terça-feira, 29 de abril de 2014

Aspectos da oposição do «bando de Argel»
ao Estado Novo II


João J. Brandão Ferreira

Por razões judiciais tenho feito alguma pesquisa no arquivo do Ministério da Defesa, onde se encontra documentação muito interessante, infelizmente ainda longe de estar toda identificada e tratada.

Encontrámos uma miríade de transcrições de emissões de rádios estrangeiras algumas das quais possuíam programas preparados e emitidos por «exilados» portugueses que militavam em Partidos e organizações que lutavam contra o Regime Político instituído em Portugal, em 1933.

Ocorreu-me que seria interessante transcrever alguns trechos dessas emissões para os contemporâneos puderem avaliar o que então se dizia (e as queixas e «denúncias» que se faziam) – na substância e na forma – e poderem comparar com aquilo que se passou a seguir à «Revolução» do 25/4/1974 e com o que se passa hoje em dia.

Não farei comentários deixando a cada um retirar as suas conclusões.

Vou cingir-me à «Rádio Voz da Liberdade, órgão da «Frente Patriótica de Libertação Nacional» (FPLN), que emitia a partir de Argel, entre 1964 e 1974.[1]

Os dois principais (únicos?) locutores da Rádio Argel eram
Manuel Alegre e Estela Piteira Santos

Eis o 2.º texto lido em 23/10/1966, com o título «Uma Guerra Perdida».[2]

Na FPLN pontuavam
Piteira Santos, Tito de Morais e Manuel Alegre

«A SITUAÇÃO NA GUINÉ»

– o P.A.I.G.C. bombardeou quarteis com tiros de canhão.

Segundo uma notícia proveniente de Conakri, pela primeira vez as forças do P.A.I.G.C. bombardearam com tiros de canhão a vila de Bolama, e o campo entrincheirado de Empada, sendo destruídas numerosas instalações militares.

Já meses antes, tinham sido bombardeados a tiros de morteiro os campos fortificados de …. Guidage, Farim, Colopape (?), Ngore, Burumtuma, Canquelifá, Guiledje, Bedanda, Madina, Belifa e outros.

Trata-se de um grande passo em frente na luta de libertação nacional do povo da Guiné. Das acções de flagelação, das emboscadas, dos rápidos ataques de surpresa com armas ligeiras, o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde, passou a uma nova fase, passando a atacar as forças portuguesas no seu próprio reduto. Já não são apenas as minas, as armadilhas, já não se trata sequer de ataques efectuados com metralhadoras, e apoiados com tiros de bazuca. Trata-se de operações ofensivas de bombardeamento de quarteis com tiros de canhão ou de morteiro.

As tropas de ocupação deixaram de ter pela frente grupos de homens rudimentarmente armados, e passaram a ter que suportar os ataques conduzidos por um exército regular, disciplinado, treinado e armado, que conhece o terreno que pisa e que além disso, tem um moral e uma coragem diferentes, porque está a combater pela libertação da sua terra.

A situação na Guiné pode caracterizar-se da seguinte maneira: metade do território libertado, transformação da guerra de guerrilhas, que continua a ser preponderante, com operações de ataque frontal. As tropas de ocupação estão aquarteladas nos quarteis, e as operações ofensivas reduzem-se a acções em áreas reduzidas, e aos bombardeamentos efectuados pela Aviação sobre a população civil das zonas libertadas.

Os comandos salazaristas sabem que a guerra está perdida. Entretanto, para fazerem o jogo criminoso do ditado para ganhar tempo, vão exigindo sacrifícios inúteis aos soldados, que vão procurar a morte inútil de um número cada vez maior de soldados portugueses, e vão continuar a assassinar os guineenses que o fascismo diz defender.

Não é apenas um erro de cálculo político e militar. É um crime, um crime semelhante ao que Salazar quis cometer em Goa, exigindo o sacrifício do total das tropas portuguesas.

Mas, tal como em Goa, não há nada a fazer na Guiné. Tal como em Goa, qualquer sacrifício mais é inútil e, mais do que inútil, é um crime».

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A SITUAÇÃO EM ANGOLA

«Nos últimos três meses, o panorama da guerra colonial em Angola, sofreu duas alterações importantes: em primeiro lugar, o Movimento Popular de Libertação de Angola apresenta-se melhor organizado e com equipamento militar moderno, em três frentes de luta separadas por milhares de quilómetros: em Cabinda, nos Dembos e na região de Vila Luso.

As Forças Armadas Portuguesas foram obrigadas a dispersar-se e a baterem-se em terrenos e regiões que não conhecem bem (caso da região de Vila Luso), ou que conhecem demasiado bem, o que sucede nos Dembos, pelas amargas experiências que tem tido.

Em segundo lugar, o MPLA, e a Frente Nacional de Libertação de Angola (ex-UPA) estabeleceram há menos de uma semana, numa reunião efectuada no Cairo, acordos de cooperação que, a serem concretizados, podem vir a ter uma grande repercussão no progresso da luta de libertação do povo de Angola.

Angola, seis anos de guerra quase passados, regressa assim ao primeiro plano das preocupações salazaristas, impotentes para vencerem o povo angolano. Há cerca de um mês, um oficial que se encontrava na região de Vila Luso, escreveu-nos relatando o desespero dos soldados perante a crescente insegurança das FA portuguesas, cercadas por uma população hostil e mais esclarecida, e assediadas por guerrilheiros móveis e bem armados, dirigidos pelo M.P.L.A.

Os soldados portugueses, nem sequer no plano alimentar tinham uma situação defendida: há meses que os comandos lhe davam arroz e peixe estragado a todas as refeições. Entre diversas companhias, desenvolvia-se um largo movimento de protesto no sentido de levantamento de ranchos.

No plano militar, o isolamento, a vida em campos fortificados, impotentes perante ataques de morteiros, tornava-se cada vez mais difícil».

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A SITUAÇÃO EM MOÇAMBIQUE

«Um comunicado divulgado ontem pela Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), anuncia que, em operações militares realizadas no fim de Setembro, morreram mais 34 soldados portugueses.

A crise que atravessa o colonialismo, e a guerra colonial salazarista em Moçambique, são já do domínio público. E mesmo em Moçambique que os comunicados de guerra se veem forçados a admitir mais baixas.

A imprensa suíça conservadora, a «Gazette de Lausanne», porta-voz salazarista, confessava há semanas que o governo e a guerra coloniais atravessavam uma profunda dificuldade em Moçambique, e que estava em estudo um plano que desde já previa o abandono de toda a região do norte do Zambeze, já que as províncias de Cabo Delgado e Niassa, pela reduzidíssima penetração civil e militar portuguesa, não eram defensáveis.

Dias depois, a imprensa mundial anunciava o que a imprensa salazarista calava: a pressão pela PIDE, do governador da província de Manica e Sofala. Assim, um ano de guerra passado, a situação adensa-se para o colonialismo português, e para os soldados e militares portugueses que lá são forçados a combater. As medidas repressivas, as bombas de napalm, os campos de concentração, com milhares de moçambicanos presos, os julgamentos – farsa dos intelectuais moçambicanos, os assassínios por agentes da PIDE, de dirigentes da FRELIMO, como Jaime … (falha), morto há meses na Zâmbia, não conseguiram deter o movimento de libertação do povo moçambicano.

Pelo contrário, hoje é difícil continuar afirmando que se trata de acções terroristas fabricadas no exterior, quando as forças portuguesas têm de combater, a centenas, a mais de mil quilómetros dentro de Moçambique, quando há extensas regiões libertadas, e administrativamente dirigidas pela FRELIMO, com escolas e serviços de saúde.

A acção do povo moçambicano pela sua independência, a organização e o armamento das forças da FRELIMO, são bem diferentes daquela caricatura que o governo nos quis servir, de tribos primitivas. Hoje as pretensas tribos primitivas abatem aviões, e estão em condições de dizimar companhias inteiras».

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COMO RESISTIR À GUERRA

«Militares portugueses, o sacrifício que Salazar vos exige, é cada vez maior, e cada vez mais inútil. Nos quarteis de Portugal, antes de partir para as colónias, ou mesmo no meio da guerra, na Guiné, em Angola e em Moçambique, é possível resistir, é possível lutar contra a guerra, é possível não fazer a guerra.

Se vos encontrais ainda em Portugal, recusai-vos a partir, resisti ao embarque, organizai deserções colectivas, que cada companhia, cada grupo, cada esquadrão, se recuse a embarcar.

Resisti dentro e fora dos quarteis, se for preciso, ocupai os quarteis. Unidos, sólidos, invencíveis, ninguém vos poderá embarcar à força, se vos mantiverdes firmes, unidos e dispostos a resistir.

Parti em grupos para as vossas terras. Chamai o povo das vossas terras a defender-vos. Contai ao povo que não quereis servir de carne para canhão numa guerra perdida, ao serviço dos interesses da dominação estrangeira.

O vosso lugar é em Portugal. Não vos deixeis embarcar. Vale mais lutar em Portugal pelo direito à vida e à liberdade, do que ir morrer em África por meia dúzia de monopólios.

Mas, se vos encontrardes nas colónias, mesmo lá é possível resistir, é possível desertar e, em certas circunstâncias, é mesmo possível a revolta. Procurai contacto com os movimentos nacionalistas. Por acordos estabelecidos com a Frente Patriótica de Libertação Nacional, os movimentos nacionalistas acolher-vos-ão, e pôr-vos-ão em contacto connosco. Desertai em grupos ou individualmente. Se vos exigirem a partida para uma morte certa, recusai-vos a combater, revoltai-vos. Se vos não for possível fazer mais nada, fazei a resistência passiva. Deixai-vos ficar perto dos quarteis e acampamentos, sem vos arriscardes no meio do mato, sem expor inutilmente as vossas vidas. Não ataqueis quem não vos ataca. Os altos comandos que vão fazer a guerra. Eles que se arrisquem.

Militares portugueses, a Voz da Liberdade não vos mente. A guerra está perdida. O governo exige o vosso sacrifício para nada, apenas para ganhar tempo, apenas para que alguns monopólios arrecadem os lucros dos capitais investidos. Nós não queremos uma juventude estropiada, não queremos mais mortos inúteis, não queremos que os jovens da nossa terra continuem a sacrificar-se por uma guerra injusta e perdida. A Voz da Liberdade, militares de Portugal, é a vossa voz. E a Voz da Liberdade diz-vos: poupai as vossas vidas. Não vos deixeis embarcar. Resisti. E desertai. Revoltai-vos. A nossa Pátria é Portugal. E Portugal está a saque. É em Portugal que temos de lutar pelo direito à vida, á liberdade, pela independência da nossa Pátria».



[1] Recorda-se que a Argélia tinha ascendido à independência, em 1962, depois de uma longa e cruenta guerra com a França. A Argélia tinha um regime político de partido único de inspiração marxista, cujo 1.º presidente foi Ben Bella. Assumia-se como um país do «Terceiro Mundo» vindo, mais tarde, a situar-se na órbitra da extinta URSS. A FPLN tinha lá o seu «quartel- general», desde 1962 e o principal apoio. Na FPLN pontuavam Piteira Santos, Tito de Morais e Manuel Alegre. A «Rádio Voz da Liberdade» era um dos seus principais instrumentos e os dois principais (únicos?) locutores eram Manuel Alegre e Estela Piteira Santos.

[2] Arquivo do MDN, Fundo 5/23/81/16.





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