quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Três tipos de materialismo


Os doze dias do Natal acabaram há pouco e, com eles, ondas de materialismo cru e desejo insaciável por coisas. Como se isso não bastasse, os analistas de mercados estão preocupados que tudo isto não seja suficiente para fazer mover a economia, enquanto os moralistas preocupam-se que o materialismo seja de tal forma que não deixa espaço para mais nada.

Há aqui algumas coisas a analisar. Se a nossa economia está mesmo tão dependente assim de vendas de Natal, até aqueles de entre nós que acham que normalmente os mercados cumprem da melhor maneira o papel de distribuir bens e serviços devem parar para pensar.

Talvez seja por causa de todos os outros sinais preocupantes na América hoje em dia, mas dou por mim menos preocupado com esta fúria de compras do que no passado. No geral é apenas mais um ano em que, apesar de a sua mulher já ter vinte pares de sapatos e um armário cheio de roupa, acha que «não tem nada que vestir». Pela minha experiência, as mulheres acham relaxante fazer compras enquanto os homens preferiam uma tarde inteira de tortura a um serão no centro comercial. É verdade que os homens também têm desejos por ferramentas e aparelhos electrónicos, mas todo este consumismo, apesar de espiritualmente perigoso, empalidece quando comparado com outras formas de materialismo moderno.

Isto porque surgiu uma segunda forma de materialismo na nossa sociedade que considero exponencialmente mais preocupante: A redução de toda a actividade humana a um conjunto de comportamentos animais. Não é preciso procurar muito até encontrar um artigo qualquer sobre um antropologista ou um primatologista que «explicou» os comportamentos dos homens e das mulheres em relação às compras, ligando-os às necessidades dos caçadores-recolectores antigos (por alguma razão as planícies de África há 2 milhões de anos costumam entrar no quadro).

As mulheres, claro está, tinham que procurar comida e lenha enquanto os homens deambulavam por aí a afiar lanças para proteger o grupo. Não nego que haja algumas bases materiais para muitos dos comportamentos humanos que emergiram por processo evolucionário. Mas em relação à razão pela qual as pessoas fazem coisas hoje, estas «explicações» estão na mesma divisão que a astrologia. Para além disso, passou-se muita coisa nos últimos dois milhões de anos.

Não somos os primeiros a culpar as forças materiais pelos nossos comportamentos. Em «Rei Lear», o vilão Edmund, filho ilegítimo de um pai devasso, diz a verdade sobre estas desculpas, e sobre si mesmo:

Essa é a maravilhosa tolice do mundo: quando as coisas não nos correm bem - muitas vezes por culpa dos nossos próprios excessos - pomos a culpa dos nossos desastres no sol, na lua e nas estrelas, como se fôssemos perversos por necessidade, tolos por compulsão celeste, velhacos, ladrões e traidores pelo predomínio das esferas; bêbedos, mentirosos e adúlteros, pela obediência forçosa a influências planetárias, sendo toda a nossa ruindade atribuída à influência divina... Óptima escapatória para o homem, esse mestre da libertinagem, responsabilizar as estrelas pela sua natureza de bode. O meu pai juntou-se à minha mãe sob a cauda do Dragão e a minha natividade deu-se sob a Ursa Maior: de onde se segue que eu tenho de ser violento e lascivo. Pelo pé de Deus! Eu teria sido o que sou, ainda que a mais virginal estrela do firmamento houvesse piscado por ocasião da minha bastardização.
Como se isso não bastasse, surgiu recentemente uma terceira forma de materialismo, ainda mais radical. Começamos a ouvir falar, por neurocientistas, teóricos literários e filósofos, na crença de que o ser substancial nem sequer existe. Que não passamos de trocas de energia e matéria. Que o ser é uma ilusão.

Existem, é certo, versões mais ou menos honradas deste ponto de vista no estoicismo e no budismo, e mesmo a Bíblia recorda-nos que nada somos. Mas esta nova perspectiva é um niilismo que não conhece travões.

Nem sequer o senso comum o pára. Qualquer pessoa que tenha os hábitos filosóficos mais modestos questionar-se-á sobre quem é que alega «saber» estas coisas e por que razão acha necessário falar deles uma vez que não existe ninguém para saber ou ouvir. Não é por acaso que uma vez que a ciência, que por definição não lida com entidades como pessoas ou almas, é tida como sendo a verdade total, o sentido de nós mesmos enquanto seres começa a evaporar-se.

Estamos longe de um argumento abstracto, este arrisca-se a ter consequências negativas. Há 25 anos William Barrett, que se tornou famoso ao escrever o livro «Homem Irracional», que explicava o existencialismo numa linguagem americana, voltou-se para um problema premente. Em «A Morte da Alma» ele defendeu o ponto de vista sensato de que não olhamos para as pessoas de quem gostamos – esposos, filhos, pais, amigos – como meros mecanismos à base de carbono.

Consideraríamos monstruoso quem o faz.

Contudo é precisamente aí que começamos a encontrar-nos enquanto cultura. O aborto fácil e a ameaça permanente da eutanásia derivam do enfraquecimento da noção de que há algo de sagrado na condição humana. Paradoxalmente, governos em todo o mundo, mesmo nos países mais «avançados», encorajam a autonomia absoluta (não existe natureza humana, apenas a vontade crua – a não ser que estejamos a falar de homossexualidade, que as pessoas bem-pensantes sabem ser fixa e, por isso, um dado biológico imutável).

Simultaneamente, estamos convencidos de que o Estado moderno pode agora imiscuir-se em todas as actividades humanas, à excepção daquelas às quais impomos limites, por agora, devido a uma réstia de humanitarismo. Mas mesmo essas excepções começam a evaporar-se à medida que cresce a certeza de que os especialistas científicos sabem de coisas que significam que a maioria de nós não conta para nada.

Há muitos materialismos no mundo e, é verdade, todos são potencialmente letais. Apenas uma visão transcendente de Deus e das pessoas consegue fazer frente a esta crise. Em breve veremos se o homo sapiens herdou material suficiente dos seus antepassados nas planícies africanas para se salvar da auto-negação.

Em comparação, e dadas as alternativas, é com serenidade que encaro um pouco de compras em excesso.



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