Inês Teotónio Pereira
Um filho é, antes de mais, uma vida. Uma vida
própria. E não se aluga nada para gerar vidas humanas, e muito menos barrigas
Vivemos na era dos direitos. Todos reclamamos
direitos, e bem, mas falamos baixinho de deveres ou de obrigações. Temos
direito à educação, à saúde, à liberdade, ao bem-estar, à segurança, à vida e
até a sermos felizes. A bitola está tão alta que se torna, na maior parte das
vezes, inalcançável – mesmo que se paguem todos os impostos. Mas o objectivo
está bem definido, e a palavra «direito» muito bem esmifrada. O século XX
trouxe-nos esta oferta generosa de direitos pela primeira vez na história da
humanidade: nunca houve tantos direitos como hoje. Bem haja o século XX!
Estando todos estes direitos definidos, e muito
bem, chegámos agora a uma nova fase de direitos, e bem mais ambiciosa. O
princípio é o mesmo: queremos ser felizes e temos direito a tudo o que nos
possa trazer felicidade. E chegamos assim aos filhos. Os filhos entraram na
categoria dos direitos, como a habitação ou a educação. Os filhos, tal como
todos os outros direitos, trazem-nos felicidade e, se queremos, devemos ter o
direito de os ter. Custe o que custar e a quem custar, porque não é justo que
haja alguém que não possa ser pai ou mãe.
As barrigas de aluguer, o novo tema fracturante que
estava de molho à espera de ser debatido, é o próximo da lista e vem responder
a este direito. O que se reclama é a possibilidade de se alugar a barriga de
alguém que esteja de tal forma frágil e vulnerável que se dispõe a alugar a própria
barriga para gerar uma vida alheia. E pronto, temos filho. Um filho que é ao
mesmo tempo de três pessoas, mas que será só de duas. Um filho que cresce
sabendo que não foi gerado pela mãe que conhece, mas por outra que alugou a
barriga para o gerar. Um filho que é resultado da reclamação de um direito dos
pais de serem pais. Um filho que é, na verdade, um capricho que se cumpre para
alcançar uma ideia de felicidade.
Mas a verdade é que ninguém tem direito de ter
filhos. Os filhos não são ordenados ao fim do mês, uma taxa moderadora que
temos o direito de não pagar, ou um rim que alguém nos cede para podermos
viver. Um filho é, antes de mais, uma vida. Uma vida própria. E não se aluga
nada para gerar vidas humanas, muito menos barrigas. O único direito que existe
é o direito de os filhos terem pais. Os pais, esses, não têm direitos, mas sim
o privilégio de ter filhos. Um privilégio que nos obriga a prescindir de
direitos, de egoísmos, que nos faz renunciar ao bem-estar e que nos vincula
para sempre ao dever de cuidar e de proteger outra vida.
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