segunda-feira, 24 de novembro de 2014
Um católico como deve ser
Heduíno Gomes
Em contraste com os católicos de salão, leigos ou padres (alguns até graduados...), sempre na televisão a bater com a mão no peito mas a esquecer os valores do cristianismo, temos católicos coerentes e discretos, que apenas aparecem na ribalta por força das circunstâncias (como também temos pessoas coerentes e discretas que não são católicas). É o caso do magistrado católico Carlos Alexandre.
Reproduzimos aqui um interessante artigo sobre a acção do magistrado Carlos Alexandre.
Carlos Alexandre: o juiz que enfrenta o sistema
INÊS DAVID BASTOS, Diário Económico 2 Ago 2014
Temido por muitos, admirado por tantos, o juiz do «ticão», que tem os principais processos de corrupção não cede a pressões.
Não gosta das «forças ocultas» e vê o combate ao crime como uma missão. Recebe ameaças mas insiste nas buscas a poderosos.
O seu refúgio é Mação, a terra que o viu nascer há 52 anos.
Há quem pense que o juiz «não tem medo», há quem diga que o controla.
Quando na passada quinta-feira, pouco depois das 9h00, os noticiários começaram a avançar que Ricardo Salgado, ex-presidente do BES, estava a ser detido, as conversas nos cafés e nas ruas de Mação voltaram a focar-se em Carlos Alexandre.
O filho da terra que tinha partido há 35 anos para Lisboa em busca de um papel central na luta contra o crime ia interrogar o todo-poderoso da banca portuguesa e os seus conterrâneos voltaram a gabar-lhe a coragem.
Vasco Estrela é há dez meses presidente da Câmara de Mação, vila ribatejana que viu nascer a 24 de Março de 1962 Carlos Manuel Lopes Alexandre, filho mais novo de José Alexandre, carteiro de profissão, e de Narcisa, reformada da indústria de lanifícios.
O autarca não pertence à geração do juiz que fez buscas a Isaltino Morais e que levou Armado Vara a julgamento mas conhece-o bem. Até porque «toda a gente em Mação se conhece», diz ao Diário Económico, e o juiz nunca deixou de visitar a sua terra-natal aos fins de semana. É aí, aliás, que consegue descomprimir das complexas investigações aos crimes de colarinho branco que acompanha e desligar-se das pressões que, aqui e ali, vai sofrendo.
Mas quem é Carlos Alexandre? Para uns, é quase um «justiceiro», um Baltazar Garzon português.
É assim que é visto pela maioria dos seus conterrâneos, por amigos e por aqueles que com ele trabalham. Para outros, é um juiz com sede de protagonismo e intuitos persecutórios.
Uma crítica que usualmente é feita nos jornais mas sempre atribuída a fonte não identificada. Poucos arriscam dar a cara para criticar o juiz que nos últimos anos tem abanado o poder e o sistema e as declarações em «on» que existem são normalmente de amigos e aliados, que lhe elogiam a obstinação e reforçam essa imagem de «justiceiro». Tanto é amado, como odiado. Mas todos lhe têm respeito, nem que seja por temerem os segredos que possa conhecer depois de ouvir milhares e milhares de escutas que são feitas a individualidades portuguesas.
Juiz titular do Tribunal Central de Instrução Criminal, conhecido na gíria judiciária por «ticão», Carlos Alexandre teve e tem em mãos há oito anos os processos mais complexos e mediáticos no combate ao branqueamento de capitais, tráfico de influências, fuga ao fisco e associação criminosa.
Quem já não ouviu falar do caso Portucale, do BPN, da Operação Furacão, do Apito Dourado, do Face Oculta ou do Monte Branco? Tudo nomes de mega-investigações da PJ e do Ministério Público que passaram pela secretária do chamado «super-juiz». Todos processos que envolvem parte da elite política, empresarial e financeira nacional.
Sobre a sua vida privada e métodos de actuação pouco se sabe.
Carlos Alexandre não se expõe.
Estudou pela telescola, cursou Direito na Faculdade de Lisboa e começou desde logo a lutar por um lugar no «ticão», onde entrou como auxiliar em 2004. Dois anos depois era titular. Percebe-se que é firme na forma como actua. Diz quem o conhece que imprime um «cunho pessoal» ao que faz, que gosta de «participar em tudo», que tem preferência por fazer inquirições e despachos de pronúncia e faz questão de fazer buscas de surpresa, pela manhã.
Foi o que fez a Isaltino Morais, que lhe abriu a porta de casa ainda de roupão.
Este «voluntarismo» é o que mais irrita os suspeitos, os advogados e até muitos colegas magistrados. Na anterior direcção do sindicato, muitos não apreciavam os seus métodos.
Um juiz discreto que enfrenta as ameaças Carlos Alexandre não dá entrevistas, raramente fala à comunicação social e evita participar em seminários.
Mantendo esta linha não respondeu às questões do Diário Económico. As poucas vezes que falou foi para se insurgir contra o que pensava serem interferências no seu trabalho e para deixar o aviso de que não cede a pressões. Foi o que aconteceu em Fevereiro de 2011, quando o Governo de Sócrates lhe baixou o «plafond» do telemóvel para 15 euros e o juiz retaliou, entregando o aparelho ao tribunal. Ou quando – estava a pronúncia no Face Oculta prestes a sair – o PS veio dizer que ele não estava a conseguir dar conta de todos os processos e era preciso indicar um segundo juiz para o «ticão».
O magistrado não gostou, fez saber através de gente próxima que as estatísticas eram falsas e insinuou, numa carta dirigida ao Conselho Superior da Magistratura, que a intenção do governo podia «ter outros fundamentos». Afastá-lo, leia-se.
Mais tarde diria à revista Ânimo que, com ele, «a verdade fala sempre mais alto», como quem diz: não vale a pena ameaçarem. E as ameaças existiram, algumas veladas.
Ainda hoje, Carlos Alexandre se lembra do dia em que a sua casa em Linda-a-Velha, Oeiras, foi assaltada e deixaram um revólver desactivado em cima da foto de um dos filhos (tem dois).
Ainda hoje se comenta em Mação o estranho atropelamento de que foi vítima a sua mulher, Floribela, natural do Alandroal.
São recentes as ameaças veladas que recebeu de Angola – fotocópias de notícias publicadas no jornal do regime que chegaram ao seu correio – por causa da investigação a Álvaro Sobrinho, ex-presidente do BES Angola.
Os amigos perguntam-lhe como consegue.
Responde que não pode ter medo, que a lei e a justiça estão acima.
«Não sei se tem receio ou não mas o que o move é o cumprimento da lei e se os dados entregues justificam uma busca ele avança», diz ao Diário Económico um procurador que trabalhou com o «super-juiz».
Um magistrado judicial que o conhece dos tempos de estágio, em Cascais, acredita mesmo que Carlos Alexandre «não tem medo» e actua como actua, afrontando poderosos, porque «tem um sentido de justiça arreigado» e uma aversão profunda «às forças ocultas».
Pronuncia mesmo perante «dúvida razoável».
Não gosta do sistema instalado, assumiu a luta contra a corrupção como missão e vive a insatisfação de saber que há muito crime que não é investigado, diz quem com ele priva.
O magistrado que defende o fim dos paraísos fiscais tem tendência para levar arguidos a julgamento mesmo que a investigação mostre apenas «dúvida razoável».
Mas a lei permite que o faça.
Acaba por ver arguidos serem absolvidos em julgamento e essa é uma crítica que os inimigos lhe fazem. O juiz responde com rigor no trabalho.
Sabe que é escrutinado à lupa e não deixa pontas soltas nos despachos, nem erros processuais.
Não tem queixas, nem processos disciplinares no CSM, apenas uma lista numerosa de pedidos de escusa de juiz.
Os advogados tentam afastá-lo. Temem-no.
Para reforçar a sua confiança pediu uma inspecção. Teve «Muito Bom».
É nesta tensão, neste limbo, que vive o «super-juiz».
Um fio da navalha que não o travou na hora de pronunciar ex-ministros do PSD, de investigar quadros do PS e da vida empresarial no Face Oculta e de aparecer de surpresa no BPN com Rosário Teixeira, o procurador com quem faz equipa em muitas operações.
Sabe que tem muitos inimigos.
Em 2006, quando comprou casa em Linda-a-Velha e quis fazer remodelações, a Câmara de Oeiras, então liderada por Isaltino, embargou a obra e encharcou o juiz – já a mexer na investigação ao autarca por fuga ao fisco – de burocracia.
No fim, conseguiu resolver a situação mas não se livrou de multas.
É entre amigos de longa data que o «super-juiz» tenta fugir à pressão diária. Muitos destes amigos nasceram em Mação. E voltamos à terra.
Não se pode falar de Carlos Alexandre sem falar de Mação.
É aqui que despe a capa do «super-juiz» e tenta ser um normal cidadão. Se é que isso é possível. Sim ou não, Carlos Alexandre tenta. Na terra, dispensa a segurança pessoal que se viu obrigado a ter quando começou a receber ameaças.
Passeia pelas ruas e participa em actividades.
Gosta de ler mas os processos complexos tiram-lhe tempo, gosta de estar em família, aprecia tradições e um bom convívio com amigos.
Mas de trabalho só fala mesmo (e pouco) com os amigos de profunda confiança. «Em Mação, veste outra pele, até costuma assumir o sotaque maçanico», conta o deputado Duarte Marques, seu conterrâneo.
Nas festas da Páscoa, faz questão de carregar o andor, como católico convicto que é, relata o presidente da Câmara, e só assuntos de trabalho o fazem faltar ao jantar dos ex-alunos do colégio, o que aconteceu este ano. Mação poderá não receber tão depressa a visita do juiz. As investigações do Monte Branco e ao BES estão no auge, operações que atingem o todo-poderoso que fez arguido a semana passada. E que prometem fazer tremer, de novo, o poder. E o sistema.
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