segunda-feira, 22 de setembro de 2014


O que a guerra é realmente


Robert Royal

Tem surgido alguma ambiguidade, tanto no Vaticano como na Casa Branca, sobre o que se deve fazer acerca da barbaridade que está a ocorrer no Médio Oriente e que tem chocado todo o mundo. Nem se sabe bem o que se lhe deve chamar.

Começou com um artigo escrito pelo Pe. Luciano Larivera, S.J., no La Civiltà Cattolica (uma revista jesuíta publicada em Roma e que é considerada uma referência, se bem que indirecta, do pensamento do Papa): «Obviamente, para promover a paz é necessário saber o que a guerra é na realidade, e não aquilo que gostaríamos que fosse. É fundamental estudar e perceber como é que o Estado Islâmico luta. A sua é uma guerra de religião e aniquilação».

Isto é simples realismo cristão e a mais pura verdade sobre o actual conflito, que os nossos líderes americanos parecem recusar-se a aceitar. Mas depois de muitas distorções nos media, o padre Antonio Spadaro, SJ, o editor chefe do Civiltà, explicou: «O Estado Islâmico pensa que é uma ‘guerra de religião’, mas nós devemos ter o cuidado de não pensar dessa forma».

Tudo bem. Há muito que o cristianismo abandonou a ideia de que é legítimo o uso da força para promover a fé – como Bento XVI sublinhou no seu discurso profético em Ratisbona. Mas não deixamos de ter a responsabilidade de dizer a verdade sobre o que se está a passar bem como encarar a questão de como responder a uma força agressiva que mata os inocentes, escraviza sexualmente as mulheres, decapita ocidentais em público e declara ter como objectivo a imposição, pela força das armas, da sua religião aos não-crentes.

Entramos aqui num terreno sempre polémico: onde é que deixamos os princípios morais absolutos – que são a primeira competência da Igreja – e entramos na aplicação prudente desses princípios, em contextos complicados. Excepto em casos de agressão injusta, o juízo sobre o uso legítimo da força cabe aos líderes seculares e não aos papas nem aos bispos.

O mundo secular raramente compreende a distinção. No voo de regresso da Coreia, em meados de Agosto, o Papa disse: «É lícito travar um agressor injusto. Sublinho o verbo: travar. Não digo bombardear nem fazer guerra, digo impedir de alguma maneira».

Os media seculares, e mesmo alguns órgãos católicos, reagiram mal: Se não é para bombardear, então qual é a estratégia do Papa? Como se o Sumo Pontífice tivesse de ter uma estratégia militar, qual presidente dos EUA. A minha aposta é de que o Papa estava a afirmar a necessidade de agir – naturalmente através do uso da força –, mas deixando claro que, apesar do horror da violência do Estado Islâmico, não cabe ao Papa defender os bombardeamentos americanos nem as decisões práticas de qualquer outra nação.

Mas na semana passada disse à Comunidade de Sant’Egidio: «A guerra nunca é uma forma satisfatória de corrigir injustiças... A guerra conduz as pessoas a uma espiral de violência que se torna difícil de controlar. Destrói aquilo que levou gerações a estabelecer e abre caminho a conflitos e injustiças ainda piores».

«Diálogo» ao estilo do Estado Islâmico

Calculo que na emoção do momento, como tende a fazer, Francisco foi um bocadinho mais longe do que queria. O pensamento moral católico há muito que aceitou que as autoridades católicas têm por vezes a responsabilidade de recorrer à força. E temos exemplos de guerras boas, como a derrota dos nazis pelos aliados. Como explica o Catecismo da Igreja Católica:

[2307] Cada cidadão e cada governante deve trabalhar no sentido de evitar as guerras.

Apesar desta admoestação da Igreja, por vezes torna-se necessário usar a força para obter os fins da justiça. Este é um direito, e o dever, de todos os que têm responsabilidade pelos outros, tal como líderes civis e forças policiais. Enquanto os indivíduos têm o direito de renunciar a toda a violência, aqueles que preservam a justiça não o podem fazer, embora deva ser sempre um último recurso, «falhados todos os esforços de paz».

É claro que existem os limites das condições sobre a decisão de ir para a guerra (ius in bellum) e o comportamento durante o combate (ius in bello). O juízo prudente dos líderes civis nestas matérias é, justamente, alvo de escrutínio cuidadoso. Em retrospectiva, muitos dos que acreditavam que Saddam Hussein possuía armas de destruição maciça vieram mais tarde a concluir que a decisão do presidente Bush de atacar o Iraque foi um erro. Da mesma forma, muitos consideram agora que a decisão de Obama de retirar as tropas do Iraque foi um erro e que, por isso, ele depara-se agora com limites à sua acção contra o Estado Islâmico que podem bem tornar a sua estratégia inútil. Este é um problema grave, uma vez que um dos critérios para a guerra justa é a existência de uma possibilidade razoável de sucesso, que é como quem diz, a existência de um benefício proporcional na decisão de matar pessoas e partir coisas.

É claro que o Papa sente a tragédia de todas as guerras e o pecado que está por detrás delas: «ganância, intolerância, sede de poder... Estes motivos estão por detrás da decisão para ir para a guerra e, demasiadas vezes são suportadas por uma ideologia; mas em primeiro lugar há uma paixão ou um impulso distorcidos. A ideologia é apresentada como justificação quando não existe qualquer ideologia, mas apenas a resposta de Caim: ‘Que me interessa isso? Serei eu o guarda do meu irmão?’»

Noutras alturas, porém, ele e a Igreja reconhecem que o «uso justo da força» – caso queiram evitar a palavra «guerra», como parece ser a vontade da Casa Branca – serve precisamente para podermos ser os «guardas do nosso irmão». Talvez seja necessário recordar o Vaticano disso. Irmãos cristãos, yazidis, curdos e muçulmanos de várias confissões, foram expulsos das suas casas, mortos ou marcados para genocídio. Não é possível negociar com os agressores. Não há diálogo ao alcance dos homens que seja capaz de fazer a menor diferença na mortandade.

Podemos preferir que não fosse assim. Podemos lamentar a herança da história e da violência do passado. Podemos reconhecer os nossos próprios pecados e pedir a Deus uma solução que não somos capazes de encontrar sozinhos. Mas entretanto temos apenas os meios ao nosso alcance e não podemos demitir-nos da responsabilidade de proteger aqueles que sofrem agressões.

Mesmo que não possamos fazer nada, podemos pelo menos dizer a verdade, porque: «para promover a paz é necessário saber o que a guerra é na realidade, e não aquilo que gostaríamos que fosse».


(Publicado pela primeira vez em The Catholic Thing.
Tradução de Filipe d'Avillez)





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