Ana Maria Machado
Não faz muito tempo, você
comprou uma torradeira e, em casa, não conseguiu ligá-la. A legislação agora
exige três pitocos nos plugues dos novos aparelhos, que não servem mais nos
dois buracos da tomada de sempre. Foi preciso comprar um adaptador. Uma
chatice, mas mais seguro. Progresso tecnológico. É para o bem de todos, o
governo sabe o que faz. Mesmo quando o novo padrão é tão original quanto
jabuticaba, que só tem no Brasil. Não serve para qualquer aparelho importado
que por acaso você tivesse. E tome adaptador. Você acabou chamando um
eletricista e trocando todas as tomadas da parede. Ufa!
Pois aí vem nova surpresa.
Você nem imagina o que o Senado anda debatendo a sério, considerando a hipótese
de mudar geral. Sem ao menos reparar no ridículo da esquisitice. Se for
aprovado, vira lei. Só que, desta vez, não vai haver eletricista que dê jeito.
Discute-se uma reforma ortográfica brasileira. Brasileiríssima, que nem
jabuticaba. Ainda que sem as delícias da fruta.
«Mas não fizeram uma reforma
ainda outro dia? Para que outra?», talvez você pergunte. Vamos esclarecer. O
que se fez há pouco tempo (aliás, num processo que ainda não se encerrou) foi
um acordo ortográfico entre países de língua portuguesa. Não uma reforma. O
objetivo foi que se escreva da mesma maneira o português falado em qualquer
parte do mundo. Assim, passa-se a ter um padrão unificado em documentos
internacionais que se queira redigir no idioma. E os leitores de todos os
países lusófonos passam a se acostumar com a grafia única, que nos permitirá
ler livros uns dos outros com menos estranheza (já bastam as do próprio
vocabulário, por vezes tão diferente).
Precedido por outros acordos e
protocolos em busca desse entendimento, o processo foi amplamente discutido
durante 18 anos, em negociações entre filólogos e instituições responsáveis.
Venceu impasses e divergências de todo tipo. Foi aprovado pelo legislativo dos
países interessados. Foi assinado e promulgado pelos presidentes do Brasil e de
Portugal em 2008. Entrou em vigor em janeiro de 2009, com prazo de adaptação
estendido no Brasil até dezembro de 2012. Em Portugal, até 2016.
Sabe-se lá por que (ou por
quem), na semana antes de terminar nosso prazo oficial, entre o Natal e o Ano
Novo de 2012, a presidente Dilma resolveu prorrogá-lo. Não chegou a fazer
nenhuma diferença prática. No Brasil, como já estávamos fazendo, continuamos
todos usando a ortografia que segue o acordo — é como se escreve neste jornal e
nos livros publicados no país e como se ensina nas escolas. Todo mundo entende.
A experiência poderá, eventualmente, revelar a necessidade de pequenos ajustes.
Mas não é disso que se trata agora.
A jabuticaba que está na
Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado é outra. É uma proposta de
reforma ortográfica, para que se passe a escrever como se fala, «para
simplificar e aperfeiçoar a ortografia», de modo a facilitar a alfabetização.
Sem letras que não se pronunciam e sem duplicidade de grafia para o mesmo som.
A justificativa populista é ajudar as crianças, ensinando-as a escrever, por
exemplo, «O omen xora porqe qer caza para abitar» (sic).
Nem vale discutir os detalhes
dessa ideia estapafúrdia. Questiona-se é a premissa, em nome de uma pretensa
inclusão social.
Nada disso é necessário. O
linguista Marcos Bagno lembra que as línguas mais faladas e escritas
internacionalmente (como o inglês e o francês) têm ortografias complicadas e
nem por isso deixaram de se difundir. Não precisaram de jabuticabas
simplificadoras. Será que as crianças deles são mais capazes que as nossas?
O filólogo e acadêmico
Evanildo Bechara insta a CE do Senado a não levar adiante a proposta de
«simplificação», um equívoco talvez baseado em «amnésia ou ignorância». A
professora Marília Ferreira, presidente da Associação Brasileira de
Linguística, encaminhou aos senadores documento em que sublinha que o que
dificulta o processo de alfabetização de crianças oriundas de segmentos sociais
de pouca familiaridade e contato com a língua escrita não é a ortografia. É a
falta de uma experiência letradora significativa anterior e paralela ao
processo escolar.
Há casos em que essa vivência
falta também a muitos professores, lembro eu. Sinal de melhora: gente vinda de
um ambiente iletrado está chegando à alfabetização nas últimas décadas. Algo a
se celebrar. Mas também sinal de alerta: a formação de nossos professores
precisa ser de melhor nível, capaz de incorporar alternativas pedagógicas mais
eficientes, de corrigir eventual falta de intimidade com a cultura escrita e de
compensar desigualdades de origem. Precisa capacitá-los a alfabetizar.
Tomara que o Senado consiga
perceber isso. Mais clareza nas prioridades, gente. O remédio é qualidade na
educação. Não é jabuticaba.
Ana Maria Machado é escritora.
Originalmente
publicado no Globo em 20 de Setembro de 2014.
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