segunda-feira, 28 de junho de 2010

Requiem por Saramago

Padre Gonçalo Portocarrero de Almada

Não obstante as suas irreverências literárias,
nenhum cristão pode ficar indiferente
ante o passamento do Nobel português.

José Saramago morreu: paz à sua alma. Não obstante as suas reincidentes irreverências literárias, nenhum cristão, digno desse nome, pode ficar indiferente ante o passamento do Nobel português, sobretudo porque o divino Mestre encareceu aos seus discípulos o amor aos inimigos e não há dúvida que, muito embora os fiéis o não fossem dele, ele fez questão de o ser de Cristo e da Igreja.

O sincero pesar pelo seu desaparecimento, tanto mais penoso quanto carente, ao que parece, de qualquer indício de conversão, não quer dizer, como é óbvio, que se possa ignorar que a sua vida foi vivida na teoria e prática de uma ideologia anticristã. Por isso, seria despropositada, senão hipócrita, a pretensão de "baptizar" postumamente o finado militante comunista, num disparatado aproveitamento da sua notoriedade. Por isso também, seria incoerente que a Igreja oficialmente sufragasse a alma do defunto escritor, não porque não se possa e até se deva rezar por quem quer que seja, mas porque as exéquias cristãs só podem ser oficiadas aos fiéis católicos e José Saramago, decididamente, o não era. O seu a seu dono: dêem-se a cada qual as honras fúnebres que lhes são devidas, mas de acordo com as suas convicções e no lugar correspondente, também em nome do respeito devido à memória dos que já partiram.

Surpreende que, em ocasiões desta natureza, entre as carpideiras habituais do regime laico, se oiçam também algumas lamentações cristãs. Num desconcertante exercício de retórica, esses fiéis politicamente muito correctos fazem questão em homenagear a "coerência" do defunto. Mesmo ressalvando escrupulosamente as teses que o dito professou e viveu ao longo da sua vida, essas caridosas almas sentem como que uma irreprimível e pungente necessidade de elogiar a sua "postura", a sua "verticalidade", a "firmeza" das suas convicções e até, reverentemente, se dignam prestar culto à sua incensada "irreverência".

Ora a virtude ética não pode ser apreciada senão na relação com o correspondente valor, que a fundamenta: uma boa acção não é principalmente uma questão de atitude, mas a prática do bem. Quer isto dizer que a "coerência" no mal não é virtuosa, mas defeituosa e, nesse caso, o único comportamento moral digno de louvor é, obviamente, a rejeição do mal e a opção pela verdade e pelo bem. Se ter uma convicção contrária aos mais elementares princípios éticos é lamentável, muito pior é nela persistir toda a vida, porque se errar é humano, perseverar obstinadamente no mal é diabólico. A persistência é louvável no exercício do bem, mas é detestável na prática do mal: não atenua a responsabilidade moral do sujeito, antes a agrava, porque se a falta isolada merece indulgência e perdão, a consciente e voluntária obcecação no erro não é passível de tal compaixão.

Com Cristo foram crucificados dois ladrões: um converteu-se à hora da morte e a Igreja venera-o como santo, porque Jesus lhe prometeu dar, naquele mesmo dia, a glória do céu. Do outro não consta que se tenha emendado, pelo que passou à História como o "mau ladrão". Não faria sentido louvar a sua impenitência final à conta da sua "coerência" no mal, quando a única acção que o poderia ter salvo era o corajoso reconhecimento da sua culpa.
José Saramago morreu. Queira Deus que não tenha comparecido impenitente ante a Face que perdoa os contritos de coração. Paz à sua alma.


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