domingo, 17 de fevereiro de 2013

Fraco consolo: O buraco da agulha

Pedro Mexia

Vem em todos os sinópticos, mas escolho o de Mateus, cobrador de impostos: «E eis que se aproximou dele um jovem, e lhe disse: Mestre, que bem farei para conseguir a vida eterna? Respondeu-lhe ele: (...) guarda os mandamentos. (...) Disse-lhe o jovem: Tudo isso tenho guardado; que me falta ainda? Disse-lhe Jesus: Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu; e vem, segue-me. Mas o jovem, ouvindo essa palavra, retirou-se triste; porque possuía muitos bens. Disse então Jesus aos seus discípulos: Em verdade vos digo que um rico dificilmente entrará no reino dos céus. E outra vez vos digo que é mais fácil um camelo passar pelo fundo duma agulha, do que entrar um rico no reino de Deus».

Tive uma educação católica, e nunca me esqueci desta passagem. Nos últimos tempos, penso nela com frequência. Porque temos visto o dinheiro, que é uma coisa, tornar-se um deus. É cómodo acusar «o capitalismo» desse endeusamento, mas escritores de todas as épocas e de todas as sociedades, incluindo as pré-capitalistas e as anticapitalistas, contam que o dinheiro é um obstáculo à vida recta. Não me refiro ao dinheiro enquanto fonte de sustento, conforto, gozo, o dinheiro que todos queremos ter, porque precisamos dele; estou a pensar no dinheiro das fortunas, aquele que mantém uma relação umbilical com a cupidez e a avareza.

Quando o jovem rico pergunta a Jesus como fazer para ganhar o Céu, Jesus diz-lhe que siga os mandamentos, e acrescenta um último mandamento, que completa os outros. Os discípulos, escreve Mateus, «ficaram grandemente maravilhados» com esta resposta. Pedro pergunta: e quem seguiu Jesus e deixou tudo para trás, será recompensado? Jesus garante: «(...) todo o que tiver deixado casas, ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou filhos, ou terras, por amor do meu nome, receberá cem vezes tanto e herdará a vida eterna. Entretanto, muitos que são primeiros serão últimos; e muitos que são últimos serão primeiros». É uma recompensa material, multiplicadora, e uma recompensa espiritual, eterna. Mas o mais importante não é isso, são as últimas palavras, que têm perturbado tantos crentes e não-crentes: «muitos que são primeiros serão últimos; e muitos que são últimos serão primeiros».

O dinheiro é o combustível de uma mentalidade mal crismada como darwinismo (porque não é de todo devida ao naturalista britânico). Uma mundividência estritamente competitiva que decreta que apenas os primeiros são primeiros, estando por isso dispensados de empatia face aos segundos e aos últimos. Crimes recentes cometidos por «ricos» (gestores, banqueiros, oligarcas), mostram-nos que eles não pertencem a uma espécie diferente, mas que foram tomados por aquele frenesim de quem vive apenas da compra e venda, de acções e obrigações, dividendos e mais-valias. Não é preciso subscrever os ideais marxistas para verificar como são lúcidas as páginas dos «Manuscritos Económico-Filosóficos» em que Marx estuda o dinheiro enquanto «fetiche» que corrói as relações humanas, na medida em que lhes atribui um valor, ou antes, um preço. E isso aconteceu inclusive em sociedades socialistas, porque o dinheiro, o dinheiro-fortuna, dificulta a noção de comunidade e a compreensão de uma igual dignidade humana.

É por isso que a Bíblia está cheia de advertências quanto ao dinheiro: o sermão que declara os pobres bem-aventurados, o episódio da redenção de Zaqueu, e, claro, os paradoxos de uma divindade nascida de um carpinteiro. Em vinte séculos, essa suspeita face ao dinheiro não resistiu a grandes incoerências, mas também deu azo a propostas ousadas como o monaquismo, o franciscanismo, a condenação da usura. Há pouco mais de cem anos, surgiu mesmo um elaborado pensamento de justiça social que religa o dinheiro, enquanto bem individual, a um bem-comum. Esse corpo de doutrinas, confesso, soou-me diversas vezes demasiado pio e ingénuo; mas sinto falta dele agora, de tal forma se perdeu a vergonha face à desigualdade.

Toda a questão é, aliás, bastante teológica. A famosa divisa «greed is good» transforma-se facilmente em «greed is god». Porque o dinheiro, explicou Georg Simmel na sua «Filosofia do Dinheiro» é fungível, e portanto vale mais do que todos os bens que pode adquirir. O dinheiro desmaterializa-se, como se fosse um espírito, e reina sobre tudo. Dos galeões que se afundavam no regresso das Américas com excesso de metais preciosos aos credit default swaps, as pessoas fizeram e fazem o possível por adorar um deus muito além das suas necessidades. Porém, o actual ódio aos ricos é tanto uma forma de ressentimento como de optimismo moral: os cidadãos revoltam-se contra uns terem muito e outros pouco, e atribuem aos ricos fraquezas que são na verdade forças do dinheiro. O dinheiro, que nem sempre é uma queda, é sempre uma vertigem. Vários homens ricos perderam essa batalha com a sua consciência, mas quem garante que a ganhava?

Para o bem e para o mal, a minha educação católica tem-me ajudado a manter viva uma desconfiança face ao dinheiro, ao dinheiro-fortuna, o dinheiro que se torna um «espírito» e que faz das pessoas coisas. É impossível que Jesus usasse por acaso uma imagem tão desapiedada e brutal: um animal que tenta em vão passar pelo buraco da agulha.


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