domingo, 21 de janeiro de 2018
Xutos e Pontapés na Igreja e no Estado
Pe. Gonçalo Portocarrero de Almada, Observador, 16/12/2017
(Extractos)
Não podendo o Parlamento honrar todos os cidadãos falecidos, é razoável que reserve as suas homenagens para os portugueses que mais se distinguiram pelo seu saber e serviço à comunidade.
Há já muito tempo que não via algo tão insólito como o Parlamento aprovar por unanimidade – que, poucos dias antes, foi negada à memória de Belmiro de Azevedo – um voto de pesar pelo Zé Pedro, músico da banda Xutos & Pontapés.
(...)
Quanto ao Zé Pedro, que também não conheci pessoalmente, sempre lhe tive simpatia, porque sou da sua geração – ele era pouco mais velho do que eu – e por isso cresci ouvindo a sua música e a de muitas outras bandas, nacionais e internacionais. Soube que na sua adolescência passou, como tantos outros, por algumas experiências menos felizes e, por isso, alegrou-me sabê-lo recuperado e empenhado em ajudar jovens na mesma situação, participando com regularidade em acções de sensibilização. Sei que, como ele próprio dizia, «casou para a vida», o que no meio artístico e nos tempos que correm é bastante meritório. Foi, sem dúvida, um músico muito conhecido e querido, sobretudo se comparado com o distante patrão da Sonae. Contudo, não conheço nenhuma intervenção relevante do Zé Pedro a nível nacional, ou no estrangeiro, que justifique o voto de pesar de todos os deputados de todos os partidos com assento parlamentar. Que significa esta rara unanimidade?! É só populismo?! Eleitoralismo barato?! Pieguice nacional?! Onde pára a respeitabilidade do Estado e dos seus órgãos de soberania?!
Por este andar, quando um popular locutor da televisão render a alma ao Criador, decreta-se luto nacional e vela-se o mediático sujeito na Assembleia da República. Ou, quando um mais ou menos conhecido cançonetista, ou jogador de futebol, tiver guia de marcha para a eternidade, fecham-se as escolas e põe-se a bandeira nacional a meia-haste.
Desejo uma longa vida e as maiores felicidades a todos os artistas portugueses, bem como aos desportistas nacionais, aos intervenientes nas marchas populares alfacinhas, aos figurantes do carnaval de Torres Vedras, aos participantes nos fóruns da TSF e às idosas que fazem de público nos programas matutinos da TVI. Mas, não podendo os deputados honrar todos os cidadãos falecidos, é razoável que reservem as suas condolências para os portugueses que mais se distinguiram pelo seu saber e serviço à comunidade. Aos «Belmiros», entenda-se, que são poucos, e não aos «Zés» que, com toda a consideração e simpatia pelo músico, são aos milhares.
Jean d’Ormesson disse, em 2008, que um escritor deve evitar o azar de morrer ao mesmo tempo que alguma celebridade mediática pois, nesse caso, arriscava-se a ser por ela eclipsado. Sábias palavras premonitórias: ele próprio faleceu recentemente, horas antes de Johnny Hallyday, que atraiu a atenção da imprensa, em detrimento da vida e obra do «imortal» membro da Academia Francesa.
Infelizmente, não foram só a comunicação social e o parlamento que promoveram esta triste encenação, pois a Igreja também se prestou a isso, segundo notícia recentemente divulgada: «A morte do fundador do Xutos & Pontapés provocou as mais diversas mensagens de pesar, bem como as mais originais homenagens um pouco por todo o país. E uma delas chega-nos de Guimarães, mais precisamente da Basílica de S. Pedro do Toural. Na missa realizada no domingo seguinte ao funeral, o pároco e o coro da igreja resolveram homenagear o Zé Pedro cantando ‘Não sou o único’. O vídeo mostra como o padre, o coro e os fiéis cantam a música do Xutos & Pontapés, numa homenagem ao falecido fundador da banda rock portuguesa».
Embora o masoquismo não seja o meu forte, não me poupei ao sacrifício de ver o vídeo da infeliz actuação do canoro e dançante presbítero, paramentado a rigor, com o coro e os fiéis que tiveram o mau gosto de, em plena igreja e na missa, segundo reza a peça, cantarem uma música dos Xutos & Pontapés. Se fosse uma homenagem a um futebolista, provavelmente promoveriam um jogo no adro da igreja, ou decorariam o altar com bolas de futebol, chuteiras, bonés e bandeiras do clube em questão. Tudo, claro, em honra do defunto que, como se sabe, desfruta imenso com modinhas pegadiças e efemérides futebolísticas em sufrágio da sua alma.
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