segunda-feira, 29 de julho de 2013

A eutanásia e a rampa deslizante

Pedro Vaz Patto

A questão da legalização da eutanásia está na ordem do dia e vem sendo debatida nas páginas do Público.

Quase sempre se propõe a eutanásia como um recurso excepcional e estritamente enquadrado, como corolário do respeito escrupuloso pela liberdade de quem a pede. Que tal objectivo seja atingido, não resulta, porém, das experiências dos países que legalizaram tal prática, como a Bélgica, que se prepara agora para alargar tal legalização.

Há cerca de um ano, a propósito do décimo aniversário dessa legalização na Bélgica (e a título de balanço), foi publicado um manifesto, Dez anos de eutanásia, um feliz aniversário?, subscrito por médicos de diferentes especialidades, mas também juristas, filósofos e teólogos de várias religiões.

Aí se afirma que a legalização da eutanásia não envolve apenas o respeito pela liberdade individual. Representa o aval da comunidade e do corpo médico à opção em causa. A quebra de um interdito fundamental («não matar») que estrutura, como sólido alicerce, a vida comunitária, não pode deixar de afectar a confiança no seio das famílias, entre gerações e na comunidade em geral; e, particularmente, a confiança no corpo médico. Fragiliza, por outro lado, os mais vulneráveis, sujeitos a pressões, em grande medida inconscientes, que os levam a sentir-se obrigados a pedir a eutanásia para não serem um peso para a família e para a sociedade. O manifesto denuncia a efectiva verificação destas consequências.

E confirma os receios de que a quebra desse interdito estruturante nunca poderá ter efeitos limitados e contidos. Salienta, a este respeito, o facto de ser a própria comissão destinada a controlar a aplicação da lei a reconhecer que não tem meios para esse controlo (sendo que em dez anos nenhuma infracção da lei foi detectada). Não é de esperar que os médicos se auto-denunciem quando ultrapassem esses limites. A noção de «sofrimento insuportável» a que a lei recorre (como as de outros países) é subjectiva e tem permitido estender o seu campo de aplicação a sofrimentos psíquicos que não se enquadram na noção de «patologia grave e incurável» a que a legalização supostamente se restringiria.

Suscitaram compreensível clamor, vários casos de prática da eutanásia a coberto da lei belga em vigor: o de uma mulher, de 44 anos, que sofria de anorexia nervosa e o de uma outra, de 64 anos, que sofria de depressão crónica (doenças que podem ser tratadas); o dos irmãos gémeos Verbessen, surdos de nascença em vias de ficar cegos («já não tinham por que viver» - afirmou o médico que provocou a sua morte); ou a do professor de medicina De Duve, com 95 anos, que não era doente terminal, nem sofria de «dor insuportável».

E, mesmo assim, está agora em vias de ser aprovada, na Bélgica, a extensão da legalização da eutanásia a casos de crianças (cuja maturidade para decidir seja atestada por psicólogos) e de dementes (que tenham manifestado a sua vontade anteriormente, no exercício das sua faculdades). Num e noutro caso, o respeito pela «sacrossanta» liberdade de quem pede a eutanásia é posto em segundo plano. Dá-se relevo à manifestação de vontade de uma criança, num âmbito de absoluta irreversibilidade, quando não é dado esse relevo, por incapacidade, em âmbitos de muito menor importância. Dá-se relevo, no caso de pessoas dementes, a uma manifestação de vontade não actual, quando é sabido que muitas vezes a vontade de uma pessoa se altera quando a doença progride e o apego à vida vem ao de cima (ou seja: nunca pode haver a certeza de que fosse essa a vontade real e actual da pessoa demente).

Também no caso de pessoas dementes, pode facilmente suceder que a motivação do pedido não seja o previsível sofrimento dessas pessoas (nestes casos, o sofrimento atingirá mais os familiares do que o próprio doente, por este não se aperceber da sua doença), mas antes a vontade de não fazer recair sobre esses familiares um fardo difícil de suportar (fardo que é inegável). Pode, assim abrir-se a porta a uma morte provocada já não pela compaixão para com o doente, mas para que as pessoas ao redor deste se livrem de um fardo difícil de suportar.

Estas mesmas consequências (a dificuldade de controlo e a extensão da eutanásia a situações de doentes incapazes de manifestar a sua vontade) já se haviam notado na mais antiga experiência holandesa (país onde a prática judiciária também já admite a eutanásia de crianças). O célebre relatório Remmelink, de 1991, que evidenciou tais consequências, serviu de base ao livro de Herbert Hendin Seduced by Death (W. W. Norton & Com. Inc, 1997), que desempenhou um papel influente na rejeição da legalização da eutanásia nos Estados Unidos.

O balanço destas experiências só confirma que quando se derruba um alicerce, a derrocada total do edifício acabará por se verificar (abre-se uma caixa de Pandora, caímos numa rampa deslizante).





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