quarta-feira, 16 de maio de 2012

As feridas da Igreja VIII



Há vários anos, depois de ter assistido à exaltação de Lutero (feita por uma formadora de catequistas!...), escrevi no jornal da Paróquia (então sob a minha responsabilidade) um artigo cujo conteúdo ia contra a corrente dominante em alguns sectores da Igreja, onde se encontram enganados muitos fiéis, ao ponto de alguns até admitirem que o senhor Martinho Lutero deveria ser reabilitado pela Santa Sé... Hoje em dia, não nos deve estranhar o facto de encontrarmos bons Católicos que tenham sido levados a ver Lutero com alguma simpatia, pois, se até altos membros do clero já lhe têm tecido públicos elogios...

Uma dessas tomadas de posição mais impactantes foi a do Cardeal Willebrands (pioneiro do ecumenismo e do diálogo inter-religioso) em 16 de Julho de 1970, quando, na qualidade de Presidente do Conselho Pontifício para a unidade dos cristãos, na Assembleia da Federação Luterana Mundial, em Evian (França), disse: «O Concílio Vaticano II acolheu exigências que já tinham sido expressadas em seu tempo por Lutero, por meio das quais há aspectos da Fé cristã que se expressam actualmente mais claramente e melhor do que antes. Lutero mostrou de uma maneira extraordinária para a sua época o arranque da Teologia e da vida cristã».

Que grande bofetada para tantos vultos da Fé que tanto combateram esta praga nascida na Seara de Cristo… Que ultraje para o Seu Corpo Místico, que traição, feita por estes novos Judas…

Exaltar assim, quem disse que Cristo cometeu adultério por mais do que uma vez; quem, num panfleto de Março de 1545, intitulado «Contra o pontificado romano fundado pelo diabo», ao falar do Papa, se refere a ele, não como Papa, nem muito menos como Santo Padre, mas como «infernalíssimo»; louvar quem, a propósito das sangrentas perseguições movidas por Henrique VIII aos católicos ingleses, escreve a Melanchton, seu correligionário e «sucessor»: «É lícito encolerizar-se quando se sabe que espécie de traidores, ladrões e assassinos são os papas, seus cardeais e seus delegados. Deus se comprazeria que vários reis de Inglaterra se empenhassem em acabar com eles…» E incita ainda a que «agarrem o Papa, os cardeais e toda a pandilha da Sodoma romana e lavemos as mãos com o seu sangue». (1)

Os católicos cujo liberalismo os levou a tornarem-se numa espécie de «catolicoluteranos», certamente que desconhecem aquela sua outra face que muitos autores sempre esconderam. Não acredito que católico algum, do mais liberal ao mais conservador, continua-se a «luteranizar-se» se conhecesse aquele senhor completamente. Como é possível continuar a ser «catolicoluterano» (atenção que o termo não existe…), a partir do momento que se conhece o seu «lado de trás» (como por vezes digo quando me refiro à parte não visível da coisa)?

Continuando pois, na análise desse lado oculto, contrariamente à Teologia Católica, que nos diz que pela Graça a consciência nos indica o sentido do bem e do mal, o senhor Lutero diz que a voz da consciência é a do demónio... Aplaudir, portanto, este senhor, ou é cegueira ou estupidez. Mas prefiro acreditar que seja por puro desconhecimento do que nunca nos fora revelado. Senão, como poderia aplaudir-se quem, numa outra carta a Melanchton, datada de 1-8-1521, escreve: «Sê pecador e peca fortemente… durante a vida presente, devemos pecar… ainda que cometamos mil homicídios e mil adultérios por dia.»

Assim falava quem desprezava a importância das obras. E para esconder o peso da culpa, que derivava das suas «boas obras» (como aquelas que resultaram em sete filhos…), proclamou a tese em que diz que para salvar-se basta a fé em Cristo… Sob o efeito de tamanha diarreia mental, volta a escrever: «Todo o Decálogo (a Lei dada por Deus a Moisés) se deve apagar de nossos olhos e de nossa alma…».

E para que a Bíblia não lhe servisse de travão a tanta loucura, refugia-se no que ele chama de inspiração interior, que permite a cada um interpretar a Palavra de Deus segundo essa «inspiração». Mas como há textos na sagrada Escritura demasiado objectivos, demasiado claros, ele rejeita-os (pois claro!): as Epístolas de S. Tiago, S. Judas, 2ª de S. Pedro, 2ª e 3ª de S. João, e Hebreus. Ri-se de Eclesiastes, e diz que Job é uma fábula (2) (livros que hoje compõem as Bíblias protestantes).

A rejeição da 3.ª Carta de S. João, terá sido por se rever no papel de Diótrefes, a avaliar pelo que, em seu desvario, chegou a dizer dele mesmo: «Não vos parece este Lutero um homem extravagante? Para mim tenho-o como Deus. Senão, como poderiam ter os seus escritos e o seu nome a potência de transformar mendigos em senhores, e asnos em doutores...?» (3)
De entre os vários textos da Sagrada Escritura que ele rejeitou, vejamos o que mais poderia pesar, e de que maneira, ao Sr. Martinho:

«De que aproveita, irmãos, que alguém diga que tem fé, se não tiver obras de fé? Acaso essa fé poderá salvá-lo?» (Tg 2, 14). «Todo aquele que passa adiante e não permanece na doutrina de Cristo não tem Deus consigo; mas aquele que permanece na doutrina, esse tem em si o Pai e o Filho. Se alguém vier até vós e não traz esta doutrina, não o recebais em vossa casa nem o saudeis, pois quem o saúda torna-se cúmplice das suas más obras» (2Jo 1, 9-11).

Demasiado óbvia, pois claro, para que o Sr. Lutero pudesse contorná-la... Lendo a 2.ª Carta de S. Pedro, verá o leitor a razão pela qual Lutero tinha que se esquivar àquele «estadulho a cair-lhe pelas costas abaixo»...

Com base nas mais do que insuspeitas fontes, espero, pelo menos, levar a uma séria reflexão tantos bons Católicos que, sem que disso se deiam conta, estão a prestar culto a Deus de uma forma muito protestantizada...
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(1) ”Propos de Table”, Nº 1472, ed. de Weimar II, 107. Citado por Funck Brentano em «Luther», 7a ed. Crasset-Paris. Publicado ainda pelo Boletim “Covadonga Informa”, Nº 77 (artigo do Prof. Plínio Correia de Oliveira).
(2) S. Francisco de Sales, Meditações sobre a Igreja, p. II, c. 1,4 BAC-1985
(3) Textos de diversos autores, recolhidos pelo Pe. Leonel Franca S.J., em A Igreja, a Reforma e a Civilização, 3ª ed. Rio de Janeiro, 1934.    


José Augusto Santos, As feridas da Igreja – VIII, in Notícias de Chaves, Nº 3168, p. 17 (11-5-2012)

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