sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Os cinco perigos de hoje para a Igreja



Carlo Caffarra


A alternativa a uma Igreja sem doutrina não é uma Igreja pastoral, mas uma Igreja arbitrária e escrava do espírito do tempo: «praxis sine theoria coecus in via» [ a praxis sin teoría é cega no camino ], diziam os medievais. Este perigo é grave, e, se não a vence, causa graves danos à Igreja. Pelo menos por dois motivos.

(Escolha a língua)


THE FIVE SNARES FOR THE CHURCH TODAY — by Carlo Caffarra

The alternative to a Church without doctrine is not a pastoral Church, but a Church of whim and enslaved to the spirit of the time: «praxis sine theoria coecus in via,» as the medievals used to say. This is a serious snare, and if it is not overcome it causes great damage to the Church. For at least two reasons.

http://magister.blogautore.espresso.repubblica.it/2017/12/13/the-pope-has-spoken-but-the-doubts-have-not-disappeared-nor-has-cardinal-caffarra/


CINQ PERILS POUR L’EGLISE D’AUJOURD’HUI — de Carlo Caffarra

L’alternative à une Eglise sans doctrine, ce n’est pas une Eglise pastorale mais une Eglise de l’arbitraire, esclave de l’esprit du temps : « praxis sine theoria coecus in via » disaient les médiévaux. Ce péril est grave et, s’il n’est pas vaincu, il causera de grands dommages à l’Eglise.  Ceci pour au moins deux raisons. 

http://www.diakonos.be/settimo-cielo/le-pape-a-parle-mais-les-doutes-nont-pas-disparu-et-le-cardinal-caffarra-non-plus/


LAS CINCO TRAMPAS PARA LA IGLESIA DE HOY
— por Carlo Caffarra

La alternativa a una Iglesia sin doctrina no es una Iglesia pastoral, sino una Iglesia arbitraria y esclava del espíritu del tiempo: «praxis sine theoria coecus in via» [la praxis sin la teoría es ciega en el camino], decían los medievales. Esta trampa es grave, y si no la vence causa graves daños a la Iglesia. Al menos por dos motivos.

http://magister.blogautore.espresso.repubblica.it/2017/12/13/el-papa-ha-hablado-pero-las-dudas-no-han-desaparecido-ni-tampoco-el-cardenal-caffarra/




sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

«Certos laicoides exploram ou medo ao Islão para terminar com o cristianismo»

El filósofo Rémi Brague pide que no se use la laicité como arma contra la religión
ni se metan todas las religiones en el mismo saco

Rémi Brague, ReligiõnenLibertad, 1 de Dezembro de 2017

(Traducción del francés de Le Figaro
 por Helena Faccia Serrano)


Rémi Brague es un filósofo francés, especialista en filosofía medieval árabe y judía. Miembro del Institut de France, es profesor emérito de la Universidad Panthéon-Sorbonne. Autor de numerosas obras, sobre todo Europe, la voie romaine, ha publicado recientemente en español  «El Reino del Hombre, génesis y fracaso del proyecto moderno
». (Ediciones Encuentro). Le entrevistó, a a principios de noviembre, Alexandre Devecchio en Le Figaro Vox, acerca de las contradicciones – o quizá estrategias – del laicismo francés.

— La decisión del Consejo de Estado, obligando al alcalde del ayuntamiento de Ploërmel a retirar la cruz que domina la estatua del Papa Juan Pablo II, ha suscitado la colera de miles de internautas. ¿Cómo explica usted el alcance de estas reacciones espontáneas?


— 
Rara vez navego por las redes sociales y, cuando lo hago, muy a menudo me consterna la simpleza y las expresiones groseras y de odio de todo lo que se dice con la protección del anonimato.

»Ahora bien, respondiendo a su pregunta, dos pueden ser las razones: por una parte, la laxitud ante estas continuas medidas contra las cruces, los belenes, etc.; por la otra, la exasperación ante la mezquindad que implican esas medidas. En Bretaña no se puede lanzar una teja sin que caiga sobre un calvario [una escultura, a veces enorme, representando Cristo en la cruz con María, Juan, las mujeres y el pueblo a sus pies, frecuente en plazas y cruces de caminos, nota de ReL] o un vallado parroquial. ¿Hay otro lugar más lógico para la ubicación de una cruz que encima de la estatua de un Papa?


Ler mais em:

http://portugallaranja2016.blogspot.pt/2017/12/certos-laicoides-exploram-o-medo-ao.html





sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

3 físicos mundialmente reconhecidos afirmam: «Existe uma lógica superior.»



Redacção da Aleteia, 5 de Dezembro de 2017

«A ideia de que tudo é resultado do acaso e da diversidade estatística é inaceitável. Existe uma inteligência a um nível superior, que vai além da existência do próprio Universo»

É instigante uma recente reflexão do físico italiano Antonino Zichichi, cuja autoridade científica, durante bastante tempo, sofreu uma campanha de descrédito promovida por expoentes do mundo anticlerical. Motivo? Zichichi afirmou, muitas vezes, que acredita em Deus graças à ciência.


Apesar das tentativas de alguns militantes ateístas de diminuí-lo por causa da sua crença em Deus, Zichichi continua muito bem avaliado no H-Index, uma espécie de escala que mede o impacto de indivíduos no mundo científico: o índice dele é 62, igual ao de Stephen Hawking e bastante superior, por exemplo, ao de Sheldon Lee Glashow (52), que ganhou o Prémio Nobel.

Zichichi é professor emérito de Física na Universidade de Bolonha, vencedor do Prémio Fermi, ex-presidente da European Physical Society (EPS) e do Instituto Nacional de Física Nuclear, de Itália. Com estes atributos nada desprezíveis, ele escreveu:

«As descobertas científicas são a prova de que não somos filhos do caos, mas sim de uma lógica rigorosa. Se há uma lógica, deve haver um Autor».

O físico afirma que a ciência não pode explicar ou reproduzir milagres. Isto equivaleria a «iludir-se com a ideia de descobrir a existência científica de Deus», o que, para ele, é impossível:

«Se a ciência O descobrisse, Deus só poderia ser um facto da ciência e ponto final. Se a matemática chegasse ao ‘Teorema de Deus’, o Criador do mundo só poderia ser um facto da matemática e ponto final. Seria pouca coisa. Para nós, crentes, Deus é tudo, não apenas uma parte do todo».

Dito de outra forma: se Deus pudesse ser destrinchado pela ciência (a famosa «prova científica» tão pedida pelos antiteístas), então Ele não seria mais o Criador, mas apenas uma criatura.

Zichichi descreve duas realidades da existência: a transcendente e a imanente. Esta última, diz ele, é estudada pelas descobertas científicas, enquanto a primeira é de competência da teologia.

«É um erro pretender que a esfera transcendente deva ser como a que estudamos nos nossos laboratórios. Se as duas lógicas fossem idênticas, não poderia haver milagres, mas somente descobertas científicas. Se fosse assim, as duas esferas, a do imanente e a do transcendente, seriam a mesma coisa. É isto o que reivindicam os que negam a existência do transcendente, como faz a cultura ateia. Não é um detalhe. Os milagres são a prova de que a nossa existência não é exaurida no imanente. Existe algo além».

O Autor de tudo aquilo que a ciência descobre.

«…é uma inteligência muito superior à nossa. É por isso que as grandes descobertas não vieram da melhoria dos cálculos e das medidas, mas do totalmente inesperado. O maior dos milagres, como dizia Eugene Wigner, um gigante da ciência, é que a ciência existe».

As palavras de Zichichi conectam-se claramente às reflexões de Albert Einstein, que escreveu:

«Você acha surpreendente que eu pense na compreensibilidade do mundo como um milagre ou um eterno mistério? Afinal, poderíamos esperar, a priori, um mundo caótico, totalmente impenetrável pelo pensamento. No entanto, o tipo de ordem que, por exemplo, foi criada pela teoria da gravitação de Newton é de carácter completamente diferente: embora os axiomas da teoria tenham sido postos pelo homem, o seu sucesso pressupõe um alto grau de ordem no mundo objectivo, que não tinha qualquer justificativo para ser previsto a priori. É aqui que surge o sentimento do ‘milagroso’, que cresce cada vez mais à medida que o nosso conhecimento se desenvolve. E aqui reside o ponto fraco dos positivistas e dos ateus de profissão, que se sentem pagos pela consciência por terem não apenas libertado com sucesso o mundo de Deus, mas até mesmo por tê-lo privado dos milagres» (cf. A. Einstein, carta a Maurice Solovine, GauthierVillars, Paris, 1956).

Único Nobel italiano ainda vivo, o físico Carlo Rubbia também se deixou questionar pelo porquê de a ciência poder ser tão eficaz:

«Se contamos as galáxias do mundo ou demonstramos a existência das partículas elementares, de forma análoga provavelmente não podemos ter provas de Deus. Mas, como pesquisador, sou profundamente impactado pela ordem e beleza que encontro no cosmos, bem como dentro das coisas materiais. E, como observador da natureza, não posso deixar de pensar que existe uma ordem superior. A ideia de que tudo isto é resultado do acaso ou da pura diversidade estatística é, para mim, completamente inaceitável. Existe uma inteligência a um nível superior, que vai além da existência do próprio Universo» (C. Rubbia, Neue Zürcher Zeitung, março de 1993).





segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Butler em recuo estratégico


No caso, a ideologia de género não nos quer apenas privar da identidade,
mas também da liberdade e da verdade.
De facto, se ninguém é alguém, como pode ter direitos?


Pe. José Eduardo de Oliveira e Silva, SempreFamília, 24/11/2017

«Escrevi estas notas por ocasião da leitura do artigo de Judith Butler na Folha de São Paulo em 20 de Novembro de 2017, numa breve meditação filosófica. O texto é maior que as postagens habituais, mas penso que valha a pena a sua leitura atenta e com reflexão»

I. RECUO ESTRATÉGICO

Professora do departamento de retórica e literatura comparada da Universidade da Califórnia, em Berkeley, e directora do Consórcio Internacional de Teoria Crítica, não é de se admirar que Judith Butler remodele o seu discurso para torná-lo mais agradável ao ouvido sensível dos brasileiros, sobretudo após a onda de protestos causados por a sua última vinda ao Brasil.

«Um passo em frente, dois para trás». Este é o título do livro que Vladimir Lénin publicou em 1904, e que, de certo modo, marcou sempre o modus procedendi de toda a esquerda quando pretende avançar por cima dos obstáculos.

Quando Fidel Castro assumiu o poder em Cuba em nome da democracia e contra a ditadura baptistiana, em seguida, implantou a sua ditadura. Hugo Chávez fez a mesma coisa, apresentou um discurso democrático para, na sequência, impor o seu totalitarismo.

Até mesmo o ex-presidente Lula fez isso. Quando tentava eleger-se, nos anos 90, era rechaçado pela população. Então, com o auxílio do marqueteiro Duda Mendonça, repaginou-se, dando à luz o «Lulinha paz e amor», que o elevou à Presidência da República em 2002.

Agora, Butler segue a mesma estratégia. Reapresenta a sua teoria em recortes mais essencialistas e até moralistas, para fazê-la avançar.

II. A TEORIA DE GÉNERO BUTLERIANA

Apesar de aliviar as tintas no seu texto, qualquer pessoa que tenha tido um contacto com a teoria de género sabe que esta transcende em muito o objectivo de atender os indivíduos que não correspondem às expectativas relativas ao seu género (segundo o artigo de Butler, «ao género atribuído no nascimento»).

Como ela mesma afirma, «o meu trabalho consiste em delinear a última etapa da batalha filosófica contra a vida do impulso, o esforço filosófico de domesticar o desejo como uma instância de lugar metafísico, a luta por aceitar o desejo como princípio de deslocamento metafísico e dissonância psíquica e o esforço orientado por deslocar o desejo com o fim de derrotar a metafísica da identidade» (Subjects of desire, p. 15).

Obviamente, para ela, como o desejo não se realiza de acordo com um sujeito que lhe dê suporte, o «eu» seria apenas um discurso. Não haveria um ser por detrás do desempenho do género. Seriam estes desempenhos, estas acções, que constituiriam a ficção do sujeito, pois esta ficção seria requerida pelo discurso que nós herdamos da metafísica da substância, discurso que, segundo ela, precisamos superar (Problemas de género, p. 56).

Masculinidade e feminilidade, portanto, para ela, são acções desligadas da biologia. Afirma, inclusive, que «a ‘presença’ das assim chamadas convenções heterossexuais nos contextos homossexuais, bem como a proliferação de discursos especificamente gays da diferença sexual, como no caso de buth (a lésbica masculinizada) e femme (a lésbica feminilizada) como identidades históricas de estilo sexual, não pode ser explicada como representação quimérica de identidades originalmente heterossexuais. E tampouco elas podem ser compreendidas como a insistência perniciosa de construtos heterossexistas na sexualidade e na identidade gays. A repetição de construtos heterossexuais nas culturas sexuais gay e hétero bem pode representar o lugar inevitável de desnaturalização das categorias de género» (Problemas de género, p. 66).

Ademais, em diálogo com Witting, ela afirma que «a tarefa das mulheres é assumir a posição do sujeito falante autorizado e derrubar tanto a categoria de sexo como o sistema da heterossexualidade compulsória que está na sua origem. Para ela, a linguagem é o conjunto de actos, repetidos ao longo do tempo, que produzem efeitos de realidade que acabam sendo percebidos como ‘factos’. Considerada colectivamente, a prática repetida de nomear a diferença sexual criou esta aparência de divisão natural. A ‘nomeação’ do sexo é um acto de dominação e coerção, um acto performativo, institucionalizado que cria e legisla a realidade social pela exigência de uma construção discursiva/perceptiva dos corpos, segundo os princípios da diferença sexual» (Problemas de género, p. 200).

Diante disso, soa completamente a retórica e maquiada a seguinte pergunta de Butler no seu artigo da Folha: «O livro (Problemas de género) negou a existência de uma diferença natural entre os sexos? De maneira alguma, embora destaque a existência de paradigmas científicos divergentes para determinar as diferenças entre os sexos e observe que alguns corpos possuem atributos mistos que dificultam a sua classificação».

Então, Butler admite que existe a possibilidade de uma classificação objectiva, baseada na diferença biológica dos corpos? Obviamente, trata-se, aqui, de uma ginástica retórica para desorientar os menos informados na sua teoria.

III. IDEOLOGIA? SIM.

Segundo Butler, «em geral, uma ideologia é entendida como um ponto de vista que é tanto ilusório quanto dogmático, algo que ‘tomou conta’ do pensamento das pessoas de uma maneira acrítica. Meu ponto de vista, entretanto, é crítico, pois questiona o tipo de premissa que as pessoas adoptam como certas no seu quotidiano» (artigo para a Folha).

O conceito de género é crítico apenas no sentido da «teoria crítica», quer dizer, enquanto instrumento para criticar a realidade inteira, como ela mesma reconhece neste seu texto.

Contudo, como de praxe na teoria crítica, deve-se criticar tudo, menos a metodologia crítica ou os seus instrumentos metodológicos críticos como, no caso, o conceito de género.

Ela mesma afirma que «se a noção estável de género dá mostras de não mais servir como premissa básica da política feminista, talvez um novo tipo de política feminista seja agora desejável para contestar as próprias reificações do género e da identidade – isto é, uma política feminista que tome a construção variável da identidade como um PRÉ-REQUISITO METODOLÓGICO E NORMATIVO, senão como um OBJECTIVO POLÍTICO» (Problemas de género, p. 25).

Em outras palavras, a noção de género como identidade variável deve ser uma PREMISSA, aliás, a qual ela não procura demonstrar, antes, apenas apresenta de modo dogmático. A práxis da militância de género, ademais, sempre foi a de fazer com que a teoria de género «tomasse de conta» da sociedade inteira sem que ninguém se desse conta disso, portanto, de modo acrítico.

Aliás, por que fazem tanta questão de ensinar género para as criancinhas? Será que não é justamente porque as mesmas não têm suficientemente desenvolvida a sua capacidade crítica?

Portanto, segundo as próprias determinações de Butler, a sua teoria de género cabe muito bem nos limites daquilo que ela entende por uma ideologia.

Não, quem criou a ideologia de género não foi Joseph Ratzinger nem muito menos Jorge Scala. O «pai» da «criança» é a Judith Butler, mesmo!

IV. ESSENCIALISMO E A FALÁCIA DA ARQUEOLOGIA FOUCAULTIANA

Segundo Butler, «a noção de paródia de género aqui definida não presume a existência de um original que estas identidades parodísticas imitem (ela está a falar da própria identidade de género…) Este deslocamento perpétuo constitui uma fluidez de identidades que sugere uma abertura à ressignificação e à recontextualização; a proliferação parodística priva a cultura hegemónica e seus críticos da reinvindicação de identidades de género naturalizadas ou essencializadas» (Problemas de género, p. 238).

Servindo-se da metodologia própria da teoria crítica, Butler cria uma caricatura discursiva e começa a desconstruí-la, como se estivesse desconstruindo a realidade. Na verdade, ela está tão absorvida por o seu próprio discurso que crê firmemente nele, substituindo a realidade por ele.

Deste modo, atribui a homem e mulher, termos que aparecem para ela sempre entre aspas, status de identidade essencialista, naturalista, sexista, binária, heterossexista, heteronormativa, fálica, reificada etc.

Para comprovar a ficção da identidade, ela analisa os discursos sobre o masculino e o feminino como se os mesmos fossem o homem e a mulher em si.

Aqui, ela é epistemologicamente dependente da metodologia de Foucault, o qual, partindo do pressuposto que a verdade não existe, passa a rastrear a história das «verdades» para demonstrar que as mesmas são apenas a projecção de um determinado poder regulador. Isto é aquilo que ele chama de arqueologia do saber.

Ora, se quiséssemos, por exemplo, fazer a arqueologia da ideia da «lei da gravidade», obteríamos uma infinidade de discursos contraditórios e facilmente chegaríamos à conclusão de que a «teoria da gravidade não existe, é apenas um discurso de poder». No entanto, se se jogar da janela, de qualquer modo, com ou sem Foucault, vai-se espatifar da mesma maneira!

Em outras palavras, estamos diante de um jogo de palavras, de um embaralhamento de discursos, daquilo que a filosofia chama de falácia. A realidade continua intocada, apenas se dribla o interlocutor com um lance desconstrucionista. É aquilo que no futebol se chama de pedalada.

Como é possível que este tipo de artifício possa convencer alguém? Bem… Como ensinou Aristóteles (tanto nos Analíticos quanto no Peri hermeneias), não é fácil conhecer a essência das coisas. Precisamos proceder a um processo abstrativo complexo, que supõe um trabalho mental consideravelmente sofisticado. A história dos discursos pode ser a história dos bem ou mal sucedidos, e dos mal ou bem intencionados, esforços por alcançar a quididade, a essência das coisas reais. Por isso, o método foucaultiano é sofístico e pode enganar.

V. SOFISTAS DE GÉNERO

Butler é adepta da subversão da identidade através de actos corporais subversivos, típicos do movimento queer, quer dizer, a actuação de desempenhos revolucionários que choquem aquilo que ela chama de heteronormatividade.

Outra autora americana de género, Joan Scott, é mais ortodoxa, do ponto de vista foucaultiano: ela pretende reescrever a história a partir da noção de género (Gender and the politics of history, Nova York, 1999).

Estas são as duas autoras principais. Digamos, as mais representativas dos estudos de género.

Contudo, existem mais de 40 teorias diferentes de género, todas em disputa entre si. São modos diferentes de apresentar a mesma ideia, a saber: o género é um construto desligado da identidade sexual, vale dizer, biológica.

Este também é um expediente da teoria crítica: colocar um grupo imenso de pessoas para criticar implacavelmente a realidade, metralhando-a em todos os sentidos possíveis, sem necessariamente se preocupar em justificar a própria crítica.

Uma pessoa que quiser encarar toda a aguarela dos estudos de género poderá gastar toda a vida apenas ocupando-se de entender as picuinhas intelectuais que os diferentes activistas nutrem dialecticamente entre si. Decerto ficará perdido neste labirinto sem saída e, completamente intoxicado de informações contraditórias, acabará por adoptar uma entre elas, trocando a realidade pelo discurso.

Isto também aconteceu nos tempos de Sócrates (cf. Platão, O Sofista). Os sofistas eram retóricos pagos pelos políticos da época para convencerem o povo das ideias destes últimos. Destruíam a mesma base do saber, negando a existência do ser e da verdade, e submetiam o povo às suas opiniões. Sócrates aguentou-os, pagou o preço da sua vida por isso, mas ao fim e ao cabo, desapareceram os sofistas e prevaleceu a verdadeira filosofia.

Hoje, os críticos, os desconstrucionistas, os ideólogos de género são os novos sofistas, pagos pelas fundações internacionais para convencerem o povo de que não existe a verdade, o ser, a essência, e imporem o seu totalitarismo disfarçado de democracia.

Com efeito, Judith Butler veio ao Brasil financiada pela Fundação Mellon para falar de democracia em nome do Consórcio Internacional de Teoria Crítica, fundado no final do ano passado com uma verba doada pela mesma Fundação de 1,5 milhões de dólares (vide o site do próprio Consórcio).

Submetam os ideólogos de género à arqueologia das suas ideias e à genealogia dos poderes que estão por trás deles, rastreiem a rota do dinheiro e verão que isso nada tem de amor desinteressado à humanidade.

VI. PEDOFILIA

Butler alega que a Igreja está por trás da estigmatização social da sua teoria de género e defende-se da acusação de corruptora de crianças acusando a Igreja católica de ter perdido a sua autoridade moral por proteger pedófilos no seu seio.

generalização precipitada é um tipo de falácia de que abusam estes ideólogos na sua aversão ao catolicismo. É verdade que alguns delinquentes se esconderam na Igreja e que houve quem se omitisse na sua acusação, mas a Igreja puniu-os severissimamente e, sobretudo, nunca os respaldou, justificando doutrinalmente o seu desvio de conduta.

Ao contrário, o movimento feminista tem expoentes que defenderam abertamente o sexo com menores, e este não é um privilégio de Shulamith Firestone (The dialetic of sex, p. 215). Há quem queira despatologizar a pedofilia ou transformá-la numa opção sexual respeitável.

Butler apela para a teoria da projecção, sugerindo que os que a acusam de favorecer a pedofilia estão apenas a lançar sobre ela o próprio vexame. Na verdade, a generalização precipitada é uma falácia em qualquer direcção que se a aplique e o uso deste tipo de sofisma apenas demonstra malícia ou despreparo filosófico.

VII. FILOSOFIA, VERDADE E DEMOCRACIA

Algumas pessoas que trabalham com comunicação vieram queixar-se de que os protestos contra a  vinda de Butler ao Brasil apenas a projectaram ainda mais.

Tenho a impressão de que isso, do ponto de vista filosófico, não é necessariamente assim. Quero dizer apenas que os ideólogos sempre se favoreceram do anonimato e da difusão de ideias não conferidas, exactamente como Butler diz no seu artigo.

Quem coloca a questão nestes termos assume sem percebê-lo a premissa de que a verdade e o erro são equivalentes. Acontece que a força do erro está na hegemonia. Por isso, eles necessitam impô-la para todo o mundo. Mas a força da verdade está nela mesma!

Hoje, a verdade precisa mais de homens com uma verdadeira mente filosófica do que da propaganda, é ela que gera os propagandistas, os comunicadores, a cultura e tudo o mais. Foi sobre estes cânones que se erigiu a Civilização ocidental e é contra eles que estes bárbaros a estão destruindo.

Uma democracia que se propusesse como alternativa à verdade, caricaturizando-a como autoritarismo, apenas seria uma ditadura disfarçada, a imposição de uma hegemonia.

Notem que a própria Butler defende a identidade das suas ideias e protesta contra falsificações. E com razão. Contudo, fá-lo apenas em benefício da sua crítica, sem se submeter a uma autocrítica.

Como afirma Butler no seu artigo na Folha, «liberdade não é – nunca é – a liberdade de fazer o mal. Se uma acção faz mal a outra pessoa ou a priva de liberdade, essa acção não pode ser qualificada como livre – ela torna-se uma acção lesiva».

No caso, a ideologia de género não nos quer apenas privar da identidade, mas também da liberdade e da verdade. De facto, se ninguém é alguém, como pode ter direitos?





quinta-feira, 30 de novembro de 2017

A Igreja pode recuperar o seu espírito de luta?


Bergoglio saudando os refugiados sírios no aeroporto de Roma em 2015.

William Kilpatrick, CrisisMagazine, 29 de Novembro de 2017

O mundo islâmico está a travar — e a ganhar
— uma guerra contra a Civilização judaico-cristã.

Com 1,3 mil milhões de católicos em todo o mundo, a Igreja católica é potencialmente um dos mais poderosos centros de resistência ao islamismo. Certamente foi no passado. Infelizmente, este não é o caso de hoje. O que os 1,3 mil milhões de católicos estão a fazer em relação à luta com o Islão? Bem, essencialmente, muito pouco. Muitos deles longe disso.

Porque é que? A principal razão é que os católicos estão a receber pouca orientação sobre o Islão dos seus líderes. E a pouca informação que recebem é enganosa. A hierarquia ainda está apegada à mensagem de que o Islão é uma religião de paz, que recentemente recebeu um nome maligno por um pequeno punhado de terroristas que entendem mal a natureza benéfica da sua fé.

Enquanto isso, enquanto os líderes católicos estão a confirmar esta imagem corajosa do Islão, 90 ​​mil cristãos foram assassinados por causa da sua fé em 2016. Entre 2005 e 2015, 900 mil cristãos foram martirizados. Na maioria dos casos, os carrascos eram muçulmanos.

Este pequeno punhado de extremistas deve estar extremamente ocupado. Ou isso, ou a ideologia extremista é realmente difundida e os bispos foram enganados com as suas suposições sobre o Islão. Como o Islão engole cada vez mais o cenário geográfico e cultural, a última possibilidade parece muito provável. A liderança católica está errada sobre o Islão e, como resultado, muitos cristãos que foram impedidos por garantias clericais, estão mortos.

Antes de 900 mil se tornarem 9 milhões, a hierarquia da Igreja precisa de envolver-se numa reavaliação agonizante da política islâmica. O que é necessário não é simplesmente uma mudança de mentalidade, mas uma mudança de coração. Cor, a palavra latina para o coração, também é a fonte da palavra «coragem». E terá muita coragem para abandonar a narrativa familiar e confortável sobre o Islão e traçar um novo rumo.

Uma maneira de chamar a coragem necessária é olhar para o passado. Os líderes da Igreja precisam de recuperar a memória de exemplos passados ​​de resistência corajosa à tirania. Anteriormente, a Igreja não declarou a sua solidariedade com os opressores, lutou contra eles. Se a Igreja vai resistir com sucesso à islamização do mundo, precisa de recuperar o seu espírito de luta.

Existem inúmeros exemplos para descrever coragem. Na batalha de Tours em 732, o exército católico de Charles Martel derrotou um grande exército muçulmano e salvou a Europa de uma invasão islâmica. Em 1571, uma frota católica organizada pelo Papa Pio V derrotou a maior frota muçulmana em Lepanto e impediu outra invasão. Em 1683, na batalha de Viena, o rei polaco, o polaco Jan Sobieski, chegou com o exército no último momento e salvou a Europa mais uma vez.

Mas vamos avançar para um exemplo do século XX de resistência católica à tirania — a luta da Igreja contra o comunismo. Esta resistência realmente começou antes do século XX. Muito antes de qualquer outra pessoa ter visto o problema, papas católicos, teólogos e intelectuais alertaram sobre os perigos do comunismo. E durante a Guerra Fria, sob a liderança do Papa João Paulo II, a Igreja desempenhou um papel importante para pôr fim ao comunismo na Europa Oriental.

Em 1979, contra os desejos dos soviéticos, o Papa João Paulo II fez uma visita de nove dias à Polónia. Dezenas de milhares alinharam a rota do aeroporto para Varsóvia; 250 mil pessoas participaram na missa de abertura na Praça da Vitória. Quando o Papa foi ao santuário de Czestochowa, uma multidão de um milhão estava disponível. Quando celebrou a missa em Cracóvia, participaram entre dois a três milhões. Ao todo, cerca de 12 milhões de polacos, ou um terço da população, viram o Papa João Paulo II durante a sua viagem.

Esta viagem marcou um ponto de inflexão na história. Um ano depois, Lech Walesa pediu uma greve massiva de trabalhadores no estaleiro de Gdansk. Este foi o início do movimento de solidariedade pró-católica na Polónia, e este foi o começo do fim do comunismo na Europa.

Outra pessoa que se inspirou na viagem polaca do Papa foi Ronald Reagan. A partir do momento do seu primeiro encontro, o Papa e o presidente tornaram-se parceiros num esforço deliberado para derrubar o império soviético. Reagan não era católico, mas vários dos seus assessores mais próximos eram, e em particular com Reagan, eles falavam frequentemente do «DP» — o «Plano Divino» para derrubar o comunismo.

Sem a inspiração fornecida pelo Papa, o «DP» podia não ter conseguido. E, é claro, ele pagou um preço pessoal pelo seu papel. Dois anos depois da sua visita polaca, O Papa João Paulo II foi vítima de uma tentativa de assassinato — uma tentativa que foi ordenada pelo GRU, inteligência do exército soviético. Nem todos entenderam o papel crucial que o Papa João Paulo II desempenhou na conversão do mundo longe do comunismo, mas os soviéticos certamente fizeram (para os detalhes desta incrível história, veja o Papa e o presidente de Paul Kengor).

Outro exemplo de corajosa resistência à tirania é o Papa Pio XII. Muitos pensam hoje em Pio XII como «o Papa de Hitler» porque, na década de 1960, os soviéticos lançaram uma campanha de desinformação para desacreditar a Igreja e fazer com que o Papa Pio XII fosse um anti-semita (mesmo assim, os russos apoiavam notícias falsas). Mas as acusações estão longe da verdade. Durante a ocupação nazi de Roma, o Papa Pio XII pediu a todas as igrejas, seminários, conventos e mosteiros em Itália para proteger os judeus. Os conventos romanos e os mosteiros abrigavam cerca de 5 000 judeus. Quase 500 foram abrigados no próprio Vaticano, e outros 3 000 encontraram refúgio em Castel Gandolfo, residência de Verão do Papa. No total, 85% dos 40 mil judeus italianos foram salvos. O historiador judeu Sir Martin Gilbert disse que o Papa Pio XII teve um papel directo na salvação das vidas de centenas de milhares de judeus europeus. Pinchas Lapide, outro historiador judeu, coloca o número em 700 000. E, longe de ser o Papa de Hitler, o Papa Pio XII estava activamente envolvido numa conspiração perigosa para matar Hitler. Na verdade, foi uma das figuras-chave da conspiração.

Se a Igreja espera suportar o ataque militar e cultural do Islão, precisa de recuperar o espírito de luta que o viu em tempos difíceis no passado. Com o risco de ser marcado como politicamente incorrecto, pode-se até falar de um espírito viril. Embora a coragem pareça ser igualmente distribuída entre os sexos, e embora o espírito de luta não esteja ausente nas mulheres, esse espírito sempre foi reconhecido como um traço predominantemente masculino. O qual pode ser uma das razões pelas quais Cristo designou um sacerdócio de todos os homens. Ele percebeu que em todas as épocas a Igreja teria que lutar pela sua sobrevivência.

A Igreja parece estar em tal luta agora mesmo. E faz sentido intuitivo que um cristianismo feminizado não irá bem na luta. Um exemplo disso é Antje Jackelen, o arcebispo de Uppsala. Ela é o equivalente da Igreja da Suécia ao arcebispo de Canterbury, e o seu lema oficial é «Deus é maior» ou «Allahu Akbar» em árabe. Isto não é coincidência, mas é parte de uma política deliberada para apaziguar a fé que parece apontar para assumir a Suécia dentro de uma década ou duas. Há dois anos, outro bispo sueco, o reverendo Eva Brunne (o primeiro bispo de lésbicas da Suécia), fez as manchetes propondo remover os símbolos cristãos da Igreja do Seaman em Freeport, a fim de torná-lo mais convidativo para os marinheiros visitantes. A terra dos Vikings está a ser invadida, mas, graças à feminização da Suécia, não parece haver nenhum tipo de Viking para resistir.

Também não há muitos tipos de Viking na hierarquia católica. Mas, sendo homens, têm mais uma probabilidade de recuperar algum espírito de luta do que as matriarcas na Suécia. Isto não significa que sacerdotes e bispos precisem de pegar em armas. Embora o Papa João Paulo II tenha sido ferido com uma bala no decorrer da sua luta com o comunismo, lutou contra armas espirituais. E Pio XII não levantou um exército para lutar contra Hitler. Existem outras maneiras de lutar contra a tirania.

Mas antes que a resistência venha ao reconhecimento. Antes de poder resistir à tirania, precisa de compreender o que é uma tirania. Os líderes católicos ainda não chegaram a esta etapa de reconhecimento em relação ao islamismo. Na maior parte, eles ainda estão presos no estágio «must-show-solidarity-with-fellow-Abrahamic-faith». A menos que estejam perseguindo alguma estratégia secreta ultra-inteligente, parece que caíram para a linha do partido islâmico.

Isto, também, revela a falta do tipo de vigilância masculina exibida por líderes anteriores. Por exemplo, embora se possa argumentar que o Papa Pio XII poderia ter feito mais para resistir aos nazis, não se pode dizer que já foi enganado pelos nazis. Cerca de um ano antes que Chamberlain entregasse a Checoslováquia a Hitler, o futuro Papa Pio XII ajudou o Papa Pio XI a compor a encíclica antinazi e anti-racista Mit Brennender Sorge. O Papa Pio XII não teve ilusões sobre os nazis. Não se pode dizer o mesmo do Papa Francisco no que se refere ao islamismo. Ele parece confiar verdadeiramente que a versão caiada do Islão que lhe foi apresentada por imãs proeminentes é a autêntica.

Consequentemente, ele não vê nenhum problema com a abertura da Europa a ondas de migrantes muçulmanos. E justifica esta posição com um apelo muito emocional: «O próprio Cristo nos pede para receber os nossos irmãos e irmãs migrantes e refugiados com os braços abertos».

Não há nada de errado com os apelos baseados na fé, desde que realmente se apliquem à situação em questão. Mas não está claro que o que Cristo disse sobre entrar no estrangeiro se aplica a um milhão de estranhos, muitos dos quais estão imbuídos de uma ideologia de conquista. Em qualquer caso, o catolicismo deve basear-se na fé e na razão, e não me lembro de argumentos bem fundamentados que emanam do Vaticano para admitir muçulmanos em milhões para a Europa. Se é um pai espiritual, parece que tem a responsabilidade de divulgar os seus factos directamente sobre esta migração sem precedentes antes de expor os seus filhos espirituais ao dilúvio.

Mas o Papa Francisco não se incomodou em fazer isso, e o resultado é que milhões de europeus estão agora em grave risco — e um grupo em particular.

O Papa Pio XII foi falsamente manchado como «o Papa de Hitler» e um anti-semita. Mas, em certo sentido, é o Papa Francisco quem é o verdadeiro Papa anti-semita. Eu digo «em certo sentido» porque não acredito que o Papa Francisco seja pessoalmente anti-semita de qualquer maneira. Por outro lado, as políticas de imigração que promove criaram uma situação extremamente perigosa para os judeus europeus. Há quase cinco anos tem dito aos europeus que Cristo pede-lhes que entrem no meio das massas de pessoas que, após o exame, se tornam as pessoas mais antisemitas do planeta. Como resultado do acolhimento oferecido por Papa Francisco e pelos governos europeus, os judeus deixaram a Europa em massa. Talvez eles tenham menos ilusões sobre os seus «irmãos e irmãs migrantes».

Enquanto o Papa Francisco pede aos europeus para abraçar os muçulmanos, ele próprio parece ter abraçado a falácia dos «novos judeus». Os «novos judeus», é claro, são os muçulmanos. Para aliviar a sua culpa pelo Holocausto, os europeus decidiram banir todos os vestígios de preconceitos das suas vidas. Mas, como havia relativamente poucos judeus para praticar a sua abertura, os muçulmanos — os «novos judeus» — tornaram-se beneficiários da nova tolerância encontrada. Ninguém parecia notar — ou se importar — que os muçulmanos como um grupo são profundamente anti-semitas. Em suma, os «novos judeus» eram como os antigos nazis. Em retrospectiva, a substituição dos «novos judeus» pelos judeus antigos como reparação pelo Holocausto deve ser classificada como um dos projectos mais tolos jamais concebidos.

No entanto, esta ideia contraditória não é contestada em Roma. Isto não indica necessariamente uma falta de inteligência, mas sugere a falta de outra coisa — a saber, a fortaleza mental. Agora, a fortaleza mental não está relacionada com a fortaleza intestinal. Muitas vezes toma coragem em falar a verdade. Por outras palavras, o espírito de luta também desempenha um papel na vida do intelecto. É um desejo apaixonado de perceber a verdade das coisas, não importa o custo ou o perigo. Infelizmente, não se vê muita evidência na abordagem dos bispos aos assuntos mundiais. Em vez disso, parecem contentar-se em repetir chavões seculares como «islamofobia», «xenofobia» e — um dos favoritos do Papa — «encontros entre culturas». Para muitos na hierarquia, a mera repetição destes encantamentos é todo o argumento de que é preciso.

Além disso, a guerra, física ou ideológica, é uma constante nos assuntos mundiais. Enquanto esperamos a paz, as nações e as instituições não podem perder a disposição de lutar. Mas é difícil convocar esse espírito de luta se você não reconhecer que está a ser atacado. Muitos na Igreja sucumbiram a uma campanha de desinformação de dois canos destinada a colocá-los fora da sua guarda. Ela vem dos islâmicos, por um lado, e dos marxistas culturais, por outro. Até agora, foi bastante eficaz.

Os generais falam do nevoeiro da guerra, mas também se pode falar do nevoeiro da guerra ideológica. Na verdade, o propósito fundamental da guerra ideológica é criar um nevoeiro de confusão na mente dos seus inimigos. Como resultado desse nevoeiro, a liderança da Igreja falhou na tarefa essencial de dimensionar com precisão a situação perigosa que eles e nós enfrentamos.

O Islão tem sido um inimigo perene do cristianismo. Provavelmente, apresenta uma maior ameaça para os cristãos do que o nazismo ou o comunismo. Em aliança com os herdeiros marxistas culturais do comunismo, é um inimigo formidável, e deve ser visto como tal. A Igreja já foi um baluarte contra o Islão. E pode ser hoje. A Igreja não manda mais exércitos, mas, então, a grande parte da batalha que precisa ser combatida agora tem que ser combatida nos níveis intelectual, informativo e espiritual. Para combater com sucesso esta cultura de guerra, os líderes da Igreja devem recuperar o espírito de luta exibido pelos papas, bispos, santos e guerreiros anteriores. Eles também precisam adquirir essa visão de olhos claros que os católicos das gerações anteriores tomaram quando confrontados com um inimigo ideológico.





domingo, 26 de novembro de 2017

O interrogatório aos três pastorinhos na íntegra. «Perguntei de onde era, e ela respondeu-me que era do Céu»


O Observador reproduz o interrogatório que o padre Manuel Formigão fez a Lúcia, Francisco e Jacinta. O seu objectivo era saber se os acontecimentos de Fátima eram obra de Deus.

João Francisco Gomes, Observador, 12 de Maio de 2017

Quando, há 100 anos, três crianças afirmaram ter visto Nossa Senhora em cima de uma azinheira na Cova da Iria, ninguém previa que aquele lugar desconhecido junto a Fátima, em Ourém, se tornaria num dos principais centros de culto mariano do mundo, visitado pelos Papas e por milhares de peregrinos todos anos. Na altura, as três crianças — Lúcia, Francisco e Jacinta — foram interrogadas dezenas de vezes sobre o que diziam ter visto, tanto pelas autoridades civis como pelas religiosas, que, inicialmente, duvidavam da veracidade dos relatos. O que realmente aconteceu em Fátima ainda hoje divide a sociedade e a própria Igreja.

O reconhecimento das aparições como fenómeno divino pela Igreja, em 1930, resultou de um longo processo canónico que começou precisamente com os extensos e repetidos interrogatórios às três crianças. Fundamental nesse processo foi o padre Manuel Nunes Formigão, um sacerdote nascido em Tomar e nomeado pelo então bispo de Leiria para a Comissão Canónica que estudou os acontecimentos de Fátima.

A 27 de Setembro de 1917 — já os pastorinhos tinham relatado cinco aparições e anunciavam um grande acontecimento para o dia 13 de Outubro –, o padre Formigão deslocou-se à aldeia de Fátima para falar mais uma vez com Lúcia, Francisco e Jacinta. Queria saber mais detalhes sobre o que as três crianças diziam ver, todos os dias 13 desde Maio. Depois, escreveu um relatório em que transcreveu os diálogos que manteve com cada uma das crianças, que lhe contaram todos os detalhes do que tinham visto.

No fim, ficava ainda a pergunta: «Serão os acontecimentos de Fátima obra de Deus? É cedo demais para responder com segurança a esta pergunta».

O Observador reproduz, na íntegra, o relatório do padre Manuel Formigão, actualmente parte do arquivo das Irmãs Reparadoras de Nossa Senhora de Fátima, uma congregação religiosa fundada pelo próprio sacerdote na década de 40. O texto foi também incluído na Documentação Crítica de Fátima, uma compilação de toda a documentação relativa aos acontecimentos de Fátima editada pelo Santuário. Leia-o a seguir.
***

O padre Manuel Nunes Formigão interrogou várias vezes os três pastorinhos.

«No intuito de completar as impressões colhidas no dia 13 do corrente mês de Setembro e habilitar-me com os elementos indispensáveis para fundamentar um juízo, tanto quanto possível, acertado acerca dos acontecimentos que nos últimos cinco meses se têm desenrolado a três quilómetros ao Sul da aldeia de Fátima, no local denominado Cova da Iria, fui pela segunda vez na quinta-feira última, 27, àquela pitoresca aldeia, graciosamente alcandorada num dos contrafortes da majestosa serra de Aire. Eram três horas da tarde quando me apeei do trem que de Torres Novas me conduzira por Vila Nova de Ourém à humilde povoação, cujo nome é hoje pronunciado como uma esperança fagueira de bênçãos e graças celestes por dezenas de milhares de lábios, de um extremo ao outro de Portugal. O rev.do Pároco a quem logo procurei, não estava em casa: tinha saído para fora da freguesia e só à noite devia voltar. Pesaroso por não poder trocar algumas palavras com ele sobre o assunto que ali me levava, resolvi ir a casa das crianças que se dizem favorecidas com aparições da Virgem Santíssima e ouvir da boca delas a narração pormenorizada dos estranhos sucessos cuja notícia tem atraído dia a dia a Fátima um sem número de pessoas de todas as classes e condições sociais.

À distância de dois quilómetros da igreja paroquial e do presbitério, num insignificante lugarejo chamado Aljustrel, pertencente à freguesia, ficam situadas perto uma da outra, as modestas habitações das famílias dos videntes. As duas crianças mais novas estavam ausentes.

Dirigi-me a casa da mais velha, onde a mãe me convidou a entrar e sentar-me, convite a que acedi. A uma pergunta minha sobre o paradeiro da filha que eu procurava, respondeu-me que ela andava a vindimar numa pequena propriedade que lhe pertencia e que ficava dois quilómetros distante.

Pesaroso por não poder trocar algumas palavras com ele [o pároco de Fátima] sobre o assunto que ali me levava, resolvi ir a casa das crianças que se dizem favorecidas com aparições da Virgem Santíssima e ouvir da boca delas a narração pormenorizada dos estranhos sucessos cuja notícia tem atraído dia a dia a Fátima um sem número de pessoas de todas as classes e condições sociais
Padre Manuel Nunes Formigão

Alguém se prestou logo a ir chamá-la de ordem da mãe. Entretanto, as duas crianças mais novas, que tinham regressado do campo, sabendo pelos vizinhos que eu lhes desejava falar, vieram ter comigo. Eram dois irmãos, um menino e uma menina.

Chegou primeiro a menina. Chama-se Jacinta de Jesus, tem sete anos de idade e é filha de Manuel Pedro Marto e de Olímpia de Jesus. Bastante alta para a sua idade, um pouco delgada sem se poder dizer magra, de rosto bem proporcionado, tez morena, modestamente vestida, descendo-lhe a saia até à altura dos artelhos, o seu aspecto é o de uma criança saudável, acusando perfeita normalidade no seu todo físico e moral. Surpreendida com a presença de pessoas estranhas, que me tinham acompanhado e que não esperava encontrar, a princípio mostra um grande embaraço, respondendo, por monossílabos, e num tom de voz quase imperceptível, às perguntas que eu lhe dirijo. Momentos depois aparece o irmão, rapaz de nove anos de idade, que entra com um certo desembaraço no quarto, onde estávamos, conservando o barrete na cabeça, decerto por não se lembrar de que o devia tirar. Um sinal que a irmã lhe fez para se descobrir não foi percebido por ele. Convidei-o a sentar-se numa cadeira ao meu lado, obedecendo imediatamente sem nenhuma relutância. Principiei sem demora a interrogá-lo sobre o que tinha visto e ouvido desde Maio último na Cova da Iria no dia 13 de cada mês durante o tempo da aparição. Estabeleceu-se entre mim e ele o curto diálogo que segue.

O relatório original do padre Manuel Nunes Formigão
Irmãs Reparadoras de Nossa Senhora de Fátima

Que é que tens visto na Cova da Iria nos últimos meses?

— Tenho visto Nossa Senhora.

Onde aparece ela?

— Em cima duma carrasqueira.

Aparece de repente ou tu vê-la vir de alguma parte?

— Vejo-a vir do lado onde nasce o sol e colocar-se sobre a carrasqueira.

Vem devagar ou depressa?

— Vem sempre depressa.

Ouves o que ela diz à Lúcia?

— Não ouço.

Falaste alguma vez com a Senhora? Ela já te dirigiu a palavra?

— Não, nunca lhe perguntei nada; fala só com a Lúcia.

Para quem olha ela, também para ti e para a Jacinta, ou só para a Lúcia?

— Olha para todos os três; mas olha durante mais tempo para a Lúcia.

Francisco Marto, um dos três pastorinhos de Fátima
(Imagem: Santuário de Fátima)
Jacinta, que andava a brincar na rua com outras crianças, fi-la sentar num banquinho ao pé de mim e submeti-a também a um interrogatório, conseguindo obter dela respostas completas e minuciosas, como as do irmão.

Tens visto Nossa Senhora no dia 13 de cada mês desde Maio para cá?

— Tenho visto.

Donde é que ela vem?

— Vem do Céu, do lado do Sol.

Como está vestida?

— Tem um vestido branco, enfeitado a ouro, e na cabeça tem um manto, também branco. Em volta da cintura há uma fita doirada que desce até à orla do vestido.

— Usa botas ou sapatos? 
— Não usa botas nem sapatos.
— Então tem só meias?
— Parece que tem meias, mas talvez os pés sejam tão brancos que pareçam trazer meias calçadas.
Jacinta Marto, em resposta ao padre Formigão 

Usa botas ou sapatos?

— Não usa botas nem sapatos.

Então tem só meias?

— Parece que tem meias, mas talvez os pés sejam tão brancos que pareçam trazer meias calçadas.

De que cor são os cabelos?

— Não se lhe vêem os cabelos, que estão cobertos com o manto.

Traz brincos nas orelhas?

— Não sei, porque não se lhe vêem também as orelhas.

Qual é a posição das mãos?

— As mãos estão postas sobre o peito, com os dedos voltados para cima.

As contas estão na mão direita ou na mão esquerda?

……..

Jacinta, a mais nova das três crianças
(Imagem: Santuário de Fátima)
A esta pergunta a criança responde primeiro que estavam na mão direita, mas em seguida, devido a insistência da minha parte, mostra-se perplexa e confusa, não sabendo precisar bem qual das suas mãos correspondia à mão com que a Senhora segurava o Rosário.

O que é que a Senhora recomendou à Lúcia com mais empenho?

— Mandou que rezássemos o terço todos os dias.

E tu reza-lo?

— Rezo-o todos os dias com o Francisco e a Lúcia.

Meia hora depois de terminado o interrogatório de Jacinta de Jesus, aparece Lúcia de Jesus. Vinha, como disse de uma pequena propriedade da sua família, situada a dois quilómetros de distância, onde tinha estado a vindimar. Mais alta e mais nutrida que as outras duas crianças, de tez mais clara, robusta e saudável, apresenta-se diante de mim com um desembaraço que contrasta singularmente com o acanhamento e a timidez excessiva da Jacinta. Singelamente vestida como esta, a sua atitude não denota e o seu rosto não traduz nenhum sentimento de vaidade nem de confusão.

Sentando-se, a um aceno meu, numa cadeira, ao meu lado, presta-se da melhor vontade a ser interrogada sobre os acontecimentos de que ela é a principal protagonista, sem embargo de se sentir visivelmente fatigada e abatida, mercê das visitas incessantes que recebe e dos inquéritos repetidos e prolongados a que é submetida.

Filha de António dos Santos, de 50 anos de idade, e de Maria Rosa, de 48 anos, tem um irmão e quatro irmãs, todos mais velhos do que ela: Maria, de 26 anos, já casada, Teresa, de 24, Manuel, de 22, Glória, de 20, e Carolina, de 15. Completou dez anos de idade em 22 de Março do corrente ano.

Tinha oito anos quando fez a sua primeira comunhão. A mãe, tipo da mulher cristã, e da boa dona de casa, entregue às lides domésticas, procurou sempre inspirar aos filhos o santo temor de Deus e levá-los ao cumprimento de todos os seus deveres morais e religiosos. Altamente preocupada com os sucessos que atraem a todo o momento as atenções de milhares de pessoas para a sua pobre habitação, até há pouco tempo ignorada do mundo, nota-se desde logo que o seu espírito hesita, numa ansiedade inquieta, entre a esperança de que sua filha seja realmente privilegiada com a aparição da Virgem e o receio de que ela seja vítima de uma alucinação que lhe traga desgostos e cubra de ridículo toda a sua família.

Lúcia, de dez anos, prima de Francisco e Jacinta
(Imagem: Santuário de Fátima)
A uma pergunta minha acerca da piedade da sua Lúcia, responde que não lhe nota nada de extraordinário neste particular, vendo-a rezar da mesma forma e com o mesmo fervor que antes das aparições, exactamente como fazem as suas irmãs.

Dou princípio ao interrogatório da vidente.

É verdade que Nossa Senhora te tem aparecido no local chamado Cova da Iria?

— É verdade.

Quantas vezes te apareceu já?

— Cinco vezes, sendo uma cada mês.

Em que dia do mês?

— Sempre no dia treze, excepto no mês de Agosto, em que fui presa e levada para a vila (Vila Nova de Ourém) pelo sr. administrador. Nesse mês vi-a só alguns dias depois, a dezanove, no sítio dos Valinhos.

Diz-se que a Senhora te apareceu também o ano passado. Que há de verdade a este respeito?

— O ano passado nunca me apareceu (nem antes de Maio deste ano); nem eu disse isso a pessoa alguma, porque não era exacto.

Donde é que ela vem? Das bandas do nascente?

— Não sei; não a vejo vir de parte alguma; aparece sobre a carrasqueira, e quando se retira é que toma a direcção donde nasce o Sol.

Quanto tempo se demora? Muito ou pouco?

— Pouco tempo.

O suficiente para se recitar um Padre Nosso e uma Avé Maria, ou mais?

— Mais, bastante mais, mas nem sempre o mesmo tempo (talvez não chegasse para rezar o terço).

Da primeira vez que a viste não ficaste assustada?

— Fiquei, e tanto assim que quis fugir, com a Jacinta e o Francisco, mas Ela disse-nos que não tivéssemos medo, porque não nos faria mal. Disse: «Não tenham medo que eu não vos faço mal.»

Como é que está vestida?

— Tem um vestido branco, que desce até um pouco abaixo do meio da perna, e cobre-lhe a cabeça um manto, da mesma cor, e do mesmo comprimento que o vestido.

O vestido não tem enfeites?

— Vêem-se nele, na parte anterior, dois cordões dourados, que descem do pescoço e se reúnem por uma borla, também dourada, à altura do meio do corpo.

Tem algum cinto ou alguma fita?

— Não tem.

Usa brincos nas orelhas?

— Usa umas argolas pequenas e de cor amarela.

Qual das mãos segura as contas?

— A mão direita.

Perguntei de onde era, e ela respondeu-me que era do Céu
Lúcia de Jesus

Eram um terço ou um rosário?

— Não reparei bem.

Terminavam por uma cruz?

— Terminavam por uma cruz branca, sendo as contas também brancas. A cadeia era também branca.

Perguntaste-lhe alguma vez quem era?

— Perguntei, mas declarou que só o diria a 13 de Outubro.

Não lhe perguntaste de onde vinha?

— Perguntei de onde era, e ela respondeu-me que era do Céu.

E quando foi que lhe fizeste essa pergunta?

— Da segunda vez, a treze de Junho.

Sorriu-se alguma vez ou mostrou-se triste?

— Nunca se sorriu nem se mostrou triste, mas sempre séria.

Recomendou-te, e aos teus primos, que rezassem algumas orações?

— Recomendou-nos que rezássemos o terço em honra de Nossa Senhora do Rosário, a fim de se alcançar a paz para o mundo.

Mostrou desejos de que no dia treze de cada mês estivessem presentes muitas pessoas na Cova da Iria?

— Não disse nada a esse respeito.

É certo que te disse um segredo, proibindo que o revelasses a quem quer que fosse?

— É certo.

Diz respeito só a ti ou também aos teus companheiros?

— A todos três.

Não o podes manifestar ao menos ao teu confessor?

(A esta pergunta guardou silêncio, parecendo um tanto enleada e julguei não dever insistir, repetindo a pergunta).

Consta que, para te veres livre das importunações do sr. administrador, no dia em que foste presa, lhe contaste, como se fosse o segredo uma coisa que o não era, enganando-o assim e gabando-te depois de lhe teres feito essa partida: é verdade?

— Não é; o sr. administrador quis realmente que eu lhe revelasse o segredo, mas como eu não o podia dizer a ninguém, não lhe disse, apesar de ter insistido muito comigo para esse fim. O que fiz foi contar tudo o que a Senhora me disse, excepto o segredo, e talvez por esse motivo o sr. administrador ficasse julgando que eu lhe tinha revelado também o segredo. Não o quis enganar.

A Senhora mandou que aprendesses a ler?

— Mandou, sim, da segunda vez que apareceu.

Mas se a Senhora disse que te levaria para o Céu no mês de Outubro próximo, para que te serviria aprenderes a ler?

— Não é verdade isso: a Senhora nunca disse que me levaria para o Céu em Outubro, e eu nunca afirmei que ela me tivesse dito tal coisa.

Não é verosímil que três crianças de tão tenra idade, uma delas apenas com sete anos, rudes e ignorantes, mintam e persistam na mentira durante tantos meses, posto que sejam tão obsediadas com perguntas e interrogatórios de toda a ordem e ameaçadas pelos representantes da autoridade eclesiástica e da autoridade civil e por tantas pessoas a quem elas devem respeito e consideração
Padre Manuel Nunes Formigão

O que declarou a Senhora que se devia fazer ao dinheiro que o povo deposita na Cova da Iria ao pé da carrasqueira?

— Disse que o devíamos colocar em dois andores, levando eu, a Jacinta e mais duas meninas um deles, e o Francisco, com mais três rapazes, o outro, para a igreja da freguesia. Parte desse dinheiro seria destinado ao culto e festa da Senhora do Rosário e a outra parte para ajuda de uma capela nova.

Onde quer ela que seja edificada a capela? Na Cova da Iria?

— Não sei: ela não o disse.

Estás muito contente por Nossa Senhora te ter aparecido?

— Estou.

No dia treze de Outubro Nossa Senhora virá só?

— Vem também S. José com o menino, e será concedida a paz ao mundo.

E fez mais alguma revelação?

— Declarou que no dia 13 fará com que todo o povo acredite que ela realmente aparece.

Porque razão não raro baixas os olhos deixando de fitar a Senhora?

— É que ela às vezes cega.

Ensinou-te alguma oração?

— Ensinou; e quer que a recitemos depois de cada mistério do rosário.

Sabes de cor essa oração?

— Sei.

Diz lá…

— Ó meu Jesus, perdoai-nos, livrai-nos do fogo do Inferno, levai as alminhas todas para o Céu, principalmente aquelas que mais dele precisarem.

Das respostas das crianças e mais ainda da sua atitude e modo de proceder em todas as circunstâncias em que se têm encontrado, resulta, com uma clareza, que parece excluir toda a dúvida, a sua perfeita e absoluta sinceridade.

Não é verosímil que três crianças de tão tenra idade, uma delas apenas com sete anos, rudes e ignorantes, mintam e persistam na mentira durante tantos meses, posto que sejam tão obsediadas com perguntas e interrogatórios de toda a ordem e ameaçadas pelos representantes da autoridade eclesiástica e da autoridade civil e por tantas pessoas a quem elas devem respeito e consideração. Nenhuma consideração, nenhum temor é capaz de demovê-las de afirmar que vêem Nossa Senhora. Nem a prisão a que as sujeitam, depois de as arrancar violentamente ao seio da família e de as levarem para longe da terra, em que nasceram e têm vivido, as intimidações exercidas por elementos do povo, que chegam ao extremo de ameaçá-las com a morte, se um dia forem depreendidas em mentira flagrante. A naturalidade e franqueza com que se expressam, a simplicidade e candura que manifestam, a indiferença e desinteresse que mostram quanto ao facto de se lhes prestar ou não crédito, a timidez extrema da Jacinta, as próprias contradições aparentes, facilmente explicáveis, em que caiem e que excluem em absoluto qualquer combinação entre as crianças, são tudo indícios de que as crianças possuem, no mais alto grau, um dos requisitos indispensáveis numa testemunha para ser fidedigna: a veracidade.

Mas serão as crianças vítimas de uma alucinação? Estarão iludidas, julgando ouvir, e não ouvindo, julgando ver, e não vendo? Verificar-se-á no caso sujeito a hipótese de autosugestão?

Mas como, se nada autoriza semelhante suposição, de todo o ponto gratuita? Não se trata de uma só testemunha, são três.

Não se trata de adultos, mais sujeitos a alucinações, mas de crianças. E que crianças! Crianças de tenra idade, dotadas de perfeita saúde, e que não manifestam o mais pequeno sintoma de histerismo, segundo a declaração de um médico consciencioso que as examinou cuidadosamente.

Dar-se-á o caso, não raro sucedido, de uma intervenção diabólica?

O anjo das trevas transforma-se algumas vezes em anjo de luz, para enganar os crentes. Verificar-se-á isso agora? A Jacinta afirma que o vestido da Senhora chega apenas aos joelhos. A Lúcia e o Francisco declaram que desce até próximo dos artelhos. Haverá neste ponto confusão da parte das crianças, sobretudo por parte da mais nova? Se não, este ponto torna-se difícil de explicar e resolver.

Serão os acontecimentos de Fátima obra de Deus? É cedo demais para responder com segurança a esta pergunta. A Igreja ainda não interveio, nomeando a respetiva comissão de inquérito
Padre Manuel Nunes Formigão

Nossa Senhora não pode, evidentemente, aparecer senão o mais decente e modestamente vestida. O vestido deveria descer até perto dos pés. O contrário, posta de parte a hipótese de um engano das crianças, aliás admissível, porque podiam não ter reparado bem, não ter podido examinar perfeitamente o traje da aparição, tanto mais que não possuem o dom da infalibilidade, o contrário, digo, constitui a dificuldade mais grave a opôr à sobrenaturalidade da aparição e faz nascer no espírito o receio de que se trata de uma mistificação, preparada pelo espírito das trevas. Mas como explicar a concorrência de tantos milhares de pessoas, a sua fé viva e a piedade ardente, a modéstia e compostura que mostram em todos os seus actos, o silêncio e recolhimento da multidão, as conversões numerosas e retumbantes ocasionadas pelos acontecimentos, o aparecimento de sinais extraordinários no céu e na terra, verificados por milhares de testemunhas, como explicar, repito, todos estes factos e conciliá-los com a providência divina e a economia que rege o mundo sobrenatural, sobretudo depois do estabelecimento do cristianismo, se o demónio é que é a causa ou a ocasião de semelhantes factos?

Resta, pois, uma única solução. Serão os acontecimentos de Fátima obra de Deus? É cedo demais para responder com segurança a esta pergunta. A Igreja ainda não interveio, nomeando a respectiva comissão de inquérito.Quando o fizer, a missão desta comissão será relativamente fácil de cumprir.

No próximo dia 13 de Outubro, ou tudo se desfará como por encanto, ou novas provas, inteiramente concludentes, virão confirmar as que já existem em favor da realidade das aparições da Virgem.»