se havia ou não republicanos defensores das aparições, mas sou levado a pensar que sim, com base em dados fornecidos pela imprensa da época. Enquanto organização, movimento ou partido, sem dúvida que não… O que se poderá dizer é que a situação portuguesa era muito particular. Por exemplo, Sampaio Bruno defende que existia em Portugal um Livre Pensamento religioso e um Livre Pensamento irreligioso. Por outro lado, Brito Camacho (num livro escrito em 1925) caracteriza muito bem a situação portuguesa: «Em Portugal, com as excepções do estilo, os católicos são um bocadinho livres-pensadores, da mesma forma que os livres-pensadores são um bocadinho católicos». Uma coisa é certa, os republicanos que eram anticlericais não dispensavam para as suas mulheres e filhas a assistência religiosa. Havia neles um catolicismo escondido, porventura seriam católicos sem se reconhecerem como tais…

AE – Há semelhanças entre os tempos actuais e o período da implantação da República?
ATF – Nunca há uma reprodução das situações. O homem é sempre diferente em épocas diversas. Todavia, existem realidades, na actualidade, em vários aspectos, que poderão ser comparadas. Muitas das questões não resolvidas no século XIX e inícios de XX permanecem ainda em aberto, tanto no campo económico e político, como mesmo no domínio religioso. Também hoje em dia haverá homens com aparência de descrença que são cristãos que se ignoram.

Nota Biográfica
António Teixeira Fernandes, nascido em 1939, doutorado em Sociologia pela Universidade Gregoriana (Roma), é considerado um dos mais importantes cientistas sociais portugueses, com uma obra publicada numerosa e de grande qualidade.
Funda, em 1985, já com uma experiência de Professor Catedrático, o curso de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e mais tarde, em 1989, o Instituto de Sociologia, unindo num mesmo projecto docência e investigação, para além da criação de uma revista de sociologia.
Exerceu ainda as funções de Presidente do Conselho Científico da Faculdade de Letras, de 1987 a 1991 e de Delegado Nacional, por nomeação governamental, no Comité para a Investigação Socioeconómica Aplicada, em Bruxelas, de 1994 a 1997.


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