quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Ao leme da barca de Pedro,
no meio do temporal

Sandro Magister 

Há quem censure Bento XVI por ter um comando débil. Mas não é verdade. Todos os conflitos deste pontificado nasceram de decisões de governo. Decisões firmes e contra a corrente. As intrigas por detrás da expulsão de Ettore Gotti Tedeschi do IOR.

É grande a desordem debaixo do céu, numa cúria vaticana dilacerada por conflitos.

O conflito mais explosivo combate-se nestes dias no campo das finanças. Combatido sem caridade nem verdade, apesar do nome da encíclica de Bento XVI, a «Caritas in Veritate».

Este conflito chocou o mundo pela inaudita brutalidade com que a 24 de Maio Ettore Gotti Tedeschi foi expulso do cargo de presidente e membro do Instituto para as Obras de Religião (IOR), o banco do Vaticano.

Mas o aspecto ainda mais surpreendente deste e doutros confrontos abertos actualmente na cúria e na Igreja é que Bento XVI está na sua origem primária.

Não por debilidade de comando, como em muitos lugares, e erradamente, se diz.

Pelo contrário: por claros e fortes actos de governo que ele assumiu. Com uma audácia consciente das oposições que suscita.

Finanças do Vaticano. O «mandato» do Papa.

De facto, as verdadeiras razões pelas quais o conselho de supervisão do IOR expulsou Gotti Tedeschi não são as que foram indicadas na moção de censura. São muito diferentes. São aquelas que já em Dezembro de há dois anos tinham provocado um primeiro confronto sério entre o presidente do IOR e o Secretário de Estado, Tarcisio Bertone.

Em Dezembro de 2010 estavam prontas para serem promulgadas pelo Vaticano novas regras que teriam aberto o caminho para a admissão da Santa Sé na «white list» dos Estados europeus com os mais elevados padrões de transparência financeira, e portanto da luta contra a reciclagem de dinheiros ilícitos.

Para redigir estas regras, e em especial a lei depois conhecida pelo número 127, Gotti Tedeschi e o Cardeal Attilio Nicora, na época presidente da Administração do Património da Sede Apostólica – um organismo vaticano que também tem funções bancárias –, chamaram os dois peritos italianos mais autorizados na matéria, Marcello Condemi e Francesco De Pasquale.

Imediatamente, antes ainda de que tais regras fossem promulgadas e antes ainda de que estivesse instituída a Autoridade de Informação Financeira (AIF) prevista por essas regras, dotada de poderes ilimitados de inspecção de cada movimento de dinheiro realizado por qualquer organismo interno ou ligado à Santa Sé, desencadeou-se contra ambas inovações uma oposição duríssima.

A oposição foi forte sobretudo por parte da direcção do IOR. E tinha apoio no Cardeal Bertone.

O director-geral do IOR, Paolo Cipriani, e os restantes membros da direcção ofereciam uma resistência incansável a que se retirasse o segredo sobre as contas depositada no banco, numeradas ou não, algumas das quais sob investigação da magistratura italiana por suspeita de irregularidades. Segundo eles, o sigilo do IOR era um elemento irrenunciável da autonomia do Estado da Cidade do Vaticano como Estado soberano. Era sua convicção que a reserva e o carácter de banco «offshore» eram ainda aspectos que tornavam o IOR mais atractivo que outros bancos para a sua clientela internacional. E que, sem isso, estaria condenado a encerrar.

Mas no dia 30 de Dezembro de 2010 Bento XVI em pessoa, com um motu proprio – isto é, com um acto de governo assinado pessoalmente por ele – promulgou as novas regras sem mudar uma vírgula do projecto que tinha causado tanta oposição. E instituiu a AIF com todos os seus poderes de inspecção, colocando à sua frente o Cardeal Nicora.

Com este motu proprio e com a encíclica «Caritas in Veritate» Bento XVI traçou uma linha de rumo claríssima, a caminho da passagem definitiva das actividades financeiras vaticanas para um regime de máxima transparência, internacionalmente controlada e reconhecida.

Mas a oposição às novas regras e aos poderes da AIF não cessou com a entrada em vigor desejada pelo Papa. Cresceu, mesmo, de intensidade.

No passado Outono, a Secretaria de Estado e o Governatorato da Cidade do Vaticano, em acordo com a direcção do IOR, reescreveram de novo a lei 127. E no dia 25 de Janeiro de 2012, por decreto, fizeram entrar em vigor uma nova versão, que limitava fortemente os poderes de inspecção do AIF.

Gotti Tedeschi e o cardeal Nicora contestaram duramente a inversão de sentido, antes e depois de se ter implementado. Na sua opinião, isso vai custar a não admissão da Santa Sé à «white list», como já fez pressentir, no passado mês de Março, uma inspecção ao Vaticano do Moneyval – o grupo do Conselho da Europa que avalia os sistemas anti-branqueamento dos vários países – rematada com um juizo desfavorável sobre a segunda versão da lei 127: oito notas negativas contra apenas duas positivas, enquanto a versão anterior merecera seis notas a favor, e apenas quatro negativas.

E agora chegámos à «defenestração» de Gotti Tedeschi, acordada entre a direcção do IOR e o Cardeal Bertone, contrariamente ao que foi dito em público por um membro dessa direcção, o americano Carl Anderson, presidente dos Cavaleiros de Colombo.

Naquele dia 24 de Maio, com efeito, a reunião do conselho de supervisão do IOR, que retirou a confiança a Gotti Tedeschi – e cujo relato foi tornado público pelo conselheiro Carl Anderson – foi precedida, pelas 13h30, meia hora antes do seu início, de um encontro dos conselheiros com o Cardeal Bertone, um encontro convocado por este, estando também presente o director do IOR Paolo Cipriani.

E nos dias anteriores tanto Anderson como um outro conselheiro, o alemão Ronald Hermann Schmitz, tinham escrito confidencialmente ao Cardeal Bertone para lhe anunciar a intenção de votar a favor da censura a Gotti Tedeschi, «certos de apoiar a justa indicação de Sua Eminência».

Nestas cartas ao Secretário de Estado – publicadas no dia 9 de Junho pelo «Il Fatto Quotidiano» –, Anderson e Schmitz sublinhavam a sua preocupação pelo crescente isolamento internacional do IOR, em particular pela interrupção das relações com o instituto decidida pelo grande banco americano JP Morgan. A culpa atribuiam-na ao «extravagante» Gotti Tedeschi.

Mas, também aqui, não é evidente que seja essa a verdadeira razão da descida do rating internacional do IOR. É, sim, o seu carácter anómalo, a sua persistente falta de transparência.

Gotti Tedeschi manteve sempre informado o secretário pessoal de Bento XVI, P. Georg Gänswein, sobre a actuação na presidência do IOR e sobre a oposição encontrada.

Do Papa em pessoa, mais de uma vez, tinha recebido o «mandato» explícito de avançar para a plena transparência.

E era ao Papa que Gotti Tedeschi, após a sua expulsão do IOR, queria fazer chegar um memorandum completa sobre tudo quando ocorrera.

Mas hoje esta sua carta e correspondência estão apreendidas pela magistratura italiana, em resultado de uma busca domiciliária realizada no dia 5 de Junho na sua casa de Piacenza e no seu gabinete em Milão.

Rapidamente, excertos dessas cartas e do interrogatório começaram a ser filtrados para os media, como acontece sistematicamente em Itália, com desrespeito pelo segredo de justiça.

Também dos escritórios do Vaticano começaram a sair cartas reservadas. Além das duas cartas de Anderson e Schmitz, veio a lume também uma carta escrita no passado mês de Março, endereçada ao director geral do IOR, Paolo Cipriani, enviada por um psicoterapeuta da sua confiança, Pietro Lasalvia, com um diagnóstico desastroso do estado de saúde psíquica de Gotti Tedeschi, deduzido de uma observação ocasional deste, feita durante um encontro com funcionários do banco do Vaticano, para as saudações do Natal passado.

****

O conflito desencadeado no Vaticano por razão da operação transparência teve, portanto, Bento XVI não como espectador, mas como protagonista activo.

É a sua linha de actuação. É seu o motu proprio de 30 Dezembro de 2010 que introduziu as inovações.

Esta desforra dos opositores não é capaz de cancelar a orientação determinada pelo Papa, que continua viva, apesar de tudo. E continua viva, também na opinião pública, convencida de que Bento XVI está pela verdadeira transparência, enquanto muitos outros personagens no Vaticano não estão, mesmo que às vezes a preguem com as palavras.

Governo manso, mas firme.

Naturalmente, o campo financeiro não é o único terreno em que Bento XVI interveio com actos de governo nos seus anos de pontificado.

Noutros, e não menos importantes, terrenos este Papa tomou decisões fortes, de carácter normativo, mesmo tendo consciência de criar dessa maneira resistências e divisões.

Uma indicação sumária:

– Em 2007 Bento XVI, com o motu proprio «Summorum pontificum», liberalizou o uso do missal romano do rito antigo.

– Em 2009 revogou a excomunhão aos quatro bispos consagrados ilicitamente pelo arcebispo D. Marcel Lefebvre e com o motu proprio «Ecclesiae unitatem» abriu o percurso para o regresso dos lefebvriani à plena comunhão com a Igreja.

– Ainda em 2009, com a constituição apostólica «Anglicanorum coetibus», estabeleceu as regras para a passagem para a Igreja Católica de inteiras comunidades anglicanas com os seus bispos, sacerdotes e fiéis.

– Em 2010 promulgou novas regras, muito severas, quanto aos «delicta graviora» e em particular sobre os abusos sexuais sobre menores.

– Ainda em 2010 promulgou o acima referido motu proprio para a transparência financeira.

– Em 2011, com a instrução «Universae ecclesiae» promulgou novas normas para a integração das já existentes sobre a missa em rito antigo.

Pois bem, nem um só destes actos de governo de Bento XVI deixou de suscitar controvérsias, contraposições, conflitos.

Mas atenção, Bento XVI nunca pensou compor estas divisões à custa de processos disciplinares, ou com nomeações ou destituições espectaculares.

A sua arte de governo é sempre a de acompanhar as decisões normativas – como os motu proprio citados – com uma acção de persuasão sobre as razões profundas dessas decisões.

Assim, por exemplo, as suas iniciativas para dar termo ao cisma com os lefebvrianos foram precedidas e explicadas com o memorável discurso à cúria do dia 22 de Dezembro de 2005, sobre a interpretação do Concílio Vaticano II como «renovação na continuidade do único sujeito-Igreja».

A sua liberalização do rito antigo da missa está sendo acompanhada por uma incessante ilustração das riquezas de ambos os ritos, o antigo e o moderno, encorajando a uma recíproca vitalização, como já acontece, debaixo do olhar de todos, nas liturgias que ele celebra.

A sua decisão de instituir as comunidades anglicanas entradas na Igreja católica como ordinariatos com hierarquia e rito próprio vai acompanhada por uma redefinição «sinfónica»do caminho ecuménico com as comunidades cristãs separadas de Roma.

A sua corajosa acção de guia no confronto do escândalo dos abusos sexuais vai acompanhada por um esforço incansável de regeneração intelectual e moral do clero, culminado pela indicação de um ano sacerdotal, com a reafirmação claríssima da lei do celibato. Além disso, Bento XVI pôs em estado de penitência inteiras Igrejas nacionais, como a irlandesa.

Por último, as suas decisões a favor de uma transparência máxima das actividades financeiras da Santa Sé são inseparáveis da leitura teológica deste campo do agir humano que ele fez na encíclica «Caritas in veritate».

Quem tem ouvidos para ouvir, oiça. É a mansa firmeza de governo deste Papa.


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