Elias Couto*
1. Ainda tenho nos ouvidos a exclamação de um jornalista-padre, enviado especial de uma rádio portuguesa para informar sobre o conclave, referindo-se à idade do novo Papa: “Será um pontificado breve, graças a Deus!”. Joseph Ratziger, teólogo e cardeal, sempre fora de separar as águas. Sabia-se que, como Papa, não seria de outra forma. E, por isso, o seu pontificado não poderia deixar de ser marcado pela polémica e pelas oposições internas e externas.
2. Assim tem acontecido. Foi o discurso em Ratisbona, aproveitado por meia Europa para fazer coro com o fundamentalismo islâmico, pseudo-ofendido por uma breve frase do Papa. Bento XVI saiu da polémica como “ignorante” mas criou um novo patamar nas relações com o Islão, patamar cuja palavra-chave é “reciprocidade”. Até hoje, numa Europa de cócoras perante o fundamentalismo islâmico, ninguém lhe agradeceu... Foi a liberalização do uso do ritual anterior ao Vaticano II para celebrar a Eucaristia. Foi o levantamento da excomunhão aos bispos da Fraternidade S. Pio X, escandalizando “judeus e gregos”, por junto. Foi o uso do preservativo e a SIDA... Nas últimas semanas, tem sido a pedofilia de alguns padres e religiosos e a cultura de encobrimento que lhes permitiu levar por diante esses crimes – cultura, aliás, partilhada socialmente e não usada apenas por alguns bispos católicos e por algumas instâncias da Cúria vaticana.
3. Esta última polémica será marcante para o pontificado de Bento XVI. Assinala uma tentativa ignóbil de decapitar a liderança da Igreja Católica, aproveitando os crimes de alguns dos seus membros. Assinala o regresso das culpabilizações colectivas, dos “bodes expiatórios”, ao melhor estilo nazi ou comunista. Assinala também um separar de águas, mesmo no interior da Igreja Católica, decisivo para o seu futuro na Europa. Agora, os bispos sabem que não podem deixar de tomar a sério a tarefa de governar a Igreja que lhes foi confiada. Sabem que não podem deixar correr as coisas, permitindo abusos e desmandos que redundam sempre em grave prejuízo para a causa do Evangelho. Sabem que só estreitamente unidos ao Papa poderão levar por diante o seu ministério num ambiente cada vez mais hostil. Sabem que os candidatos ao ministério presbiteral deverão ser escrutinados de um modo sempre mais exigente, não deixando que a preocupação com a quantidade de padres a ordenar eclipse a exigência de qualidades humanas e virtudes cristãs naqueles que se apresentam à ordenação. Sabem que, cada vez mais, deverão ordenar homens maduros e espiritualmente provados e não jovens – em alguns casos ainda a viver na adolescência –, a quem ninguém entregaria a gestão de uma pequena fábrica, quanto mais o cuidado humano e espiritual de uma comunidade cristã.
4. O pontificado de Bento XVI e toda a dureza que o tem rodeado terá – assim espero – consequências também no modo como os leigos se relacionam com a Igreja e vivem a sua fé. Numa Igreja europeia cada vez mais minoritária e culturalmente perseguida, acabou o tempo do leigo espectador, consumidor de sacramentos e anti-clerical. Hoje, e mais ainda amanhã, os leigos definem-se pela capacidade de viver intensamente a comunhão eclesial, apaixonados pela Igreja, procurando levar o ensino da Igreja para o quotidiano da família, da política, da economia, da cultura – pois só assim poderão levar à sociedade o fermento vivificante do Evangelho... Tudo o resto, sobretudo a dissidência pela dissidência, é mero folclore sociológico e, não raro, contributo evidente para a descredibilização da Igreja.
5. Bento XVI apareceu como um Papa tímido nos contactos pessoais. Alguns tomaram isso como fraqueza. Enganaram-se. O seu estilo talvez não seja o ideal para a hipermediatização de que todos sofremos. Será, no entanto, profundamente benéfico para a Igreja. Assim esta saiba aproveitar o seu exemplo e aprender com a sua sabedoria. Não colherá, certamente, aplausos na praça pública. Servirá, porém, a causa do Evangelho que é, bem vistas as coisas, a causa do homem e da humanização das sociedades.
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