quarta-feira, 5 de novembro de 2014


A «cultura» e «sociologia»

cunhalo-cavaquista de Pacheco Pereira


Heduíno Gomes

Pacheco Pereira, como é sabido, dispõe de bastante tempo nas antenas do regime, que é dizer do sistema instaurado com a porca III República, que nos conduziu a onde estamos. Não é por acaso que lhe concedem esse tempo de antena.

Um dos seus programas de televisão, na SIC-N, é o Ponto Contraponto, uma espécie de Borda d’Água em formato etéreo, cheio de pretensiosismos sociologistas, isto é, de banalidades e curiosidades de almanaque. É a sua grande cultura.

Na última edição deste programa (1.11.2014), Pacheco Pereira termina em beleza com mais uns elogios à cultura do grande amor intelectual da sua vida: Álvaro Cunhal. No caso, Pacheco põe Cunhal nos píncaros como competente crítico de dança porque viu com os seus próprios olhos, calcule-se, e escreveu sobre uma encenação do ballet Spartacus, de Khachaturian! Pacheco na Roménia e seria ele o cronista ideal de serviço a louvar os dotes científicos da investigadora Elena Ceausescu!

Mas antes, nesta edição do programa, já havia feito outras. Vejamos esta, de actualidade.

Como é sabido, Pacheco Pereira, estava na área do PS, sector Mário Soares, concretamente no MASP (Movimento de Apoio Soares à Presidência). Perante a oferta de lugar como deputado, vendeu o passe ao cavaquismo, à sombra do que ascendeu no PSD e nas antenas do regime, conciliando – o que não é difícil – o seu apoio à tecnocracia cavaquista com a sua concepção de esquerda do mundo. A sua carreira política, deve-a ao cavaquismo. Na federação laranja de interesses e rivalidades, os seus amigos são os cavaquistas.

Na luta pelo poder que actualmente se desenvolve dentro do PSD, Pacheco Pereira está presente. Do lado dos cavaquistas, claro. E utiliza as suas antenas para, por tudo e por nada, atacar as outras facções, especialmente a de Passos Coelho por estar no poder. Com razão algumas vezes – o que não é difícil, diga-se de passagem – mas quase sempre na base da pura dor de corno, demagogia e má língua. Assim, tudo quanto sirva para deitar abaixo o Passos Coelho é bom. Mesmo que seja porcaria.

É o caso, na referida edição do programa Ponto Contraponto, a propósito de uma suposta censura a um «estudo» da revista Análise Social. Não vale a pena repetirmo-nos, pelo que reproduzimos o comentário de Jorge Almeida Fernandes sobre essa suposta censura com a qual o democrata Pacheco tanto se indignou no seu programa da SIC-N. Esse mesmo democrata que andou a apoiar a ditadura cavaquista sobre os militantes do PSD.

Apenas há a acrescentar que Jorge Almeida Fernandes indica o link onde o leitor pode ver as ordinarices contidas nesse «estudo», com as quais Pacheco não se importa de conviver por considerar úteis para mandar abaixo o Passos Coelho. A utilidade é o seu critério moral. Já sabíamos.


A «segunda morte» de Sedas Nunes

Público, 2014.11.02 
JORGE ALMEIDA FERNANDES

A revista 
Análise Social (AS), fundada em 1963 por Adérito Sedas Nunes e editada pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS), produziu insolitamente o escândalo da semana: censura na universidade. O director do ICS, José Luís Cardoso, retirou da circulação o último número da AS. Porquê? Um «ensaio visual» intitulado «A luta voltou ao muro» e composto por uma selecção de graffiti conteria imagens «chocantes, ofensivas e de gosto duvidoso». Diz tratar-se de uma peça «inapropriada para publicação numa revista académica» e que, por ser considerada «decorativa», não foi sujeita «a avaliação e arbitragem científica».

O «director cessante» da revista, João de Pina Cabral, acusa Cardoso de «censura» e de «ataque de lesa-ciência». Os 
graffiti em causa, argumenta, «reflectem a frustração popular que se vive em Portugal contra as políticas de austeridade». A palavra «censura» — «censura pura e dura» — espalha-se pelos blogues e comentários de leitores dos jornais.

graffito que se reproduz — numa foto do PÚBLICO — é o único imaginativo. Outros são mera grosseria. No que encerra a série, lê-se: «Nos bolsos dele / Estão os teus sacrifícios /Américo Amorim / Ricardo Salgado / Belmiro de Azevedo / Soares dos Santos / Pingo Doce / Sacrifícios / O caralho.» O «ensaio visual» pode ser lido em 
http://www.esquerda.net/sites/default/files/as_212_ev.pdf.

Os 
graffiti são um excelente objecto de estudo. O que este caso tem de interessante é colocar uma velha questão: está-se perante um estudo «científico» ou perante um panfleto «cientificamente» justificado? Que é próprio de uma revista académica e que é próprio de uma revista de combate político? Na História ou na Sociologia, há regras do ofício que não devem ser atropeladas. A linha divisória nem sempre é evidente. No caso dos graffiti da AS, a leitura parece-me inequívoca: um panfleto. Este insólito incidente e os comentários que provocou espelham o estado duma academia em que cresce o «contrabando», se procuram «temas sexy» e se perde o espírito do rigor — a chave da sua credibilidade. Se são lamentáveis as derivas do jornalismo, mais chocantes são as da academia. Falo como mero leitor das suas publicações.

Declaração de interesses: fui secretário de redacção da 
AS durante cinco anos, na era de Sedas Nunes. Testemunho o cuidado que ele punha não apenas no rigor dos estudos mas também na separação de águas entre o trabalho científico e os textos de intervenção política a coberto da «ciência». Morreria pela segunda vez ao folhear esta Análise Social.



Graffito na Avenida Fernando de Sousa, em Lisboa,
por ocasião da visita da chanceler Angela Merkel





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